Opinião

Politização sanitária: uma questão ideológica?

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12 de agosto de 2020, 6h35

Busca-se neste breve artigo inferir sobre a politização sanitária. A tese é que o fenômeno é ligado ao populismo e não, como sugere o lugar comum atual, a uma questão ideológica de direita conservadora.

Em 1936 a fosfoetanolamina foi isolada no Canadá e nos anos 90 o químico Gilberto Orivaldo Chierice começou a pesquisá-la no Instituto de Química da Universidade de São Paulo, campus de São Carlos. O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI), em 2015, buscou atestar a segurança e eficácia do que ficou conhecido como a pílula do câncer.

Após pressões de todo tipo para que virasse um medicamento de uso em massa contra a neoplasia maligna, mesmo sem os registros devidos e sem os protocolos científicos apropriados, o Congresso Nacional trouxe para si o problema da ausência de estudos comprobatórios sobre a cura do câncer através da fostoetanolamina. Assim, o Parlamento brasileiro aprovou um projeto de lei que liberava o uso da fosfoetanolamina sintética sem o devido registro na Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Academia Brasileira de Ciências, a Associação Médica Brasileira, o Ministério da Saúde e o próprio MCTI opinaram contra a sanção da lei que liberava o uso da pílula do câncer.

Se um dia a pílula do câncer será aceita pelo protocolo científico — ou não —, em nada altera a problemática da politização sanitária, pois no momento da promulgação da lei não havia a seqüência de atos técnicos que atestariam a eficácia e a possibilidade de uso em massa (em virtude dos efeitos colaterais) do medicamento. Também não está em discussão o uso alternativo ou como ultima ratio para casos terminais. A questão é a solidez de uma política pública que depende, essencialmente, de uma condição inicial técnica.

A presidente Dilma Roussef, que já enfrentava resistência política e eleitoral, achou por bem sancionar a lei (em 13 de abril de 2016). Ante a resistência da comunidade científica, a sanção da Presidência soou como uma medida populista.

Em maio de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal suspendeu a eficácia da Lei 13269/2016 via medida cautelar proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 5501, requerida pela Associação Médica Brasileira (AMB), sob o fundamento que sua liberação era incompatível com os direitos fundamentais à saúde (artigos 6º e 196 da Constituição), à segurança, à vida e a dignidade da pessoa humana.

O STF já havia enfrentado diversas vezes a controvérsia sobre o fornecimento de medicamentos necessários ao tratamento de enfermidades (v.g. STA 175 AgRg, Gilmar Mendes). Mas no caso da pílula do câncer, a questão jurídica era especificamente a dispensa erga omnes, dada pela Lei 13269/2016, do registro sanitário da fosfoetanolomina sintética. Disse o Ministro Marco Aurélio, relator da ADIN: "é no mínimo temerária e potencialmente danosa a liberação genérica do medicamento sem a realização dos estudos clínicos correspondentes, em razão da ausência, até o momento, de elementos técnicos assertivos da viabilidade da substância para o bem-estar do organismo humano".

O ministro Luis Barroso acrescentou que tal lei era uma "clara afronta ao direito à saúde" e que, no caso, "o Poder Legislativo substitui o juízo essencialmente técnico da Anvisa, por um juízo político, interferindo de forma indevida em procedimento de natureza tipicamente administrativo".

O saudoso ministro Teori Zavascki ressaltou que "é certo que o legislador pode disciplinar a matéria. O Sistema Único de Saúde (SUS) atua nos termos da lei, todavia, não parece constitucionalmente legítimo que o legislador, além de legislar, assuma para si uma atividade tipicamente executiva".

Já o ministro Luis Fux relembrou o problema do perigo inverso, uma vez que o uso da substância não estava acompanhado de estudos sobre os efeitos colaterais. O ministro Ricardo Lewandowski, então presidente da corte, disse que "Não me parece admissível que hoje o Estado sobretudo no campo tão sensível que é o campo da saúde, que diz respeito à vida e à dignidade da pessoa possa agir irracionalmente, levando em conta razões de ordem metafísica ou fundado em suposições que não tenham base em evidências científicas".

O ministro Edson Fachin abriu a divergência, dando interpretação conforme a Constituição à lei da pílula do câncer. Disse que a lei atacada seria constitucional quando aplicável em casos em que não houvesse mais opções eficazes contra a neoplasia maligna: "Em tais casos, pode o Congresso Nacional, no exercício da sua competência privativa para regular o funcionamento do Sistema Único de Saúde, reconhecer o direito de pacientes terminais agirem, ainda que tendo que assumir riscos desconhecidos, em prol de um mínimo de qualidade de vida" e que a Anvisa não deteria a competência privativa para autorizar a comercialização de toda e qualquer medicamento, podendo o Congresso Nacional autorizar a produção com a dispensa de registro na Anvisa em situações excepcionais.

Acompanharam a divergência os ministros Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

O ponto que levanto não é o da judicialização da saúde, em que a problemática é muito mais afeta ao debate orçamentário. O pano de fundo da ADIN 5501-MC foi a politização de uma questão técnica e, por isso, a maioria do STF decidiu pela concessão da cautelar. Não se tem muitas dúvidas que a decisão do tribunal seria outra se o caso fosse sobre a competência para legislar do Congresso Nacional; se a discussão fosse, claramente, acerca da competência de o Congresso Nacional decretar leis sobre competências normativas de agencias reguladoras, certamente o resultado seria outro. Mas o que estava em jogo, contudo, era o caráter populista da liberação de um medicamento sem a anuência dos órgãos técnicos.

