Opinião

Direitos autorais e conexos: a valorização da música gravada

Autor

  • Guilherme Reis

    é graduando em Direito na Universidade de Brasília (UnB) e foi monitor da disciplina de Direito Industrial na referida instituição de ensino.

12 de agosto de 2020, 16h11

A pandemia da Covid-19, além dos efeitos catastróficos nas esferas sanitária, social e econômica, tem provocado profundas reflexões em relação ao modo de vida e aos valores da sociedade contemporânea. Em tempos de um necessário isolamento físico, a arte, de modo geral, tornou-se um mecanismo de superação desses desafios, e o consumo de música, de filmes e de livros aumentou consideravelmente.

Mesmo assim, o setor cultural é um dos mais afetados pela propagação do coronavírus. A proibição de aglomerações e a constatação de que ambientes fechados e atividades como o canto são grandes disseminadores da doença fizeram com que boates, cinemas e outros espaços culturais tivessem de suspender suas atividades. Ao lado de outros "chavões pandêmicos" como o novo normal, a máxima de que a cultura foi um dos primeiros setores a parar e será um dos últimos a voltar se mostra cada dia mais verdadeira.

Especificamente no campo musical, a queda acentuada no número de shows e das demais apresentações ao vivo poderia levar a um rápido crescimento no consumo de música pelo meio digital. Com mais pessoas em casa, o acesso a serviços como YouTube e Spotify, por exemplo, aumentaria, e parte da receita perdida pelos artistas seria recompensada pelo streaming. Porém, a realidade não é essa.

O direito autoral, segundo a sistemática instituída pela Lei 9.610/98 [1], é subdividido em dois: os direitos de autor propriamente ditos e os direitos conexos. A primeira categoria refere-se ao compositor e ao letrista, ou seja, aos criadores de determinada obra. Já a segunda refere-se aos intérpretes executantes, músicos acompanhantes, produtores fonográficos e empresas de radiodifusão, ou seja, componentes que, embora não tenham criado a obra, são fundamentais para a sua perpetuação, seja na exteriorização (intérpretes e músicos acompanhantes), seja na concepção econômico-musical (produtores fonográficos), seja na transmissão da mesma (empresas de radiodifusão).

De uma forma geral, os músicos acompanhantes e os produtores fonográficos sempre foram relegados a segundo plano. Apenas o intérprete obtinha reconhecimento. Mesmo em tempos em que a música gravada ainda detinha maior relevância mercadológica, como na venda de LPs e CDs, tal quadro se mantinha.

A remuneração em relação aos fonogramas, ou seja, às gravações em si, sempre foi desfavorável para os titulares de direitos conexos. Segundo matéria da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus) [2], a remuneração pela execução dos fonogramas é feita da seguinte forma: dois terços são de direitos autorais, devidos aos compositores, e um terço é de direitos conexos, devidos aos respectivos titulares. Desse um terço, 41,7% vai para o intérprete, 41,7% para o produtor fonográfico e 16,6% para os músicos acompanhantes.

Com o advento da internet, a remuneração da música gravada sofreu uma deterioração ainda maior. Até a estruturação de um mercado digital, a pirataria e os downloads ilegais fizeram com que as vendas de CDs sofressem uma forte queda, abalando o mercado fonográfico.

Posteriormente, com o crescimento das plataformas de streaming, a questão acerca da remuneração dos titulares de direitos autorais se tornou central. Os baixos valores pagos pelas plataformas aos referidos titulares impedem que as gravações disponibilizadas em tais serviços sejam, concretamente, uma fonte de renda viável para os atores principais da cadeia musical.

Segundo pesquisa realizada pelos sites Digital Music News e The Trichordist em 2019 [3], a taxa paga por stream mais alta é a do Napster, a qual é de US$ 0, 019 (em cotação atual, R$ 0,097). Entre os serviços mais famosos, a Apple Music é a que paga melhor, com uma taxa por stream de US$ 0,007 (R$ 0,036). Outras plataformas, como Deezer e Spotify, têm taxas ainda menores. Porém, o último lugar fica com uma das plataformas mais usadas: o YouTube paga apenas US$ 0,00069 (R$ 0,0035) por visualização.

Em termos mais concretos, para se atingir um salário mínimo anual de R$ 17.500 seriam necessários 470.857 streams na Apple Music e 5.015.652 de visualizações no YouTube, segundo dados de uma pesquisa realizada esse ano pelo site Broad Band Choices [4].

