Advocacia criminal

A importância de diferenciar pseudociência de ciência no exercício da advocacia

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12 de agosto de 2020, 7h56

Spacca
Recentemente, a revista da Sociedade de Medicina Vascular Clínica norte-americana publicou artigo denominado Prevalência de conteúdo antiprofissional de mídia social entre jovens cirurgiões vasculares. 1

Em resumo, seus artífices fizeram pesquisa empírica sobre perfis sociais no Facebook, Instagram e Tweeter de 480 médicos formados em cirurgia vascular entre 2016 e 2018.

O objetivo era buscar conteúdo considerado antiprofissional pelos pesquisadores, conceito que incluía: aparência embriagada, comportamento ilegal, posse de substância entorpecente, profanidade, comentários ofensivos, consumo de álcool, vestuário inadequado, comentários políticos ou religiosos controversos etc.

A conclusão foi que 61 dentre os perfis sociais pesquisados (ou 26% do total) possuíam conteúdo antiprofissional — o que deve servir de alerta sobre a exposição pública permanente desse conteúdo, acessível a colegas, pacientes e atuais ou futuros empregadores.

Dentre as fragilidades desse estudo, estão: (i) a falta de autorização da Association of Program Directors in Vascular Surgery (APDVS) para a realização da pesquisa; (ii) os vieses (conscientes e inconscientes) nos critérios de escolha dos comportamentos antiprofissionais (v.g. viés sexista na opção por fotos e filmagens de cirurgiãs usando biquínis e fantasias de Halloween provocantes etc.); (iii) a falha metodológica na adoção de categoria conceitual (profissionalismo) altamente subjetiva e tradicionalmente definida por e para homens brancos e heterossexuais, que não representa adequadamente a diversidade da comunidade de profissionais de saúde pública.

Tais vieses causaram forte reação social negativa, insuflando o movimento #MedBikini, que protestou nas redes sociais contra a discriminação de gênero. 2

Como consequência, o artigo em questão foi retratado, a pedido dos autores e editores da revista. Estes também fizeram pedido público de desculpas pelas falhas do seu processo de revisão por pares em identificar erros de design da pesquisa, uso não autorizado de dados e vieses contaminando a metodologia.

O que esse episódio pode ensinar à advocacia criminal?

Muito.

Há diferença entre o conhecimento científico confiável e a pseudociência (junk science), exemplificada pelo sobredito artigo. 3

No sistema de administração da justiça criminal, essa diferença é ainda mais importante, considerando que a adjudicação do caso por vezes exige conhecimento técnico-científico especializado, estranho ao patrimônio cultural médio do julgador e das partes.

Nessa toada, o conhecimento supostamente científico aportado nos autos do processo criminal pode ser determinante para a condenação do acusado.

Assim, para a tutela da integridade do sistema de administração da justiça criminal, são necessários standards decisórios adequados, que permitam aferição judicial casuística da cientificidade dos conhecimentos produzidos pelas partes.

O artigo 702 do Código de Direito Probatório (Federal Rules of Evidence) estadunidense regula a admissibilidade do testemunho da testemunha perita (expert witness).

Esta é considerada qualificada por conhecimento, habilidade, experiência, treinamento ou educação para depor em juízo, caso sejam preenchidas quatro condições cumulativas: (i) o seu conhecimento científico, técnico ou especializado possa auxiliar o julgador a compreender a prova, ou esclarecer fato relevante; (ii) o seu testemunho esteja baseado em dados ou fatos suficientes; (iii) o seu testemunho seja resultado de princípios e métodos confiáveis; (iv) o perito tenha aplicado adequadamente os princípios e métodos aos fatos sob julgamento.

A Suprema Corte norte-americana, nos casos Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals 4, Inc., General Electric Co. v. Joiner 5 e Kumho Tire Co. v. Carmichael 6, refinou critérios de admissibilidade judicial da prova científica, com base na precitada norma.

Esses quatro critérios cumulativos são os seguintes: (i) validade do conhecimento científico (sua susceptibilidade à verificação ou falsificação); (ii) existência de índice de erro aceitável no emprego do conhecimento; (iii) publicação do conhecimento em revistas científicas especializadas, havendo revisão crítica por pares; (iv) aceitação generalizada do conhecimento pela comunidade científica. 7

Cabe ao julgador exercer o papel de guardião (gatekeeper) da prova científica no processo penal, filtrando a sua confiabilidade com o auxílio das partes.

Há duas importantes questões subjacentes à admissão judicial da prova científica: (i) a medida em que determinado conhecimento está baseado em método científico confiável, capaz de corretamente analisar evidências e relatar achados; (ii) a medida em que os artífices desse conhecimento se baseiam em interpretação humana susceptível à contaminação por erros e vieses, em procedimentos operacionais consistentes e padrões robustos de performance.

