Opinião

A democracia intrapartidária como vertente do regime democrático

Autor

  • Claudia Vieira

    é especialista em Direito Eleitoral e Processo Eleitoral pela EJEP/TRE-SP especialista em Interesses Difusos e Coletivos pela ESMP/SP servidora do MP/SP assessora Parlamentar do deputado Paulo Fiorilo na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e membro Colaboradora da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP.

14 de agosto de 2020, 6h04

O Estado democrático brasileiro instituído pela Constituição de 1988 tem como linha mestra a manutenção da democracia e o pleno exercício dos direitos individuais, dentro dos quais se encontram inseridos os direitos políticos. A figura do partido político é central no equilíbrio democrático. O trinômio Estado-democracia-partidos políticos é indissociável [1] e coloca os partidos como protagonistas do processo eleitoral livre e democrático.

Embora exerçam função de natureza pública, os partidos políticos são agremiações particulares voltadas a atender aos interesses de seus associados e possuem personalidade jurídica de Direito privado, conforme conceitua o artigo 1º da Lei nº 9.096/1995. Sua natureza de associação privada é fundamental para entender a dinâmica da democracia intrapartidária e seus limites.

A autonomia partidária é garantia constitucional (artigo 17, §1º, CF, modificado pela EC nº97/2017), inclusive com a previsão de que sua organização interna dar-se-á por meio dos estatutos e regimentos. Também, em regra infraconstitucional, encontramos a autonomia e democracia intrapartidária prevista no artigo 3º da Lei dos partidos políticos, declarando que "é assegurada, ao partido político, autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento". A liberdade de formação e organização interna dos partidos políticos já foi alvo de deliberação de nossa Corte Suprema, que, em recente julgado, declarou que "a liberdade na formação dos partidos há de se conformar ao respeito aos princípios democráticos" [2].

Esse caráter ambíguo e sui generis dos partidos políticos sua natureza privada com função pública faz com que essas agremiações tenham que seguir todas as diretrizes intrínsecas à democracia em sua estrutura e formação, mas com a liberdade de auto-regulamentação de uma organização particular. Para José Afonso da Silva, "a autonomia é conferida na suposição de que cada partido busque, de acordo com suas concepções, realizar uma estrutura interna democrática" [3]. Isso torna a democracia intrapartidária uma parte integrante da própria democracia brasileira, mas com algumas peculiaridades e vícios, inclusive no tocante ao controle, como veremos.

Um importante ponto a ser abordado refere-se ao fenômeno da perpetuação das comissões provisórias. Nos Estados, municípios ou zonas onde não existam diretórios organizados, ou que forem dissolvidos, serão nomeadas comissões provisórias pelas comissões executivas das instâncias imediatamente superiores, com a respectiva anotação na Justiça Eleitoral. Os diretórios são os legitimados legais para convocar convenções e realizar o registro das candidaturas. Quando há um desalinhamento político entre o diretório municipal e as instancias superiores (diretórios estaduais ou nacional), estes podem intervir diretamente, dissolvendo o diretório municipal e nomeando uma comissão provisória que, em decorrência da EC 97/2017, passa a não ter limite temporal fixado, acabando assim por ter caráter permanente. Para José Luís Blaszak, os diretórios municipais devem ser autônomos perante as instancias superiores, não se devendo permitir qualquer tipo de ingerência de cunho político.

"A antidemocracia tem ganhado corpo em grande número de casos quando se trata de desalinhamento político entre as esferas internas dos partidos, ou seja, quando há desobediência à chamada verticalização de posicionamentos. Por consequência, a insatisfação superior robustece a figura do intervencionismo, lançando mão, especialmente, de uma ferramenta ditatorial denominada dissolução, ou seja, a dissolução dos diretórios quando não há alinhamento político" [4].

Ainda sem decisão de mérito, a ADI 5875 [5], distribuída pela Procuradoria-Geral da República, questiona a referida emenda. No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral, por meio da Resolução do TSE nº 23.571, de 2018, pacificou o entendimento de que "as anotações relativas aos órgãos provisórios têm validade de 180 (cento e oitenta) dias, salvo se o estatuto partidário estabelecer prazo inferior diverso" [6].

Outro ponto de destaque dentro da democracia intrapartidária é a democracia paritária entre gêneros e com maior participação dos grupos minoritários. Percebe-se ainda uma grande dificuldade de inserção do público feminino nas políticas intramuros partidárias. Ainda existe muito preconceito e machismos dentro dos partidos políticos, muitas vezes ainda se perpetuando o velho pensamento de que "política não é coisa para mulher". Atualmente, pouquíssimas mulheres atuam nas esferas de poder dentro dos partidos políticos, os diretórios são predominantemente compostos por homens [7].

