Opinião

Concorrência, sistema financeiro e futuro

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14 de agosto de 2020, 15h13

Que futuro nos espera no pós-pandemia? Que contribuições poderá oferecer a ordem jurídica das incertezas do presente para a construção do futuro das incertezas? Juristas gostam de certezas: "segurança jurídica", "previsibilidade", "garantia de expectativas", por exemplo, são conceitos recorrentes em suas práticas. Mas a Economia — não os economistas — olha com mais atenção para as incertezas: "competição", "financiamento" e "risco" orientam a ação de empresas. Como combinar as duas perspectivas? Como colocar a regulação jurídica da concorrência e das finanças — motores da imaginação dos "futuros" possíveis nas economias capitalistas — à disposição da sociedade [1]?

Perguntas desafiadoras, sem dúvida. O PIB mundial per capita permaneceu relativamente estável durante quase dois milênios. Cresceu vertiginosamente nos últimos 200 anos. Diversas instituições e organizações se consolidaram nesse mesmo período. Entre elas, tribunais, bancos, indústrias, institutos de pesquisa científica e ambientes que instigam a competitividade e a financeirização da economia. Apesar das limitações do Brasil nos dois campos — competição e finanças —, temos instituições de defesa da concorrência de reconhecida qualidade e sistema financeiro consolidado. Depois da pandemia, como resposta aos desafios de construção do futuro, conseguiremos ativar esses dois motores? Fazer com que as diversas modalidades de financiamento cheguem às empresas sem os abusos e limitações atuais e que a atividade empresarial, por sua vez, gere riquezas e expectativas que permitam a expansão sustentável do acesso ao crédito?

A livre concorrência pode ser descrita como produtora e geradora de incertezas. Basta que se pense na sua regra de ouro: o concorrente não pode trocar informações sensíveis e estratégicas com seu rival. Instaura-se, em tese, jogo de recíproca desconfiança que estimula fórmulas de organização da produção mais eficientes e inovação nos produtos oferecidos ao mercado.

É claro que as pressões para a "poluição" desse ambiente são constantes. Justamente aí o Direito Antitruste pode desempenhar papel de relevo. Não com a arbitragem das margens de lucro ou a chancela de igualdades artificiais entre os concorrentes, mas com a estabilização de procedimentos que institucionalizem a competitividade, é dizer, garantam a incerteza. Trata-se de um paradoxo: ter certeza da expectativa do direito à livre concorrência significa estar sujeito, ao longo do tempo, às turbulências daquilo que Schumpeter designava por "destruição criativa".

Decidir em condições de incerteza é característico dos processos de escolha. A pandemia apenas acentua e torna evidente esse elemento. Vale para o juiz. Vale, igualmente, para as decisões empresariais em relação ao comportamento dos rivais e para os mercados financeiros em relação ao oferecimento de crédito e de uma ampla gama de serviços financeiros inovadores. Existem estruturas que permitem reduzir a incerteza, não a eliminar e nem a livrar dos paradoxos que gera. Elas são de três tipos: lícitas, ilegais e ambivalentes. Algumas dessas estruturas de redução da incerteza são absolutamente válidas. Basta pensar nas normas jurídicas em sentido amplo: leis, contratos, atos administrativos e precedentes. São mecanismos que reduzem a complexidade do processo decisório e viabilizam escolhas em condições de incerteza.

O direito torna toleráveis e permite a convivência com riscos e incertezas. Contratos financeiros, seguros, leis de defesa da concorrência, regulação macroprudencial do sistema financeiro, jurisprudência, por exemplo, facilitam a vida de autoridades administrativas do Banco Central e do Cade, assim como do Judiciário. Tomadores de decisão, nesses casos, devem agir em condições de "dupla incerteza reflexiva": a "primeira incerteza", inerente ao processo decisório administrativo ou judicial, deve tratar da "segunda incerteza", que reside no centro da atuação em ambientes competitivos e de oferta de crédito e serviços financeiros. Paradoxalmente, de um lado, o direito reduz essas incertezas e viabiliza decisões em condições adversas, mas, simultaneamente, de outro lado, permite a expansão da própria incerteza.

