Opinião

Quem é mais legítimo para propor suspensão de liminar?

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12 de agosto de 2020, 17h13

Surgido nos anos 1930 sob a égide da "era Vargas", notadamente a partir dos marcos normativos da Constituição Federal de 1934 e da Lei 191/36, o instituto da suspensão de liminar, projetado inicialmente para resolver um problema específico de recorribilidade, foi paulatinamente sendo conformado interpretativa e legislativamente até adquirir a ampla feição que atualmente possui.

Indiferente às diversas mutações temporais não foi a legitimidade ativa para se deflagrar a suspensão, verdadeiro pressuposto processual preliminar à análise de mérito que diz respeito à pertinência subjetiva ente aquele que deduz uma pretensão em juízo e o objeto material da disputa.

No caso específico da suspensão, Elton Venturi elucida que "como primeira condição de admissão dos pedidos de suspensão, a legitimação ativa implica necessidade de averiguação a respeito da existência de uma referibilidade subjetiva entre o requerente e a pretensão de salvaguarda dos interesses públicos tutelados" [1].

Desde o nascimento do instituto da suspensão com o artigo 13 [2] da Lei nº 191/36, a "pessoa de direito público interessada" (União, Estados, municípios e respectivas autarquias e fundações públicas) sempre teve a possibilidade de formular o pleito suspensivo para suspender a eficácia de decisões que lhe sejam desfavoráveis, evidentemente desde que demonstrados os pressupostos objetivos que autorizam a deflagração do incidente, isto é, a grave lesão a ordem, saúde, segurança e, partir de 1964, a economia pública. Vale dizer, o instituto surgiu como uma prerrogativa processual típica do Estado.

Já sob a vigência da Constituição de 1988, notadamente por conta de seu artigo 175, caput [3], abriu-se definitivamente [4] à iniciativa privada a possibilidade de atuação como uma longa manus do Estado na execução de serviços públicos e prestação de atividades consideradas essenciais sob as figuras jurídicas concessão, autorização e permissão.

Nada mais natural, portanto, que em razão do exercício constitucional de funções públicas essenciais por pessoas jurídicas de direito privado, que se outorgasse a elas a legitimidade ativa para defender o interesse público primário quando houver fundado receio de que a execução de decisão coloque em risco um serviço essencial por elas prestado. Daí a jurisprudência [5] ter conferido às pessoas jurídicas de direito privado legitimidade ativa para deduzir um pedido suspensivo, mesmo sem expressa autorização legislativa para tanto.

Atualmente, a jurisprudência do STF e do STJ vem evoluindo para permitir que mesmo partidos políticos [6], agente público individualmente afastado de suas funções públicas [7], Defensoria Pública [8], Tribunais de Contas e demais órgãos despersonalizados quando em defesa de suas prerrogativas institucionais [9], deflagrem o pedido de suspensão quando preenchidos os pressupostos autorizadores da medida e quando estiverem em defesa do interesse público primário.

Se por um lado a ampliação subjetiva do rol de legitimados ativos para tutelar o interesse público para deflagrar o pedido de suspensão pode ser reputada como positiva na medida em que pluraliza subjetivamente um procedimento excepcional e invasivo a direitos fundamentais, tornando-o mais democrático; por outro, tal extensão e reconhecimento da legitimidade ativa ad causam a outros atores que não apenas o poder público, entendido enquanto pessoa jurídica de Direito público, traz consigo a candente possibilidade de um conflito entre pretensões suspensivas concorrentes acerca de um mesmo interesse público primário ou mesmo de conflitos entre "níveis" de interesse público primário.

Isto é, abre-se a possibilidade de, em uma mesma relação jurídico-processual, ou mesmo fora dela, quando o poder público é meramente "interessado", ocorrerem conflitos entre quem detém, quem exerce e quem efetivamente defende o interesse público. É o caso, por exemplo, dos conflitos não raro surgidos entre concessionárias de serviços públicos essenciais x Estado, notadamente do Estado enquanto titular da outorga de concessão e que, em princípio, representa e é o interesse público por excelência.

