Opinião

Os conceitos de contexto, conteúdo e o direito à liberdade de expressão

Autor

  • Vanessa Karam de Chueiri Sanches

    é juíza titular do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR) mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR e integrante da Comissão de Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados e Magistradas do Trabalho (Anamatra).

10 de agosto de 2020, 9h06

Em tempos de desregulamentação de direitos e regulamentação de condutas, alguns conceitos se afloram, como por exemplo as ideias de conteúdo, contexto e liberdade de expressão.

Ainda que não raras vezes não se dê atenção à efetiva distinção entre os conceitos de conteúdo e contexto, o fato é que eles não se confundem, ao contrário, a sua diferenciação é fundamental especialmente quando interligados a determinados direitos.

O primado da liberdade de expressão no Brasil, como é típico dos países democráticos ocidentais, está expressamente assegurado no texto Constitucional. O artigo 5º, da Constituição Federal, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, estabelece no inciso IV a livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, e no inciso IX garante a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Em outros incisos desse mesmo dispositivo, bem como em diversos artigos espalhados pelo texto constitucional, também se observa a constante preocupação quanto a garantia e preservação da liberdade de expressão em suas inúmeras manifestações.

A liberdade de expressão é um direito constitutivo da dignidade da pessoa humana, pois cada um produz a sua identidade a partir da forma que ela a expressa, por qualquer meio escolhido. Por isso, o papel do Estado deve ser de garantir e de proteger a liberdade de expressão, tanto no plano individual, como coletivo.

Por outro lado, não há na legislação constitucional ou mesmo infraconstitucional brasileira uma regulamentação específica quanto às relações entre os conceitos de contexto e conteúdo para fins da extensão ou restrição ao direito de liberdade de expressão.

Utilizando aqui uma conceituação genérica, contexto "é a relação entre o texto e a situação em que ele ocorre dentro do texto; é o conjunto de circunstâncias em que se produz a mensagem que se deseja emitir lugar e tempo, emissor e receptor etc. e que permitem sua correta compreensão" [1]. Já conteúdo, pode significar "o que se encontra inserido ou compreendido no interior de alguma coisa; aquilo que compõe ou forma alguma coisa; essência, cerne ou substância; aglomerado de ideias ou pensamentos; argumento, assunto ou matéria" [2].

Mas qual a relevância de se estabelecer uma relação entre contexto, conteúdo e liberdade de expressão?

Em evento recentemente ocorrido em plataforma digital, a professora e coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia (Pled) da FGV Direito-SP, Clarissa Piterman Gross, afirmou que "nos Estados Unidos a Justiça entende que o Estado não deve restringir um discurso com base em seu conteúdo, na ideologia, na convicção que está sendo veiculada na mensagem. Então, não faria muito sentido distinguir o tratamento do discurso de ódio e das defesas das instituições. Discursos nos Estados Unidos podem ser combatidos, mas não com base no seu conteúdo" [3].

No Brasil, por sua vez, não se tem essa clareza quando são estabelecidas críticas, retaliações ou mesmo punições a determinados discursos ou opiniões, situação esta que gera certa instabilidade aos interlocutores nas suas manifestações e na extensão do seu direito à liberdade de expressão.

A importância de se ter clareza em relação a esses conceitos e de que forma eles são apreciados é de suma importância, especialmente num momento em que a principal forma de exercício da liberdade de expressão são as redes sociais, nas quais nos deparamos com o constante dilema quanto a necessidade ou não de regulamentação das manifestação nestes ambientes.

Um exemplo claro da necessidade da análise conjunta dos conceitos de contexto e conteúdo, afim de se evitar censuras veladas nos ambientes virtuais e, mais especificamente, nas redes sociais, ocorreu em evento promovido pela Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, sob o título Preconceito e ambiente de trabalho, transmitido pela plataforma YouTube, o qual, após alguns minutos de transmissão, foi derrubado pela referida plataforma. Ou seja, uma combinação algorítmica, da qual não se tem conhecimento, elege um conteúdo que, uma vez constatado pela máquina é derrubado, mas que não faz qualquer relação com o contexto no qual tal conteúdo está sendo divulgado ou discutido.

Nestas mesmas perspectivas, observamos que o Marco Civil da Internet (Lei 12.965, de 23 de abril de 2014), ao estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet e ao assegurar no seu artigo 2º que "a disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão", não faz qualquer menção a necessária relação de conteúdo e contexto para fins da garantia deste direito. O artigo 6º desse diploma legal se limita a afirmar que "na interpretação desta Lei serão levados em conta, além dos fundamentos, princípios e objetivos previstos, a natureza da internet, seus usos e costumes particulares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural".

A análise do tema aqui proposto permite, obviamente, um grande aprofundamento, mas neste breve artigo pretendi despertar a necessidade de se pensar o direito à liberdade de expressão na perspectiva conjunta do conteúdo e contexto da fala do interlocutor, pois como ressaltado pelo Conselheiro do CNJ Luciano Frota em voto divergente [4], quando da aprovação da Resolução 305, o qual foi seguido pelos também conselheiros Mario Guerreiro e Ivana Farina, "se estabelecer, a priori, a proibição de manifestação de opinião ou de crítica pública, sem considerar o contexto, é impor censura prévia, frustrar o exercício da cidadania, cercear a livre manifestação de pensamento".

Autores

  • Brave

    é juíza titular do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR), mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR e integrante da Comissão de Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados e Magistradas do Trabalho (Anamatra).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!