Escritos de mulher

Humanidades negociáveis? Um olhar para a infância e adolescência

Autor

  • Juliana Souza

    é advogada ativista antirracista pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

12 de agosto de 2020, 8h33

Spacca
As crianças ricas brincam nos jardins com seus brinquedos prediletos. E as crianças pobres acompanham as mães a pedirem esmolas pelas ruas. Que desigualdades trágicas e que brincadeira do destino.
Carolina Maria de Jesus

É tempo de compartilhar a dor e a ausência, ambas físicas, simbólicas e institucionais. É tempo de colher os frutos da cegueira deliberada que nos trouxe até aqui. E não há norma ou discurso que dê conta da tragédia atual, consubstanciada pelo silêncio, engendrada pela apatia, estes últimos históricos. Somos mais de 100 mil mortos, agora pela nova pandemia.

Diante do aprofundamento do abismo autoritário e constantes ameaças à nossa jovem e frágil democracia, em que uma sociedade racializada tenta por meio do Poder Judiciário satisfazer sua sanha punitivista travestida de justiça, o Sistema de Justiça parece sucumbir ao mesmo achaque. Prendemos muito e prendemos mal. Sistema carcerário das coisas inconstitucionais. Ineficiência estatal no que se refere à proteção, à promoção e à defesa dos mais vulnerabilizados. O Estado-repressão é o mesmo que se furta de seus deveres constitucionais. Não à toa, análise de Michelle Alexander nos cai como uma luva, ao dizer que "poderíamos escolher ser uma nação que oferece cuidado, compaixão e atenção àqueles que estão trancados e excluídos ou aos que são encaminhados para prisão antes mesmo de terem idade para votar. Poderíamos desejar a eles as mesmas oportunidades que desejamos para nossos filhos; nós poderíamos tratá-los como um um de 'nós'. Poderíamos fazer isso. Ou podemos escolher ser uma nação que humilha e culpa seus mais vulneráveis, lhes dá uma marca de desonra na mais tenra idade, e depois relega a um status permanente de cidadãos de segunda classe"1.

É neste cenário o que se inserem crianças e adolescentes, sujeitos de direitos, entendidos enquanto prioridades absolutas de acordo com o artigo 227 da Constituição da República de 1988.

Sem olvidar os esforços dispensados pela sociedade civil organizada na criação de marcos legais que superassem a doutrina da situação irregular, o que ocorreu em teoria, infelizmente, analisando-se sob a ótica dos fatos e da prática adotada no Brasil, o que se constata é um preocupante quadro de desigualdades no acesso à direitos elementares para crianças e adolescentes.

Análise dos principais atos infracionais envolvendo adolescentes demonstra a recorrência do tráfico de drogas e do roubo, revela também uma indevida utilização da medida de internação, sendo que de acordo com o ECA ela seria medida excepcional, tendo em vista o melhor interesse do adolescente e o princípio da proteção integral, porém os magistrados e membros do Ministério Público por vezes parecem desconhecer ou simplesmente prescindir de tal legislação, aplicando medida mais gravosa. Segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público, mais de 18 mil adolescentes estão em privação de liberdade por tempo indeterminado no Brasil, para as 16.161 vagas para internação de que o Sistema Socioeducativo dispõe.

A reversão desse quadro no Sistema de Justiça, que não é alheio à sociedade — ou não deveria ser, passa necessariamente pela revisão do papel que tem sido dado à prevenção, isto é a implementação de políticas públicas que garantam a proteção integral da criança e do adolescente, ponto que julgamos fulcral nessa discussão. Assim como acontece com as políticas de segurança pública, temos uma visão míope e reducionista, buscando atacar apenas os resultados da nossa negligência. O Sistema de Justiça precisa vestir-se de povo, não para fazer justiça com base nos quereres individuais, mas para resgatar no judiciário o seu papel cívico e democrático, aproximando a praxis da norma, já que nossos tempos nos ofertam uma jurisdição que segue reproduzindo sobre esses corpos infanto-juvenis uma política correcional, de doutrinação, de imposição de valores morais, sem qualquer preocupação, legal ou moral, com as consequências das decisões tomadas.