Como o Direito reduz e expande incertezas ao mesmo tempo? Garantir e proteger juridicamente a financeirização da economia reduz a incerteza dos bancos; mas isso, aliado a fatores macroeconômicos, pode induzir mais oferta de crédito e inflação de ativos (bolhas), gerando, consequentemente, nova expansão de incerteza. Proteger a liberdade de competição reduz a incerteza quanto à possibilidade de concorrer e, ao mesmo tempo, estimula mais rivalidade e, consequentemente, mais incerteza.

Existem, contudo, elementos ilegais de redução da incerteza. Se os competidores combinam preços, restringem orquestradamente a oferta, levantam barreiras à entrada de novos rivais ou boicotam a inovação, diminuem drasticamente a incerteza. Impor o capitalismo aos capitalistas significa romper os laços de cooperação ilícitos e redutores da incerteza.

Por fim, existem elementos ambíguos de convivência com a incerteza. O sigilo é um deles. Pouco estudado por juristas e economistas, mas com enorme impacto sobre a atuação do direito nas relações concorrenciais e no sistema financeiro, o segredo é fonte de tratamento legítimo, por exemplo, na produção das provas em acordos de leniência junto ao Cade (sigilo legal que protege quem participou de segredo ilegal: cartel) ou quando se pensa em sigilo bancário (que pode tutelar, eventualmente, quem praticou fraudes e ampliou riscos). Nos dois casos, a confidencialidade reduz incertezas com motivações legais e legítimas. Outra coisa, absolutamente ilícita, é o sigilo das conspirações concorrenciais: redutor criminoso de incerteza [2].

Em decorrência da crise de 2007/2009, a gestão macroeconômica e a regulação financeira foram desafiadas em seus fundamentos teóricos e nas suas práticas até então consagradas. A incerteza assumiu uma importância inédita com a retomada do pensamento keynesiano por meio de um de seus mais inovadores intérpretes, Hyman Minsky: "o coração do sistema de Keynes consiste numa análise da finança capitalista no contexto de incerteza". A dinâmica financeira encontra-se na raiz do processo de avaliação (valuation) dos ativos e do ritmo de investimento. Este último determina o emprego e a renda. A economia capitalista é cíclica, especulativa, intrinsecamente instável [3].

Sabemos muito pouco sobre o futuro, insistiu Keynes. E são as nossas visões sobre o futuro que influenciam os fatores que determinam a taxa de investimento [4]. A ortodoxia, por meio de uma "falsa racionalização", supunha termos um conhecimento do futuro que na verdade nunca chegamos a possuir.Subestimava-se, dessa forma, a "dúvida absoluta, a precariedade, a esperança e o medo" [5].

No contexto de uma radical financeirização do capitalismo, especialmente por meio da securitização, a incerteza cresce exponencialmente e  precisa ser levada a sério. Suas consequências regulatórias passam pela reformulação das análises de risco, especialmente o risco sistêmico. Como decorrência da crise, os europeus possuem desde 2010 um novo guardião da estabilidade financeira: o Comitê  Europeu de Risco Sistêmico, liderado pelo presidente do banco central europeu. Sua missão é detectar e avaliar o risco sistêmico, para emitir tempestivamente os devidos alertas. Em sua mais recente definição no âmbito da União Europeia, o risco sistêmico é "um risco de perturbação do sistema financeiro suscetível de ter consequências negativas graves na economia real da União ou de um ou mais dos seus Estados-membros e no funcionamento do mercado interno". A definição tem amplo alcance, abrangendo todos os tipos de infraestruturas, intermediários e mercados financeiros [6]. A complexidade técnica é enorme. Como medir o risco sistêmico nos mercados de crédito, imobiliário e de equity? Quais indicadores são confiáveis? Como aprimorar a medida do grau de interconexão entre as instituições financeiras? Em que medida uma determinada instituição contribui, na margem, para o risco de todo o sistema [7]?

