Interesse público

A indisponibilidade de bens nas ações de improbidade e a (in)utilidade das leis

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13 de agosto de 2020, 8h00

Spacca
Conforme noticiado pelo site do STJ em 28.07.2020, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu afetar ao rito dos recursos especiais repetitivos, a matéria alusiva à possibilidade de inclusão do valor da potencial multa civil na medida de indisponibilidade de bens decretada em ação de improbidade administrativa, inclusive nos processos ajuizados com lastro no art. 11 da Lei 8.429/92 (improbidade por lesão aos princípios da administração pública).

Foram afetados o REsp 1.862.792 e o REsp 1.862.797, ambos relatados pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. O tema apresenta o número 1.055 na lista dos recursos repetitivos do STJ e provoca a suspensão de todos os processos pendentes — individuais ou coletivos — que tratem da questão nos tribunais do país.

A temática debatida na recente afetação do STJ foi objeto de artigo que publiquei nesta coluna da ConJur no dia 7 de novembro de 2019, intitulado “improbidade administrativa à freudiana”. Na ocasião, procurei dialogar criticamente com a jurisprudência dominante do STJ, sustentando a existência de limites interpretativos ao art. 7º da Lei 8.429/92, os quais afastariam o cabimento indistinto da medida de indisponibilidade de bens em todo e qualquer tipo de ação de improbidade administrativa.

No texto citado, fazendo alusão à teoria psicanalítica de Freud, sugeri – nas entrelinhas – que fosse feita uma espécie de “regressão” à disposição legislativa que trata do tema (art. 7º da Lei 8.429/92), sugestionando a superação do automatismo de se procurar fundamentos de decisão judicial apenas em ementas de julgados de Tribunais Superiores.

Dispõe o art. 7º da Lei 8.429/92

Art. 7º – Quando o ato de improbidade administrativa causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para indisponibilidade dos bens do indiciado.

De se notar que o legislador da Lei 8.429/92 circunscreveu a indisponibilidade de bens – que por sua gravidade e efeitos deve ser vista com medida excepcional e não automática – aos casos em que o ato administrativo questionado tenha causado lesão ao patrimônio público (art. 10) ou enriquecimento ilícito (art. 9º), deixando ver o descabimento de sua aplicação aos casos em que se discute apenas lesão a princípios da administração pública (art. 11).

Tolere-se repetir, mas se bem lida a disposição do art. 7º da LIA, caput, o limite estabelecido pelo legislador encontra-se quase desenhado, porque as expressões utilizadas no dispositivo marcam supinamente a liberdade de interpretação, relacionando a improbidade administrativa exclusivamente ao ato que "causar lesão ao patrimônio público" ou "ensejar enriquecimento ilícito". Não existe, porque mesmo inexistente, qualquer alusão ao ato de improbidade que lesiona princípios administrativos.

Como consequência inexorável da disposição legislativa, também em xeque a construção jurisprudencial do STJ no sentido de que a medida de indisponibilidade de bens prevista no art. 7º deve ser projetada para além do valor do ressarcimento pretendido, abarcando a potencial penalidade de multa aplicável no julgamento de mérito da ação. A leitura do parágrafo único do art. 7º da Lei 8.429/92, com efeito, delimita a extensão da medida de indisponibilidade ao dano eventualmente sofrido pelo erário, reforçando a necessidade de aquele Sodalício debruçar-se novamente sobre seus próprios julgados, senão vejamos.

Art. 7º […]

Parágrafo único. A indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito.

É perceptível que o legislador prescreveu — valendo-se do verbo no imperativo ("recairá") — a extensão exata da medida constritiva, circunscrevendo a indisponibilidade aos bens dos envolvidos que assegurem "o integral ressarcimento do dano" ou ao "acréscimo patrimonial do enriquecimento ilícito", novamente a demonstrar que a primeira hipótese é dirigida apenas aos casos previstos no art. 10 e a segunda aos casos do art. 9º da Lei 8.429/92.

Em acréscimo aos limites extraídos do próprio texto da lei de improbidade administrativa para a hipótese, o legislador brasileiro recentemente incluiu no ordenamento jurídico, por intermédio da Lei 13.869, de 05 de setembro de 2019, em vigor desde o dia 03.01.2020, a disposição do art. 36, tornando penalmente ilícita a conduta de "Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la" (art. 36).

A nova disposição legislativa deixa ver que o valor alvo para a medida de indisponibilidade de bens deve ser a "dívida da parte", prescrevendo a ilicitude da sua decretação em valor que "extrapole exacerbadamente" este montante.

A despeito de o legislador ter se valido do advérbio "exacerbadamente", a potencial multa que ordinariamente se inclui na constrição típica da ação de improbidade costuma ser bastante superior ao dano ou à dívida, correspondendo a "até três vezes o valor do acréscimo patrimonial" (art. 9º), a "até duas vezes o valor do dano" (art.10) e a "até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente" (art. 11).

A depender do desfecho do julgamento do Tema 1.055 pela Primeira Seção do STJ, talvez se comprove definitivamente a relevância da obra "A vida do Direito e a inutilidade das leis"1 do francês Jean Cruet — o direito vive, mas a lei é inútil.


1 CRUET, Jean. A vida do direito e a inutilidade das leis. Lisboa: Livraria editora, 1908. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bd000061.pdf

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