Com valores tão baixos, é compreensível que as apresentações ao vivo possuam um peso considerável na renda dos componentes da cadeia musical. Em momentos em que esse tipo de evento não é possível, como agora na pandemia, a queda na renda, em alguns casos, ocasiona situações que afetam a subsistência de intérpretes, compositores, músicos acompanhantes e produtores fonográficos.

Além disso, um agravante nessa situação é o fato de que o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), órgão responsável pelo recolhimento dos direitos autorais e conexos no Brasil, não reconhece o streaming como uma situação de reprodução de fonogramas. Segundo consta no artigo 43 do Regulamento de Distribuição da referida instituição, "a distribuição das rubricas Streaming de música e audiovisual será realizada de forma direta, com base na programação encaminhada por cada usuário responsável, por meio de arquivo eletrônico, e contemplará os titulares de direito de autor" [5].

Como consequência desse dispositivo, os titulares de direitos conexos (intérpretes, produtores fonográficos e músicos acompanhantes) não recebem pelos streams das gravações das quais participaram. Tal situação impede a inserção desses titulares na já tão pequena parcela paga pelas plataformas.

Não reconhecer que no serviço de streaming ocorre a reprodução de um fonograma é um equívoco conceitual, uma vez que o que se disponibiliza em tais serviços é justamente o arquivo de áudio, a gravação de determinada obra, sobre a qual incidem tanto os direitos autorais quanto os conexos.

Além disso, entendimento diverso implica em tratar desigualmente segmentos que utilizam o mesmo produto, uma vez que, em relação às rádios, o mesmo Regulamento do Ecad dispõe que:

"Artigo 26 — A distribuição das rubricas de Rádios + Direitos Gerais será realizada por região geográfica (Centro-Oeste, Nordeste, Norte, Sudeste e Sul) e contemplará os titulares de direitos de autor e conexos das execuções musicais identificadas automaticamente originárias, exclusivamente, das planilhas de programação fornecidas pelas emissoras ou da gravação simultânea, realizada pelo Ecad, das rádios que transmitem sua programação via internet, na forma de Simulcast". (grifo do autor) [6].

Em tempos em que o consumo de música se intensifica mediante novas e antigas formas de veiculação, é necessário que todos os seus participantes recebam reconhecimento e remuneração condizentes com o papel que desempenham.

Portanto, o aumento das taxas de stream pagas pelas plataformas aos detentores de direitos autorais, bem como a revisão do Regulamento de Distribuição do Ecad, para que se incluam os titulares de direitos conexos nas execuções provenientes desses serviços, são urgentes e necessárias.

Tais ações conduziriam para a garantia de receita em relação a todos os elos da cadeia criativa, para a redução do nível de apreensão da indústria musical e para o reconhecimento do trabalho de inúmeros profissionais que, mesmo nos bastidores, são responsáveis para que a música se exteriorize, difunda-se e se eternize nos ouvidos, na cabeça e nos corações dos que dela se utilizam.

 


[1] BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Arts. 1° e 5°, incs. XI, XII e XIII. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20.02.98. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm. Acesso em: 3/8/2020.

[2] SOARES, Júnior. O papel de cada um no fonograma. Associação Brasileira de Música e Artes (ABRAMUS). s.d. Disponível em: https://www.abramus.org.br/noticias/10438/o-papel-de-cada-um-no-fonograma-isrc/. Acesso em: 3/8/2020

[3] REDAÇÃO MM. Bastidores do Streaming: saiba o valor que as plataformas como YouTube, Spotify, Deezer e Apple Music pagam aos artistas. Mundo da Música. 07 de maio de 2019. Disponível em: https://mundodamusicamm.com.br/index.php/digital/item/267-bastidores-do-streaming-saiba-o-valor-que-as-plataformas-como-youtube-spotify-deezer-e-apple-music-pagam-aos-artistas.html#:~:text=Em%202017%2C%20a%20popular%20plataforma,333%20reprodu%C3%A7%C3%B5es%20totais%20no%20YouTube. Acesso em: 3/8/2020.

[4] CLIFFORD, Dan. Sing for your Supper. Broad Band Choices. 02 de março de 2020. Disponível em: https://www.broadbandchoices.co.uk/features/sing-for-your-supper. Acesso em: 3/8/2020.

[5] ECAD. Regulamento de Distribuição. Pág. 37. Disponível em: https://www3.ecad.org.br/eu-faco-musica/Documents/regulamento_de_distribuicao.pdf. Acesso em: 3/8/2020.

[6] Ibidem, pág. 26.

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    é graduando em Direito na Universidade de Brasília (UnB) e foi monitor da disciplina de Direito Industrial na referida instituição de ensino.

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