Opinião

A efetivação administrativa e judicial de direitos sociais no Brasil

Autor

  • Luiz Henrique Diniz Araújo

    é procurador federal da Advocacia-Geral da União membro do Grupo REC de Estudos Constitucionais mestre e doutor em Direito Constitucional e Processual pela Universidade Federal de Pernambuco e visiting student researcher na University of California Berkeley (EUA).

13 de agosto de 2020, 6h05

A efetivação de direitos fundamentais assumiu nos anos pós-1988 e, em especial, nas últimas duas décadas, uma crescente importância na atuação dos poderes no Brasil. Algumas causas podem ser apontadas como concorrentes para esse fenômeno:

I) A passagem do Estado de Direito ao Estado constitucional, transição histórica que fez surgir a ideia de constituição como norma jurídica e que conduziu ao reforço de ideias e instrumentos que possam efetivar os direitos fundamentais inscritos na Constituição Federal de 1988 [1];

II) A superação do positivismo exegético e o advento do pós-positivismo, que representaram a passagem da concepção do juiz e do administrador como meros aplicadores do Direito posto à concepção do intérprete como criador do Direito [2] [3];

III) A propagação do conjunto de ideias (às vezes fugidias) que subjazem ao rótulo de neoconstitucionalismo, envolvendo a revalorização da força normativa da constituição e o dever dos poderes estatais em interpretar e efetivar o seu conteúdo [4].

Como uma decorrência desses fenômenos, os atos do Estado deixam de ser concretizadores precipuamente da lei, mas do ordenamento jurídico como um todo. Dessa forma, ocorre a ampliação do conceito de legalidade, que passa a abranger a legitimidade e a moralidade dos atos da Administração [5].

Esse entendimento está relacionado à constatação de que inclusão de temas em leis, nos diversos acordos momentâneos de interesses, encontra nos princípios constitucionais um mínimo conteúdo referencial. Assim, o administrador e o juiz administrativo (aqui no sentido de juiz que tem por competência julgar os atos do Estado), em seu ofício, devem interpretar ou julgar as condutas da Administração em confronto não apenas com a lei, mas com normas constitucionais.

Nesse contexto, a efetivação de direitos prestacionais pelo Estado muitas vezes depende de decisões complexas, como é o caso adequações de prédios públicos a critérios de acessibilidade, concessão de benefícios previdenciários, construção ou melhorias de escolas públicas, incrementos no sistema de saúde, melhoria nas prestações de serviços públicos em geral, entre diversas outras. Dessa forma, a adequada concretização de direitos fundamentais prestacionais em muitos casos não pode ser feita em um ponto no tempo, mas em um lapso temporal que pode ser mais ou menos longo, a depender de inúmeros fatores concretos.

Fácil perceber, pois, que a efetivação de tais normas constitucionais depende de uma série de decisões e procedimentos administrativos prévios que dizem respeito a orçamento, elaboração de projetos, fases interna e externa de licitações, obtenção de atestes orçamentários, assinaturas de contratos, todas complexas e, de certa forma, impossíveis de se cumprir em curto prazo.

Dessa maneira, algumas técnicas ou condutas podem colaborar no sentido da progressiva concretização de direitos fundamentais prestacionais por parte da Administração Pública, as quais podemos dividir em administrativas (quando a iniciativa é interna da Administração, sem depender de comando judicial) e judiciais (quando decorrentes do controle judicial da Administração Pública).

Em relação a medidas propiciadoras da efetivação de direitos prestacionais em fase não judicial, ou seja, em âmbito interno da Administração, pode-se citar a possibilidade de que a Administração Pública, especialmente pela via de seus órgãos de advocacia pública, crie canais de interlocução com os cidadãos/administrados para discussão e efetivação das políticas públicas. Dessa forma, podem-se construir e consolidar caminhos estruturais que viabilizem a realização de acordos extrajudiciais, em fase prévia à judicialização [6].

Um outro instrumento para a efetivação de direitos fundamentais na seara administrativa é a atenção da Administração Pública a seus próprios precedentes [7]. Essa obrigatoriedade pode ser deduzida de princípios constitucionais, como o da igualdade (artigo 3º, §4º, e artigo 5º, caput, da CF/88) e o direito fundamental à proibição de discriminação atentatória contra os direitos fundamentais (artigo 5º, XLI, da CF), bem como em sede infraconstitucional, como é o caso do artigo 30 da LINDB, acrescentado pela Lei nº 13.655/2018.

No que diz respeito à efetivação de direitos sociais a partir do controle judicial da Administração Pública, por sua vez, é certo que não basta o comando judicial para que, como em um passe de mágica, "faça-se a luz" e a solução esteja pronta. Assim, algumas técnicas e instrumentos podem ser adotados para possibilitar a adequada efetivação de direitos fundamentais sociais pela Administração quando o controle é feito em âmbito judicial.