Da mesma forma, é extremamente necessário que as minorias sociais atuem de forma mais ativa dentro das estruturas internas dos partidos, inclusive para dar mais visibilidade às demandas sociais dos afrodescentes, LGBTs e dos economicamente vulneráveis. A inclusão social dentro dos partidos políticos, como forma de ampliar o espectro de responsabilidade dos tomadores de decisões, é um avanço importante na consolidação de uma democracia intrapartidária justa e plural e segue a pauta inclusiva proposta pela sociedade nos últimos anos.

A maior inserção das mulheres na política, também considerando a organização intrapartidária, foi tema de uma consulta proposta ao TSE (CTA nº 0603816-39.2017.6.00.0000), elaborada pela Clínica de Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), tendo como autora a senadora Lídice da Mata. Sob relatoria da ministra Rosa Weber, essa consulta questiona se seria possível aplicar a reserva de vagas (cotas de gênero) de no mínimo 30% prevista no artigo 10, §3º, da Lei nº 9.504/97 também para a composição das comissões executivas e dos diretórios dos partidos políticos.

O TSE, de maneira unanime e seguindo o voto da relatora, entendeu pela aplicabilidade das normas de cota de gênero também no âmbito da representação intrapartidária, ressaltando a urgência na adoção de medidas para proteger e ampliar a participação das mulheres e de grupos minoritários na dinâmica das escolhas intrapartidárias. Segundo a ministra Rosa Weber, a não aplicação da cota de 30% no âmbito intrapartidário seria "um verdadeiro paradoxo democrático, não sendo crível que a democracia interna dos partidos políticos não reflita a democracia que se busca vivenciar, em última instância, nas próprias bases estatais" [8].

Os partidos políticos fazem parte da estrutura da democracia contemporânea, sendo que sua previsão constitucional impõe balizas que, ao mitigarem a autonomia partidária, promovem a amplitude dos princípios democráticos, que devem ser respeitados tanto externamente quanto nos atos intrapartidários. Na opinião de Raymundo Campos Neto:

"Muito embora o partido político seja pessoa jurídica de direito privado, possua autonomia garantida pela Constituição Federal, ele deve se pautar pelos princípios democráticos, tanto nas suas relações externas como nas internas. Dessa forma, o partido político deve garantir a transparência em suas ações e no seu processo decisório e, em ultima instância, deve democratizar sua organização e funcionamento interno em respeito ao princípio democrático" [9].

O verdadeiro conceito de representação política passa pela organização e autonomia dos partidos políticos, bem como de sua capacidade de gestão e organização interna, de forma a refletir internamente as demandas da sociedade e os princípios da democracia do Estado brasileiro. Não se pode permitir que a falta de transparência e organização dos processos decisórios intrapartidários venham a criar ou ampliar organizações antidemocráticas. É fundamental ter como diretrizes nas instâncias intrapartidárias os princípios do regime democrático.

 


[1] SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton, REIS, Marisa Amaro dos. partidos políticos. 1ª ed. Ed. IPAM. São Paulo. 2016. p-17

[2][ADI 5.311, rel. min. Cármen Lúcia, j. 4-3-2020, disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4758587, acessado em 7/7/2020

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 38º ed. res e atual., São Paulo: Malheiros, 2015, p-407

[4] BLASZAK, José Luís. Democracia Interna dos partidos, em Tratado de Direito Eleitoral. Direito Partidário, coord. FUZ, Luís; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura.tomo 2. Ed. Fórum: Belo Horizonte. 218

[5] ADI 585, relator Min. Luiz Fuz, disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5336273, acessado em 8/7/2020

[7] CÂMARA, Diana Patrícia. Democracia paritária intramuros, em Tratado de Direito Eleitoral. Direito Partidário, coord. FUZ, Luís; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura.tomo 2. Ed. Fórum: Belo Horizonte. 2018, p-349

[8] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/mulheres-no-poder-e-o-fortalecimento-da-jurisprudencia-feminista-05062020#_ftn5, acessado em 8/7/2020.

[9] CAMPOS NETO, Raymundo. Democracia Interna e o fenômeno da oligarquização dos partidos políticos em Tratado de Direito Eleitoral. Direito Partidário, coord. FUZ, Luís; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura.tomo 2. Ed. Fórum: Belo Horizonte. 2018.p-343

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    é servidora do MP-SP, assessora parlamentar do deputado Paulo Fiorilo na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, membro colaboradora da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SP e especialista em Direito Eleitoral e Processo Eleitoral pela EJEP/TRE-SP.

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