Tribunal do júri

Nos EUA, estudo discute condenações por crimes que nunca aconteceram

Autor

14 de agosto de 2020, 7h24

Um estudo da Montclair State University de Nova Jersey, liderado pela professora de Direito Jessica Henry, revelou que um terço dos presos libertados nos EUA porque, em algum tempo, se descobriu que foram vítimas de erro judiciário, foram condenadas por crimes que nunca aconteceram.

Istockphoto

As descobertas do estudo foram reveladas em um livro, intitulado "Smoke But No Fire: Convicting the Innocent of Crimes that Never Happened" (“Fumaça sem fogo: condenação de inocentes por crimes que nunca aconteceram”). E comentadas por Jessica Henry em um podcast divulgado pelo Jornal da ABA (American Bar Association).

Para se ter uma ideia do tamanho do problema em números, basta consultar as estatísticas da organização The National Registry of Exonerations. Elas mostram que, em um período de 30 anos e meio (1989 a 2020), 2.655 presos foram libertados nos EUA porque, após anos na prisão se comprovou que foram condenadas por erro judiciário.

Isso significa que, nesse período, 855 pessoas (um terço) foram condenadas por crimes que nunca aconteceram.

Em qualquer dos casos — de pessoas que foram condenadas erradamente por crimes que existiram ou não — os números são alarmantes, na visão da comunidade jurídica do país, onde se costuma repetir que uma pessoa condenada por erro judiciário já é demais.

O problema começa, obviamente, com o trabalho de investigadores da polícia, que a professora e o advogado e escritor John Grisham classificam de "desonestos", em meio aos policiais honestos, que trabalham arduamente para proteger as comunidades.

Quando esses investigadores têm notícia de um suposto crime, eles chegam à óbvia conclusão de que há um criminoso por trás dele. Eles "encontram" um responsável e, feito isso, a existência do crime se solidifica.

Em um artigo para o Los Angeles Times, Grisham escreveu o que todo mundo sabe de maus policiais: eles escondem, alteram ou fabricam provas, encorajam testemunhas a cometer falso testemunho (especialmente de colegas de cadeia do acusado que querem obter um favor), mentem aos jurados, juízes e advogados de defesa, usam testemunho de peritos mal intencionados, intimidam ou ameaçam testemunhas, coagem confissões e manipulam identificações de testemunhas oculares do crime.

Quase sempre, os maus policiais têm a colaboração de maus promotores, que desonram a classe que se esforça, de uma maneira geral, para cumprir sua missão de buscar a verdade e a justiça, diz Grisham. Em muitos casos, alguns promotores se engajam nas mesmas manobras dos maus policiais, por duas razões básicas, entre outras: obter uma promoção ou fazer uma carreira política.

Entre o eleitorado conservador do país, um promotor que obtém muitas condenações, mesmo que a qualquer custo, têm uma grande bandeira em campanhas eleitorais. Mas, muitas vezes, o tiro sai pela culatra. Há vários casos de promotores que foram punidos por má conduta — e julgamentos foram anulados — porque esconderam provas exculpatórias que chegaram a seu conhecimento.

Táticas comuns
Uma das táticas mais comuns é a de obter falsa confissão. Estudos revelaram que cerca de 25% dos inocentes libertados, com base em prova de DNA, admitiram a culpa por crimes que não cometeram, após até 10 horas de interrogatórios abusivos e ininterruptos, em uma sala no porão da delegacia. No julgamento, a maioria dos jurados acha impossível alguém confessar um crime que não cometeu.

A mesma coisa acontece, muitas vezes, nas negociações com promotores de confissão de culpa, em troca de uma acusação menor e de uma pena menor, em contraste com a ameaça de prisão perpétua ou de pena de morte. Mais tarde, os réus abjuram a confissão e, em muitos casos, isso resulta em anulação do julgamento.

Uma das táticas mais sujas é a de usar informantes de cadeia para testemunhar contra o réu, em troca de favores ou até mesmo de libertação. Para ganhar a liberdade — ou favores significativos — um criminoso pode testemunhar o que lhe for pedido, como se tivesse ouvido a confissão de seu colega de cadeia.

Há problemas também com a identificação de testemunhas por vítimas ou testemunhas oculares do crime. Isso ocorre na identificação por álbum de fotos, bem como no tradicional alinhamento de suspeitos, por trás de um vidro, em que a vítima ou uma testemunha ocular tem de identificar o culpado. Em muitos casos, elas são manipuladas de alguma forma pelos investigadores.

Às vezes, réus inocentes acabam condenados em razão da atuação de advogados inexperientes e, principalmente, do trabalho imperfeito de defensores públicos. Normalmente, defensores públicos têm uma carga de processos muito maior do que a que podem suportar e não têm tempo de estudar caso algum. E não dispõem de recursos para contratar investigadores, o que a polícia  tem.

Às vezes, alguns juízes também não ajudam. Grisham ressalta que eles deveriam excluir confissões inconsistentes com as provas ou que foram obtidas de forma ilícita, o testemunho de criminosos com motivos dúbios, bem como exigir dos promotores a apresentação de provas exculpatórias e questionar as credenciais e o testemunho de peritos, sem a presença dos jurados. Mas, por alguma razão, não o fazem. Quase sempre, são juízes eleitos, que irão disputar uma reeleição.

O caso de peritos mal intencionados, que se baseiam em ciência duvidosa (junk science) para testemunhar a favor da acusação, por dinheiro, é sério. De uma maneira geral, os jurados costumam dar credibilidade a testemunhos forenses. Mas, 71% dos casos de condenação de inocentes se deveram exatamente a testemunhos forenses de peritos que levantaram teorias fraudulentas, baseadas em supostas análises de fio de cabelo, fibras, marcas de mordida, marcas de sapatos, incêndios, manchas de sangue e balística.

A conclusão da professora de Direito Jessica Henry é a de que, para efeito de julgamento criminal, onde há fumaça nem sempre há fogo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!