Definitivamente, a incerteza no setor financeiro é extrema. A regulação financeira, per se já complexa, revelou-se indissociável da política macroeconômica, especialmente da política monetária. A manutenção de taxas de juros muito baixas por longos períodos alimenta expectativas tão positivas sobre o futuro que paradoxalmente pode atrair a desgraça econômica: excesso de endividamento, bolhas imobiliárias, derivativos irresponsáveis [8]. A posição central que o sistema financeiro ocupa na economia moderna decorre da interconexão entre os concorrentes financeiros e das externalidades geradas para a economia real. Quando um fabricante de cervejas ou chocolates "quebra", talvez seus rivais festejem o evento como vitória. Ao contrário, no sistema financeiro, sinais de fragilidade de um agente preocupam a todos.

Isso não significa que a principal fonte de crédito — o sistema bancário — seja imune à competitividade e à incerteza, ainda que com outras lógicas. Oferecer e tomar crédito são atividades de risco. Investir, empreender e consumir são decisões arriscadas. Operações financeiras têm seus olhos voltados para o futuro e para as incertezas, tanto quanto, respeitadas as particularidades de cada mercado, todos os demais setores da atividade econômica.

Desafios jurídicos enormes e paradoxos inafastáveis: se o sistema econômico é instável por definição, se periodicamente atravessa ciclos, flutuando no mar aberto da incerteza ao sabor da percepção do futuro, e se mais concorrência e mais regulação, embora indispensáveis ao aumento de bem-estar social, pareçam atrair ondas mais furiosas, restará algum papel para o Direito?

Por todas essas razões, o Direito da Concorrência e a regulação financeira, a competitividade e a inovação financeira, a segurança e a incerteza terão papel decisivo no Direito pós-pandemia. Utilizarão as incertezas do presente para a construção das incertezas que garantam as possibilidades do futuro? Preocupada com a atualização da reflexão teórica sobre esses temas, a Fundação Arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com o apoio do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP, oferecerão, entre os dias 24 e 27 de agosto, o curso "Transformações do Direito em Tempos de Pandemia", no qual essas e outras questões relacionadas serão debatidas.

 


[1] Beckert, Jens. Imagined Futures. Fictional Expectations and Capitalist Dynamics. Cambridge: Harvard University Press, 2016. Ver, ainda, sobre a relevância da “incerteza” para o funcionamento da economia, da competição e do sistema financeiro, Jens Beckert e Richard Bronk editores,Uncertain Futures: Imaginaries, Narratives, and Calculation in the Economy. Oxford: Oxford University Press, 2018, e Kay, John e King, Mervyn, Radical Uncertainty. New York: W. W. Norton & Company, 2020. Em termos clássicos, apesar de não serem numerosos, os estudos econômicos que valorizam a incerteza remontam a Knight, Schumpeter e Shackle. Na sociologia do Direito e do risco, ver, especialmente, os trabalhos de Luhmann.

[2] Sobre o segredo no Direito, ver Kim Scheppele, Legal Secrets. Equality and Efficiency in the Common Law. Em termos sociológicos, a referência clássica é Georg Simmel: Sociology of Competition, Canadian Journal of Sociology, vol. 33, n. 4, 2008, e El secreto y las sociedades secretas. Madrid, Sequitur Editorial, 2015.

[3] Minsky, Hyman. John Maynard Keynes. New York: McGraw-Hill, 2008, p. 129.

[4] Keynes, John Maynard. “The General Theory of Employment”, The Quarterly Journal of Economics 51, n. 2, 1937, p. 221.

[5] Keynes, John Maynard. “The General Theory of Employment”, p. 222.

[6] União Europeia, Regulamento 2176, de 18/12/2019, artigo 1°, 1, https://www.esrb.europa.eu/about/background/html/index.en.html .

[7] Ver Sylvester Eijffinger, “Defining and measuring systemic risk”, in Sylvester Eijffinger and Donato Masciandaro (org.), Handbook of central banking, financial regulation and supervision, Cheltenham, UK; Northampton, MA: Edward Elgar Publishing, 2011, p. 315-325.

[8] Sylvester Eijffinger, “Defining and measuring systemic risk”, p. 324.

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