Todavia, há situações peculiares nas quais a execução de decisões concedidas a favor do poder público (stricto sensu), ou seja, que não sejam desfavoráveis ao Estado e que a princípio não ensejariam uma eventual suspensão, acarretam graves danos a regular execução das atividades essenciais prestadas por uma concessionária de serviço público, pessoa jurídica que, apesar de se qualificar como de direito privado, exerce uma função pública.

Daí que se materializa e se desvela o dilema acima levantado: quem é a parte que detém maior legitimidade para se arrogar no direito de avocar para si a defesa do interesse público primário? Ou melhor, quem efetivamente tem o poder e goza de maior credibilidade perante os tribunais para enunciar que representa o interesse público primário lesado pelos efeitos de um provimento jurisdicional?

Na prática, nem sempre essas questões são postas num caso concreto de forma clara e evidente de modo que se possa estabelecer qual pretensão é juridicamente correta ou qual posição é apenas retoricamente convincente. Parece intuitivo, sobretudo por conta da própria acepção histórica que se formou no imaginário de quem é o Estado (stricto sensu), que um primeiro raciocínio considere que é o poder público, no sentido de Administração, o proprietário do conceito de interesse público.

Afinal, se num conflito contra uma pessoa jurídica de direito privado que exerce função pública o próprio titular dessa concessão ou desse interesse estatal por excelência é quem diz que não há bens primários a serem tutelados, quem dirá o contrário? É o próprio Estado dizendo que não há violação a interesse seu.

A propósito, essa tem sido há algum tempo a tônica da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Em 2014, a Corte Especial, ao julgar o AgRg na SLS 1874, anotou o seguinte a respeito de um pedido de suspensão formulado por uma concessionária: "No caso dos autos, não há como se reconhecer que a empresa pública esteja atuando na defesa de interesse público primário, uma vez que o próprio Município de São José do Cedro que é o titular da competência constitucional para organizar e prestar os serviços públicos de interesse local (CF, artigo 30, V) pleiteou a retomada do serviço de água e esgoto da recorrente em virtude dos problemas constatados em sua prestação. Diante disso, falece legitimidade à empresa para ajuizar o pedido de suspensão".


 

 

 

Outro elemento jurisprudencial que incrementa a complexidade do debate consiste na circunstância de que o STJ, por premissa, não conhece de pedido suspensivo formulado pelo poder público (lato sensu) quando este não figure no polo passivo de ação judicial.

 

Na SLS 2635, o STJ não conheceu da medida de contracautela proposta por concessionária de distribuição de energia elétrica ao argumento de que "a tramitação de ação cognitiva originariamente proposta contra o Poder Público é pressuposto para que o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso possa suspender a execução de decisões. Isso porque o propósito do instituto da suspensão de segurança é reparar situação inesperada a que o Poder Público possa ser submetido" (AgInt na SLS n. 2.272/MA, relatora Ministra Laurita Vaz, DJe de 14/9/2017; e EDcl nos EDcl no AgRg na SS n. 2.753/BA, relator Ministro Francisco Falcão, DJe de 14/4/2016) (grifo dos autores).

Em sede doutrinária, Marcelo Abelha Rodrigues sustenta que: "Tal instituto foi criado como meio processual para que o Poder Público, na condição de réu, possa dele valer-se para impedir que uma decisão judicial, provisoriamente executada, tenha eficácia que cause risco de lesão a determinado interesse público. Por isso, a finalidade do instituto é amordaçar a eficácia executiva de uma decisão proferida contra o Poder Público, para que se mantenha de pé e intacta uma situação jurídica anterior ao processo". [10] (grifo dos autores).

Conquanto esse seja o posicionamento quase unânime na jurisprudência do STJ, em algumas poucas, mas relativamente recentes ocasiões, a corte sinalizou que pessoas jurídicas de Direito privado, concessionárias de serviços públicos, mesmo não sendo rés em ações originárias e mesmo que litiguem contra o poder público (stricto sensu), possuem legitimidade ativa ad causam para deduzir pedidos de suspensão.

