Paradoxo da Corte

Alimentos do advogado são de segunda classe numa recente decisão do STJ

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

11 de agosto de 2020, 8h00

Em homenagem aos Advogados brasileiros, no Dia do Advogado

Afirmava, com razão, Ruy Barbosa, que a abrupta alteração, sem justificativa plausível, de orientação jurisprudencial sedimentada produz o efeito de derrubar uma biblioteca inteira!

Tenho absoluta convicção de que os nossos tribunais em geral não são vocacionados ao sistema de precedentes judiciais estabelecido pelo vigente Código de Processo Civil, visto que a praxe forense revela, dia após dia, flagrante desobediência, qualquer que seja o grau de jurisdição, às teses pretorianas já consolidadas, com ou sem eficácia vinculante.

A propósito dessa constatação, observo que o Superior Tribunal de Justiça tem atualmente criticado as teses adotadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que se afastam, em muitas hipóteses concretas, do posicionamento que se encontra consolidado, em particular, na 3ª Seção daquela Corte Superior.

O que dizer se o próprio Superior Tribunal de Justiça não se curva aos seus próprios precedentes?!?

Com efeito, enorme foi a perplexidade gerada pelo recente pronunciamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento, por apertada maioria, do Recurso Especial n. 1.815.055-SP, da relatoria da ministra Nancy Andrighi, o qual não apenas contraria normas legais expressas, como, à evidência, o enunciado da Súmula Vinculante 47, do Supremo Tribunal Federal.

Dispõe o artigo 24 da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) que: “A decisão judicial que fixar ou arbitrar honorários e o contrato escrito que os estipular são títulos executivos e constituem crédito privilegiado na falência, concordata, concurso de credores, insolvência civil e liquidação extrajudicial”.

Consoante o parágrafo 14 do artigo 85 do Código de Processo Civil: “Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial”.

Ora, isso significa, de forma claríssima, que os honorários do advogado decorrentes da sucumbência têm natureza alimentar, assim como aqueles contratuais. Prestam-se, como é cediço, a prover o sustento dos advogados.

Ao ensejo do julgamento do Recurso Extraordinário n. 564.132-RS, com voto condutor da ministra Cármen Lúcia, representativo do Tema 18, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante 47, do seguinte teor: “Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza”.

Neste princípio sumulado, o Excelso Pretório assentou o entendimento de que, dada a natureza alimentar dos honorários advocatícios, não se sujeitam eles à forma de pagamento prevista no artigo 100, parágrafos 1º e 8º, da Constituição Federal, no que se refere à proibição de fracionamento de precatório.

Ademais, a teor do disposto no artigo 833, inciso IV, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, a “prestação alimentícia” fica excluída do rol das hipóteses de impenhorabilidade. É dizer: a lei processual excepciona a regra da impenhorabilidade de vencimentos para pagamento de prestação alimentícia. Note-se que o texto legal não faz qualquer distinção quanto à natureza da prestação ou verba alimentar que viabiliza a constrição sobre salários, até porque in claris cessat interpretatio!

Diante destas premissas convergentes, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em particular, vinha, de há muito, prestigiando o entendimento de que:

"A legislação processual civil (CPC/2015, artigo 833, inciso IV, e parágrafo 2º) contempla, de forma ampla, a prestação alimentícia, como apta a superar a impenhorabilidade de salários, soldos, pensões e remunerações. A referência ao gênero prestação alimentícia alcança os honorários advocatícios, assim como os honorários de outros profissionais liberais e, também, a pensão alimentícia, que são espécies daquele gênero.
É de se permitir, portanto, que pelo menos uma parte do salário possa ser atingida pela penhora para pagamento de prestação alimentícia, incluindo-se os créditos de honorários advocatícios, contratuais ou sucumbenciais, os quais têm inequívoca natureza alimentar (CPC/2015, artigo 85, parágrafo 14)” (4ª Turma, AgInt. no AREsp. n. 1.595.030-SC, rel. min. Raul Araújo – DJe 01.07.2020)."

"Os   honorários   advocatícios   possuem   natureza alimentar, admitindo-se a penhora sobre percentual do salário para a satisfação do direito do credor” (3ª Turma, AgInt. no AREsp. n. 1.473.266-SP, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva – DJe 13.12.2019)."

"Os honorários advocatícios, mesmo de sucumbência, têm natureza alimentar.
A aleatoriedade no recebimento dessas verbas não retira tal característica, da mesma forma que, no âmbito do Direito do Trabalho, a aleatoriedade no recebimento de comissão não retira sua natureza salarial.
Sendo alimentar a natureza dos honorários, estes preferem aos créditos tributários em execução contra devedor solvente” (3ª Turma, REsp. n. 608.028-MS, rel. min. Nancy Andrighi – Dje 12.09.2005)."

Não obstante, para surpresa da comunidade jurídica, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na sessão de 3 de agosto p. passado, desprezando tudo quanto acima exposto, passou a entender, no supra mencionado julgamento, que não se admite a penhora de salário para pagamento de dívida decorrente de honorários advocatícios.

O voto secundado pela maioria de 7 a 6, da lavra da ministra Nancy Andrighi, para justificar tal veredito, fundamenta-se na distinção (!) das expressões "verba de natureza alimentar" e "prestação alimentícia", sendo essa decorrente de vínculo familiar, como, v. g., é a pensão de alimentos. Daí não ser viável a orientação de que a dicção "prestação alimentícia" abranja toda e qualquer verba que tenha natureza alimentar, como, por exemplo, os honorários advocatícios.

Em outras palavras, a prestação a alimentos, devida ao advogado como contraprestação de seu trabalho, à guisa de honorários, é de inferior relevância, vale dizer, de segunda classe…

Ora, com o devido respeito, é de invocar-se o velho e sábio aforismo ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não pode o intérprete fazer distinções)!

Como ainda não dispomos da íntegra do respectivo acórdão, tem-se a informação fornecida pelo jornalista Danilo Vital, correspondente da Revista ConJur em Brasília, de que a divergência no julgamento foi instaurada pelo ministro Luis Felipe Salomão, para quem, na trilha dos precedentes acima transcritos, salários podem ser penhorados para pagamento de honorários advocatícios, visto que o parágrafo 2º do artigo 833 do Código de Processo Civil, além de não fazer qualquer discrime, descortina-se taxativo. E, assim, as hipóteses que preveem a impenhorabilidade de salário não se aplicam à de penhora para garantir pagamento de prestação alimentícia, "independentemente de sua origem".

Segundo o pensamento do ministro Luis Felipe Salomão, o vigente Código de Processo Civil enfatiza, com efeito, que a exceção à impenhorabilidade engloba todas as verbas alimentares referentes à subsistência da pessoa, incluindo aí, por certo, os honorários do advogado.

O voto divergente do ministro Luis Felipe Salomão ainda considerou a exigência de preservar a coerência e a força dos precedentes judiciais, em consonância com a tese que até então prevalecia nos domínios da jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça.

Como advogado militante, calejado, embora sem esmorecer, só tenho a lamentar que, mais uma vez, os princípios da segurança jurídica e da confiança irrompem vulnerados exatamente pelo tribunal que tem o dever institucional de preservar a unidade e a harmonia da interpretação e da aplicação do ordenamento jurídico infraconstitucional!

E tal inequívoca função nomofilácica foi reiterada, com coragem e em tom de exortação, pelo saudoso ministro Humberto Gomes de Barros, em conhecido voto proferido no Agravo Regimental no Recurso Especial 228.432-RS, julgado pela Corte Especial:

"O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o Superior Tribunal de Justiça é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal, para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la".

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