Em suma: é importante saber se o perito é qualificado o bastante para depor sobre a prova científica, e se tal prova é confiável o suficiente para fundamentar a decisão final do julgador.

Há famoso relatório da Academia Nacional de Ciências norte-americana concluindo que infelizmente, essas importantes questões nem sempre produzem respostas satisfatórias em decisões judiciais relativas à admissão de ciência forense, apresentada em julgamentos criminais. 8

Esse relatório também apontou graves problemas sistêmicos nas ciências forenses, devido à falta de recursos, padronização, treinamento e de pesquisas revisadas por pares, aptas a comprovar a base científica e validade de muitos métodos criminalísticos.

Tal conjuntura é ainda mais grave, ao se constatar que a criminalística falha é uma das principais causas de erros judiciários nos Estados Unidos da América. 9

Entre nós, Flávio Mirza aponta que, embora o julgador esteja desvinculado do laudo pericial, podendo rejeitá-lo no todo ou em parte (artigo 182 da codificação processual penal), na prática judiciária ele tende a ser deferente à peritagem oficial, acatando-a de forma acrítica e incondicional. 10

Não obstante, o recurso judicial a conhecimentos técnico-científicos especializados não pode ir ao ponto de sacrificar valores sociais relevantes (v.g. acurácia e justiça da sentença ou veredito), ensejando autoritarismo tecnocrático incompatível com valores democráticos. 11

A Lei nº. 11.690/08 robusteceu o contraditório na produção do meio de prova pericial, prevendo os direitos das partes a: (i) aferir a qualificação técnica do perito; (ii) formular quesitos e indicar assistente técnico; (iii) fazer críticas e impugnações ao laudo pericial; (iv) requerer o depoimento judicial do perito, para esclarecer a prova ou responder a quesitos; (v) examinar o objeto da perícia no ambiente do órgão oficial, salvo se for impossível a sua conservação.

Nesse contexto, cabem ao Advogado dois deveres éticos: (i) não requerer produção de prova defensiva que ele sabe, ou razoavelmente deve saber, consistir em pseudociência; (ii) impugnar vigorosamente prova da parte acusadora que ele sabe caracterizar junk science. 12

Janis Puracal e Aliza Kaplan apontam estratégias que devem nortear tal impugnação da pseudociência em juízo. 13

Qualquer tipo de conhecimento científico comporta dois critérios de validade da prova: fundacional e na aplicação.

Para ter validade fundacional, em linhas gerais, o método precisa ser submetido à testagem empírica por múltiplos grupos de pesquisadores, em condições adequadas. Os estudos devem demonstrar que tal método é repetível, reproduzível e capaz de proporcionar estimativa válida da sua acurácia, indicativa da sua adequação ao uso intencionado.

Uma vez demonstrada sua validade fundacional, para o método ter validade na aplicação é preciso: (i) demonstração de que o perito tinha capacidade de aplicar o método de modo confiável, e o fez no caso concreto; (ii) validade científica das conclusões do perito, incluindo referências à margem de erro, à sensibilidade do método e à relevância das amostras dos estudos fundacionais para o caso concreto. O perito deve se abster de fazer alegações e inferências que vão além das evidências empíricas, e da aplicação de princípios estatísticos válidos. 14

Esses dois critérios são cumulativos e independentes. Ou seja: há métodos sem validade fundacional (v.g. identificação criminal por marcas de mordidas etc.) e métodos que, malgrado tenham validade fundacional (v.g. exame de DNA etc.), podem ser aplicados casuisticamente sem rigor científico.

A aplicação de qualquer método implica suposições feitas pelo perito, que em regra permanecem implícitas no laudo pericial. Quanto tal método é usado para incriminar o cliente, é dever ético do Advogado desvelar quais são essas suposições que põem em causa sua validade fundacional, ou sua validade na aplicação.

Para tanto, são sugeridas as seguintes estratégias: (i) contratação de assistente técnico, para auxiliar na compreensão do método, na preparação das perguntas para o exame cruzado do perito etc.; (ii) aprendizado do conhecimento científico necessário; (iii) busca de erros nos procedimentos de coleta e documentação dos vestígios do crime, na validade fundacional e na validade na aplicação do método, na fundamentação do laudo pericial etc.; (iv) atenção às variações linguísticas empregadas pelo perito, que podem ocultar sutilezas relevantes; (v) diagramação das etapas do raciocínio lógico do perito, inversamente a partir das conclusões, buscando conexões sem embasamento em método científico confiável.