O artigo 190 do Código de Processo Civil de 2015 estabelece a possibilidade de as partes firmarem negócios jurídicos processuais e o artigo 191 do mesmo diploma regula a possibilidade de as partes fixarem em conjunto com o magistrado calendário para a realização de atos processuais. Esses instrumentos podem ser utilizados para a finalidade de cumprimento dos atos executivos pelas partes. Assim, podem-se construir cronogramas de cumprimento em etapas factíveis e incrementais.

Também podem se mostrar eficazes técnicas negociais (mediação, conciliação [8]) sobre mérito da demanda. Nesse sentido, conciliações envolvendo a Administração Pública já são realidade relativamente antiga no Direito brasileiro, as quais foram reforçadas pela adoção do Sistema Multiportas de Resolução de Conflitos pelo Código de Processo Civil de 2015, bem como do artigo 34 e seguintes da Lei nº 13.140/2015, que regula o uso da mediação no âmbito da Administração Pública.

O pragmatismo e interpretação consequencialista, com fundamento nos artigos 20, 21 e 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), alterada pela Lei 13.655/2018, também podem ser instrumentos úteis para a efetivação de direitos sociais em sede de controle judicial. Segundo esses comandos, as decisões judiciais deverão considerar as consequências práticas da decisão, bem como devem ser considerados os obstáculos e dificuldades reais do gestor. Assim, os fatos e as condições relevantes devem ser levados em consideração [9] [10], evitando-se imposições inexequíveis à Administração.

Uma outra ideia que pode ser aplicada em sede de controle judicial é a deferência do juiz ao administrador. Essa técnica cabe em situações em que o direito fundamental pode ser implementado de formas diferentes e, de alguma maneira, está sendo efetivado pela Administração. Dessa forma, assiste ao juiz ter cautela e eventualmente agir com a devida deferência ao administrador, sob pena de desfazer, na prática, uma série de decisões administrativas e etapas custosas de planejamento destinados à implantação da política pública [11].

A partir das ideias sumariamente apresentadas acima, trazem-se possibilidades e propostas de avanço na efetivação de direitos sociais, seja em sede administrativa, seja em sede de controle judicial de políticas públicas. O texto tenta, assim, consolidar um norte maior de que apenas de forma organizada, coordenada e progressiva se atingirá a mencionada efetivação de maneira igualitária e sustentada. E, como se pode perceber, todas calcadas em instrumentos já presentes em nosso sistema jurídico.

 


[1] HILBINK, Lisa. Beyond manycheanism: assessing the New Constitutionalism, Maryland Law Review, Baltimore, v. 65, issue 1, p. 15-31, 2006.

[2] KELSEN, Hans. Teoría Pura del Derecho. Eudeba. Buenos Aires. 2010.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Reflexión Hermenéutica sobre la Relación “Neoconstitucionalismo-Positivismo Jurídico”. In: POZZOLO, Susanna (coord.). Neoconstitucionalismo, Derecho y derechos. Palestra Editores, Lima, 2011.

[4] COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo)Constitucionalismo: Un Análisis Metateórico. Isonomía: Revista de Teoria e Filosofía del Derecho, Alicante, n. 16, p. 90-112, abril 2002.

[5] NOVAIS, Jorge Reis. Em Defesa do Tribunal Constitucional. Resposta aos críticos. Almedina, Coimbra, 2014.

[6] GAMA, Alcides Moreira da. Gestão de Processos na Procuradoria-Geral Federal: Ambientação da Procuradoria-Geral Federal na implementação de políticas públicas. 68f. Trabalho de Conclusão de Curso de Pós-Graduação/MBA, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2015.

[7] HACHEM, Daniel Wunder. Vinculação da Administração Pública aos precedentes administrativos e judiciais: mecanismo de tutela igualitária dos direitos sociais. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 15, p. 63-91, jan./mar. 2015.

[8] MORAND-DEVILLER, Jaqueline. Droit Administratif. LGDJ, Lextenso Éditions, Issy-les-Moulineaux, 2015.

[9] JORDÃO, Eduardo. Art. 22 da LINDB. Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito público brasileiro. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 63-92, nov. 2018.

[10] SHAPIRO, Sidney. Pragmatic Administrative Law. Issues in Legal Scholarship, Berlin, p. 1-24, 2005.

[11] REITZ, John C. Deference to the Administration in Judicial Review. The American Journal of Comparative Law, Oxford, vol. 66, p. 269-298, 2018.

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    é procurador federal da Advocacia-Geral da União, membro do Grupo REC de Estudos Constitucionais, mestre e doutor em Direito Constitucional e Processual pela Universidade Federal de Pernambuco e visiting student researcher na University of California, Berkeley (EUA).

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