Há que se considerar, ainda, a efetivação do direito à cidade à crianças e adolescentes para que estejam, de fato, ocupando todos os espaços que desejarem, e tenham a possibilidade de crescer culturalmente, por meio da troca, e ainda que possam ver e ser vistos por pessoas com as quais não teriam contato normalmente, quebrando estereótipos, paradigmas e preconceitos, valorizando-se assim a riqueza da diversidade cultural e humana. Especialmente, tendo em vista que a realidade é a criminalização da pobreza e o estamento da sociedade em castas sociais e raciais, estabelecendo uma relação desigual, em que filhos de pessoas com determinada condição financeira, cor de pele e orientação sexual dificilmente terão acesso às mesmas oportunidades na vida que aquelas nascidas nos chamados berços — brancos — de ouro.

Assegurar políticas e redes de assistência social também é mister para que crianças e adolescentes tenham a devida assistência, possibilitando uma socialização e integração real da criança e do adolescente na comunidade que o circunda. Logo, profissionais, altamente qualificados e devidamente remunerados, com equipamentos e recursos necessários a um atendimento interdisciplinar são fundamentais para o atingimento da proteção integral desses sujeitos de direito. Do mesmo modo, o conselho tutelar deve atuar de modo mais integrado à comunidade.

Ainda que entendamos que é uma falácia o mote ressocializador de qualquer sistema que prive a liberdade de alguém, enquanto se fizerem necessários estabelecimentos em que adolescentes cumpram medidas socioeducativas, é vital que se garanta ao menos a dignidade dessa pessoa em formação. Para isso, há que se tornar mais frequente, constante, efetiva e qualitativa a presença de juízes corregedores neste locais, a fim de fazer com que aquele ambiente e os que lá desempenham suas funções cumpram a legislação, evitando que adolescentes sejam submetidos a quaisquer tratamentos desumanos e degradantes, bem como que tenham garantidos seus direitos à saúde, à educação, sem perder de vista a possibilidade de responsabilização do Estado se encontradas irregularidades naquele espaço.

A mídia tem também centralidade neste programa de humanização do Sistema de Justiça. Atualmente, o que se verifica é que ela tem grande contribuição na criação e difusão de estereótipos — seja pelas palavras escolhidas para descrever determinadas situações, seja nas imagens escolhidas para retratar determinado fato, seja na narrativa empregada para noticiar determinada questão. Essas escolhas impulsionam o sentimento social de impunidade com o absurdo pleito de redução da maioridade penal. Por se tratar de concessão e prestação de serviço público, mídia que se presta ao papel de propagar e difundir interesses de setores específicos da sociedade, ou quaisquer outros que não sejam os valores legais, deve ter sua concessão reavaliada a bem do interesse público.

A publicidade igualmente deve pautar-se em ideais éticos, primando pela diversidade e representatividade, não se dirigindo de maneira indevida e ilegal à crianças e adolescentes, gerando expectativas irreais e supérfluas de consumo que acarretem danos à saúde, à vida em comunidade ou ao convívio familiar e que ainda podem impulsionar irresponsavelmente o cometimento de atos infracionais, a fim de se satisfazer o anseio por um bem que a família não pode lhe conferir.

Um Sistema de Justiça mais sensível, acessível, justo e humano, não pode se furtar de compreender a conjuntura política e social em que se insere e buscar reinventar-se, obviamente adstrita aos parâmetros legais, buscando fontes nacionais e internacionais, a fim de atingir seu objetivo último que é a justiça, priorizando crianças e adolescentes e compreendendo que são elas os reflexos da sociedade que queremos ver e ser no presente, por meio de nossas práticas diárias, e no futuro por meio do que lhes proporcionarmos desde já. Não é, portanto, admissível que aquilo a que chamamos de Justiça seja um elemento reprodutor da lógica que visa a destruição máxima de parcelas da sociedade. E, é certo, que aqui falamos não apenas de tirar a vida, "mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc." (FOUCAULT, 1999, p. 306)2


1 ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

2 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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    é advogada, ativista antirracista, pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

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