Em nosso sistema processual penal, é possível o pedido de esclarecimentos do perito oficial em juízo.

Essa estratégia é delicada, porque o perito possui cabedal de conhecimento técnico-científico consideravelmente maior do que o Advogado. Logo, o enfrentamento direto do perito, durante o exame cruzado, pode ser um tiro que sai pela culatra.

Nesse caso, o Advogado deve preparar seu exame cruzado pesquisando: (i) a veracidade das qualificações atribuídas ao perito (v.g. formação acadêmica, habilitação técnica, filiações institucionais, publicações científicas, certificações etc.); (ii) a aplicabilidade da área de especialização do perito à questão objeto da perícia; (iii) a correção das suposições fáticas subjacentes ao raciocínio do perito; (iv) a acurácia e confiabilidade das fontes (v.g. cálculos, dados, estatísticas, estudos etc.) usadas pelo perito; (v) o cumprimento de protocolos técnicos (v.g. na coleta da amostragem, nos exames laboratoriais forenses etc.); (vi) os fatos que o perito desconhece, susceptíveis de colocar em xeque suas conclusões; (vii) os vieses, interesses e preconceitos do perito, que podem contaminar suas conclusões; (viii) o método empregado em si, quanto à aceitação por pares, acurácia, aplicabilidade, sensibilidade, especificidade, fragilidade, publicação etc.; (ix) as conclusões do perito, verificando se elas têm suporte no exame realizado, na margem de erro, na especificidade desse exame etc., e se houve omissão de informações relevantes, potencialmente favoráveis à defesa; (x) quais são as possíveis formas de manipulação do método etc. 15

É lícito concluir que o manejo de conhecimentos pseudocientíficos no âmago do sistema de administração da justiça criminal apresenta consideráveis desafios à defesa técnica efetiva do acusado.

1 HARDOUIN, Scott et alii. Prevalence of unprofessional social media content among young vascular surgeons, In: Journal of Vascular Surgery, v. 72, n. 02, pp. 667-671, August 2020.

2 GOLDBERG, Emma. Women doctors ask: Who gets to decide what’s ‘professional’?, In: The New York Times, Aug 2, 2020.

3 Essa expressão junk science é originária da seguinte obra: HUBER, Peter. Galileo’s revenge: Junk science in the courtroom. New York: Basic Books, 1991.

4 509 US 579 (1993).

5 522 US 136 (1997).

6 526 US 137 (1999).

7 BADARÓ, Gustavo. Epistemologia judiciária e prova penal, pp. 181 e ss. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019; KNIJNIK, Danilo. Prova pericial e seu controle no direito processual brasileiro, pp. 87 e ss. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

8 No original: Unfortunately, these important questions do not always produce satisfactory answers in judicial decisions pertaining to the admissibility of forensic science evidence proffered in criminal trials (NATIONAL ACADEMY OF SCIENCES. Strengthening forensic science in the United States: A path forward, p. 09. Washington: The National Academies Press, 2009).

9 GARRETT, Brandon; NEUFELD, Peter. Invalid forensic science testimony and wrongful convictions, In: Virginia Law Review, v. 95, n. 01, pp. 01-97, 2009.

10 MADURO, Flávio Mirza. Prova pericial: Em busca de um novo paradigma, pp. 184 e ss. Juiz de Fora: Editar, 2016.

11 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução, pp. 332 e ss. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

12 THORNBURGH, Dick. Junk science: The lawyer’s ethical responsibilities, In: Fordham Urban Law Journal, v. 25, n. 03, pp. 449-469, 1998.

13 PURACAL, Janis; KAPLAN, Aliza. Science in the courtroom: Challenging faulty forensics, In: The Champion, January/February 2020.

14 PRESIDENT’S COUNCIL OF ADVISORS ON SCIENCE AND TECHNOLOGY. Forensic science in criminal courts: Ensuring scientific validity of feature-comparison methods, September 2016. Disponível em: https://obamawhitehouse.archives.gov/sites/default/files/microsites/ostp/PCAST/pcast_forensic_science_report_final.pdf

15 MILLER, Lee Waldman. Cross-examination of expert witnesses: Dispelling the aura of reliability, In: University of Miami Law Review, v. 42, pp. 1.073-1.099, 1988; O’BRIEN, Thomas; O’BRIEN, David. Effective strategies for cross-examining an expert witness, In: Litigation, v. 44, n. 01, pp. 26-30, 2017; SIMS, Dorothy Clay. Cross-examining the expert witness: Do’s and don’ts and an occasional maybe, In: The Champion, January/February 2012.

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