É o que ocorreu na SLS 2485. No caso, uma concessionária de serviço aeroportuário ajuizou medida de contracautela à Presidência do STJ buscando suspender a eficácia da decisão liminar proferida em agravo de instrumento interposto pela ANAC perante o TJ-SP "que, no âmbito do processo de recuperação judicial de n.º 1125658-81.2018.8.26.0100, suspendera (até Assembleia Geral de Credores a ser realizada na primeira quinzena de abril de 2019) ações judiciais e medidas administrativas que tivessem por fim a apreensão ou qualquer ato de constrição de aeronaves e (ou) motores que estivessem então sob a posse da Autora (recuperanda)".

Ao conhecer e deferir o pedido da concessionária, o ministro presidente anotou o seguinte: "Para além do valoroso interesse de preservação da empresa, deve-se ressaltar a importante função social da tentativa de recuperação de sua saúde financeira para a proteção de interesses de funcionários, consumidores, fornecedores e parceiros de negócio, bem como do próprio mercado de transporte aéreo nacional. Conclui-se, portanto, que a suspensão da decisão proferida pelo Juízo falimentar no que concerne à atuação da ANAC compromete diretamente a viabilidade da recuperação econômica da requerente, provocando grave lesão à ordem e à economia públicas".

Interessante notar que as razões do recurso interposto pela autarquia se apoiavam justamente nos pressupostos formais até então utilizados pela corte para negar conhecimento a pleitos suspensivos da mesma natureza. Eis algumas das teses: I) na origem, não houve ação proposta contra o poder público, tratando-se de ação de recuperação judicial; II) "uma concessionária de serviço público não pode se utilizar da suspensão de liminar contra atos do próprio Poder Concedente, titular do serviço público concedido, responsável pela fiscalização da correta execução da concessão e da exploração dos serviços" (fl. 339).

Já na SS 3048, o ministro presidente do STJ deferiu pedido de liminar em favor de empresas concessionárias de serviços de telecomunicações em recuperação judicial que buscavam suspender na corte decisão do TRF-2 que, deferindo medida liminar em mandado de segurança impetrado pela União, sustou a decisão do juízo da recuperação judicial que as dispensara da exigência de apresentação de certidões negativas para o exercício de suas atividades e para a participação em procedimentos licitatórios com o poder público. Há outros casos [11].

Todavia, talvez mais importante que observar o comportamento jurisprudencial do STJ ao longo do tempo e das circunstâncias fáticas de cada momento, seja desnaturalizar a própria premissa hermenêutica que informa o conceito e o imaginário do que seja o interesse público. Apesar de historicamente o Brasil ser um país de tradição patrimonialista, em que os interesses da coisa pública se confundem com a coisa privada, a ideia de pessoas jurídicas de direito privado exercerem um munus publico é consideravelmente recente na nossa tradição administrativa e constitucional. A própria concepção de um Estado regulador que apenas indiretamente se imiscui na exploração econômica de serviços públicos reputados constitucionalmente como essenciais é relativamente recente [12].

aí se associar imediatamente a ideia de poder público e interesse público à própria figura do Estado enquanto conjunto de pessoas jurídicas de direito público. Exatamente essa é a linha de raciocínio desenvolvida pela ANAC na aludida SLS 2485. A autarquia dedicou todo um capítulo de seu agravo interno para demonstrar que a concessionária "não é, em absoluto, poder público para se legitimar a utilizar da excepcional via da suspensão de liminar e sentença" (fl.338). 

 fato é que, para além da própria ideia do que seja e quem materialize o interesse público a justificar o cabimento da suspensão, há um conflito conceitual implícito ainda mais instigante que no fundo pode ser resumido na indagação acima suscitada: Quem possui a última palavra perante os tribunais para se arrogar verdadeiramente legítimo para tutelar o interesse público?

Parece-nos que não há uma resposta pronta e acabada endereçada a tal problema, muito embora haja uma tendência cada vez mais acentuada de ampliação da busca de espaços de legitimação pelas pessoas jurídicas de direito privado que exercem munus público. É o caso a caso e as circunstâncias peculiares de situações concretas que fornecerão a resposta potencialmente adequada. Afinal, como anotou Abhner Youssif Mota, a própria lei da suspensão indica causas de "natureza eminentemente política e extrajurídica, diferenciando-se das causas que geralmente justificam outros meios de impugnação de decisões judiciais” e que se revelam como “conceitos jurídicos indeterminados, a serem apreciados pelo julgador perante o caso concreto" [13].


