Opinião

O regime é democrático e o Estado, social e liberal de Direito

Autor

  • José Carlos Abissamra Filho

    é advogado criminal doutor e mestre pela PUC-SP ex-diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e autor de Política Pública Criminal - Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais (Juruá Editora).

12 de agosto de 2020, 18h10

No dia 14 de abril, quando estávamos entrando no período de maior isolamento, a maior preocupação era com as pessoas mais pobres. Naquela ocasião, a ConJur publicou artigo de nossa autoria no qual escrevíamos sobre a necessidade "se refletir sobre o que quer(íamos)emos para o futuro enquanto sociedade" ("O preâmbulo da Constituição Federal de 1988 iluminando o nosso futuro", ConJur, dia 14 de abril de 2020). Propúnhamos que se olhasse "para o passado, especialmente para a sociedade que escolhemos constituir", tendo em vista que o "preâmbulo da nossa Carta Magna estabelece que a nossa sociedade é fraterna, pluralista e sem preconceitos. Que é fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias".

Os dias que se seguiram foram de tensão institucional.

Conforme artigo, ainda de nossa autoria, publicado no mês seguinte novamente pela ConJur ("As instituições republicanas dão cotidianos sinais de vigor", ConJur, 7 de maio de 2020), "o presidente da República sai às ruas, desafiando o isolamento social; volta atrás; torna a sair às ruas e volta atrás (…) falou próximo das pessoas; passou a mão no nariz e cumprimentou uma senhora (evidentemente, do grupo de risco), contrariando todas as regras escritas, faladas e de bom senso; demitiu o ministro da Saúde; foi a manifestações; referendou AI-5; atacou o Supremo; enfim, tentou instalar talvez a mais séria crise institucional desde a redemocratização do país e voltou atrás, tendo repreendido um militante seu, dizendo que não era para falar ‘fecha o Supremo' e que aqui é uma democracia… Tudo ao seu estilo".

Naquela ocasião dizíamos que a "a lucidez vencer(i)á o obscurantismo"; que "democracia não se constrói sem alguns embates e sem alguns testes sobre a nossa capacidade institucional"; que "estamos no caminho certo, dando provas cotidianas de que a nossa República democrática tem ainda muito vigor"; e que "iluminados pelas palavras do ministro Celso de Mello e sob o manto da nossa Carta Magna, seguir(íamos)emos, pacientemente, adiante (pois) ninguém está acima da lei!".

Algumas pessoas achavam que estávamos sendo otimistas, pois o perigo institucional era presente. Era mesmo. No entanto, após três meses, o que se percebeu foi a maturidade institucional brasileira. O Brasil é uma democracia. Aventureiros descompromissados com a dor do nosso povo e com o passado e o futuro do Brasil tiveram que engolir isso; não se conformam, é verdade, mas foram institucionalmente e republicanamente barrados.

O perigo sempre existe, é verdade; precisamos continuar atentos; mas a nossa democracia deu os devidos sinais de vigor.

A entrevista do presidente Rodrigo Maia para o "Roda Viva", no dia 3 de agosto, deixou muito claro que houve um desafio diante de uma tentativa de ruptura institucional; e que o Congresso Nacional e o Poder Judiciário, presididos respectivamente por Rodrigo Maia e pelo ministro Dias Toffoli, resistiram a essa tentativa hedionda. Na verdade, não foram só esses dois poderes que mantiveram a nossa democracia em curso, mas os poderes estaduais, municipais, a imprensa, os órgão de classe, por exemplo, a Ordem dos Advogados de Brasil e, especialmente, a grande maior parte população e a sociedade civil de uma forma geral.

Esse resgate histórico de poucas linhas, cinco meses após o início da quarentena, é importante não só para registrar os desafios que enfrentamos para além da pandemia, que já seria um desafio por si só , mas também para se projetar o futuro: a pandemia ainda não acabou, mas o período mais crítico da quarentena, sim.

Há muitos desafios ainda pela frente, entre os quais aqueles relativos novamente às pessoas mais pobres. A economia inicia sua volta à atividade normal, mas essa retomada depende muito do nosso comprometimento com os cuidados; alguns deles, simples, como por exemplo o uso correto de máscaras; outros, no entanto, mais complexos, como a elaboração de projetos e direção claros para a nação brasileira.

O objetivo do presente artigo é lembrar que, na formulação dessa direção, precisamos levar em consideração que somos um Estado social e liberal democrático de Direito. Tanto assim que, segundo o artigo 3º da nossa Carta da República, "constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I construir uma sociedade livre, justa e solidária; II garantir o desenvolvimento nacional; III erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Na mesma direção, estabelece o artigo 170 também da nossa Carta da República que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

O nosso regime jurídico, político, social e econômico é liberal, na medida em que a iniciativa é livre, na exata mesma medida em que constituem objetivos fundamentais da nossa República erradicar a pobreza e construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Nós poderíamos estar numa condição muito melhor se tivéssemos nos ocupado somente da pandemia, o que já seria o bastante, mas tivemos que enfrentar outros desafios também sérios durante esse período de isolamento.

Autores

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    é advogado criminal e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Membro das comissões especiais de Processo Penal, de Direito Penal e de Política Criminal e Penitenciária da OAB-SP.

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