O objetivo desse singelo artigo é alertar que há precedente recente que demonstra a politização do uso de medicamentos em outro ambiente ideológico da condução da política nacional. Isso porque é comum as manchetes trazerem a politização do uso da cloroquina, no combate à Covid-19, como se isso fosse uma idiossincrasia da gestão Trump e líderes alinhados. Claro que atualmente há a figura do negacionismo, que difere a questão por atacar também a doença (e não somente as ilusões sobre o processo de cura). Todavia, no campo do uso de medicamentos, há precedente que supera a tese de que a politização da vigilância sanitária é exclusividade de uma ideologia de direita conservadora.

A Lei 13269/2016 teve seu processo legislativo como de iniciativa parlamentar. Isso não é tão óbvio como parece, pois no Brasil o Poder Executivo é um autor recorrente do processo legislativo. Iniciado na Câmara dos Deputados, o PL 4639/2016 foi de autoria de deputados de diversos partidos (PT, PPS, PRB, PP. PR, PMBD, PSDB, PSC, PSB, PSD, PTN. PHS e DEM). A amplitude do espectro ideológico dos parlamentares que assinaram a autoria do PL é claro indicativo que a politização sanitária não é exclusividade de uma ideologia. Logo, não é uma questão ideológica.

O projeto derivou do Grupo de Trabalho da Fosfoetonolamina da Comissão de Seguridade Social e Família, especificamente de proposições dos deputados Sostenes Cavalcante, Celso Russomano, Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro. Apenas como curiosidade, ainda que declarada cautelarmente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ao que se tem notícia, talvez essa foi a única proposta a virar lei de autoria do então deputado Jair Bolsonaro em seus diversos mandatos.

A questão que ponho a debate é que a politização de medicamentos não é exclusividade dos tempos de Covid-19 e tampouco ideológica, como prova o caso da pílula do câncer. Certo, no cenário atual da pandemia fica mais clara a politização da saúde e o caso da cloroquina toma as manchetes e os debates. Mas o caso da pílula do câncer nos ensina que mesmo antes do atual cenário já havia a possibilidade de discursos políticos que se sobrepõem à técnica, de maneira a produzir normas ante discursos sentimentais sobre medicamentos controversos, sempre com a roupagem de se perquirir a cura quando há o sentimento de desespero do doente. É da crise do enfermo — individualmente falando — que se constrói a politização sanitária. Assim, o debate torna-se sentimental, messiânico e busca conceder, via política pública, uma salvação ao sofredor, mesmo que essa salvação seja por um tratamento ineficaz: a política fez sua parte e ganha os louros por ter feito a norma. E essa é a característica do que chamo de populismo sanitário, que tem lideranças iluminadas que interpretam a ciência de maneira a preencher a busca pela cura dos doentes-eleitores. Com isso, a crise ciência-doença-cura é solucionada por uma norma estatal: encerra-se o ciclo científico de pesquisa via canetaço, e é isso o que importa eleitoralmente.

Se fosse em 2011, quando Dilma tinha 74% de aprovação, teria oposto veto à lei? Minha tese é que sim. Se fosse em 2011, a presidente não precisaria lançar mão de uma medida populista para ganhar ou manter eleitores. No dia da sanção, em 2016, a presidente Dilma Roussef tinha 69% de desaprovação.

Nota-se que a politização da saúde — e sua dimensão como populismo sanitário — é diferente da judicialização da saúde, quando para um caso em concreto há uma determinação judicial de tratamento ou compra de medicamento para o caso específico. Na politização, a crise individualizada ganha contornos de politica publica com eficácia erga omnes.

A resposta para tal apropriação do debate científico por apelos políticos talvez não esteja no contexto ideológico, mas, sim, na figura do sujeito político que, no palco da política, enaltece o signo de medicamentos como "balas de prata" para determinadas doenças. A prova disso é que o projeto de lei fora de autoria de deputados de agremiações diversas. Ora, se fosse uma questão entre direita x esquerda, não teríamos deputados do PT assinando o projeto junto com o deputado Jair Bolsonaro, então filiado ao PP.

Dessa forma, há algo mais do que a ideologia (assumindo a simplificação direita x esquerda) que explica a politização sanitária. Reitero que não trato, aqui, do negacionismo, que tem claro viés ideológico. Também não busco a correlação entre o negacionismo com a politização de medicamentos. O ponto é: temos provas que em outro contexto ideológico (o caso da pílula do câncer era governo PT) houve a politização sanitária e que uma explicação forte para tal fenômeno é o caráter populista da política pública sobre medicamentos. Assim, o populismo sanitário é uma opção que não tem uma ideologia própria.

No caso da pílula do câncer, a judicialização funcionou como uma correção de rumos, como um resgate da ciência de algo que fora eleitoralmente politizado. E talvez essa seja uma característica da judicialização quando há a politização sanitária.

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