 

 

 

Mais do que isso, é a experiência histórica e institucional de cada local e cada país que dirá o que é e quem representa o interesse público em cada situação específica. No Direito norte-americano, a figura jurídica dos litígios de interesse público (Public interest litigation -PIL), que não se confunde com a suspensão de liminar do direito brasileiro, é vocacionada a promover a concretização dos direitos humanos ou a suscitar questões de grande interesse público em favor de grupos ou indivíduos minoritários ou desfavorecidos.

 

Distintamente da tradição brasileira de tutela do interesse público, excessivamente vinculada ao Estado, no direito indiano, por exemplo, em que o instituto também é utilizado, "qualquer pessoa dedicada à causa pública pode deflagrar um litígio de interesse público (PIL) em nome de um grupo de pessoas cujos direitos são afetados. Não é necessário que a pessoa que apresenta um caso tenha interesse direto neste litígio de interesse público. Por exemplo: Uma pessoa em Mumbai pode registrar um litígio de interesse público por mortes por desnutrição em Orissa. Alguém pode propor um PIL perante a Suprema Corte contra uma fábrica de biscoitos que está empregando trabalho infantil. Qualquer pessoa pode ajuizar um PIL em nome de um grupo de pessoas afetadas" [14].

Seja como for, o que nos parece certo é que esse conflito subjetivo entre quem pode efetivamente deduzir pedido de suspensão de liminar revela uma disputa simbólica de poder entre legitimados concorrentes a pretensões conflitantes em torno de uma mesma situação jurídica, em que o conceito de interesse público surge como um campo no qual as batalhas por quem pretende deter a última e mais persuasiva palavra sobre a sua titularidade se desenrola.

 


[1] VENTURI, Elton. suspensão de liminares e sentenças contrárias ao poder público. 3.ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo: Malheiros, 2017, p. 108.

[2] "Nos casos do artigo 8º, §9º, e artigo 10, poderá o presidente da Corte Suprema, quando se tratar de decisão da Justiça Federal, ou da Corte de Apelação, quando se tratar da Justiça Local, a requerimento do representante da pessoa jurídica de direito público interno interessada, para evitar lesão grave à ordem, à saúde, ou à segurança pública, manter a execução do ato impugnado até o julgamento do feito, em primeira ou em segunda instância”.

[3] "Artigo 175  Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos".

[4] Embora o instituto da concessão exista no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição de 1934 (artigo 5º), com variações ao longo do tempo de que tipo de serviço pode ou não ser concedido, foi a Constituição de 1988, sob o paradigma do Estado Regulador que se abria ao tempo da constituinte, que definitivamente abriu a toda a iniciativa privada a possibilidade de atuar como se Poder Público fosse, eis que não se limitou quais tipos de serviços públicos seriam objeto de concessão. O artigo 175, caput, da CF/88 é o elemento legislativo que representa essa ampliação normativa das possibilidades de atuação dos agentes privados para qualquer serviço público.

[5] SL 111 (Min. Ellen Gracie), SL 274 (Min. Cezar Peluso), SLS 1874 (Min. Félix Fischer), dentre outros.

[6] SL 1178-MC (Min. Luiz Fux).

[7] SL 1313 (Min. Dias Toffoli), SLS 1630 (Min. Félix Fischer), dentre outros.

[8] SL 866 (Min. Dias Toffoli) , SLS 1476 (Min. Ari Pargendler), dentre outros.

[9] SS 5182 (Min. Cármen Lúcia), dentre outros.

[10]ABELHA, Marcelo, Rodrigues. suspensão de Segurança – Sustação da eficácia de decisão judicial proferida contra o Poder Público. 3.ª ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2010, p. 146.

[11] SLS 2529 (Min. João Otávio de Noronha) e SLS 2497 (Min. João Otávio de Noronha).

[12] Conquanto o artigo 174 da CF/88 tenha fixado tais diretrizes, foi a partir dos anos 1990 que tal circunstância definitivamente se consolidou.

[13] ARABI, Abhner Youssif Mota. Mandado de Segurança e Mandado de Injunção. 2ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, pp. 152-153.

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