Opinião

Efeitos de resolução para delito de manutenção de depósitos não declarados

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10 de agosto de 2020, 19h13

O Brasil é bastante pródigo no tocante à criminalização, quase que diária, de condutas, muitas delas inócuas ou já sancionadas adequadamente por meio de outros ramos do direito. Segundo preciso apontamento de Ranulfo de Melo Freire[2], tem-se, de forma equivocada e populista, o Direito Penal como “(…) panacéia para erradicar os fatores da violência pública!”.

Todavia, não é todo dia que a sociedade se depara com situação oposta: condutas que antes eram consideradas crimes, agora descriminalizadas. E é a publicação da Resolução do Conselho Monetário Nacional/Banco Central do Brasil (CMN) de nº 4.841, de 30 de julho de 2020, e suas consequências para a (des)configuração/criminalização da conduta prevista no art. 22, parágrafo único (segunda figura), da Lei nº 7.492/86, que se passam a abordar.

É considerada típica, nos termos do artigo 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, a conduta de todo aquele que promove, "(…) sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente".

Da sua leitura, logo se vê que  a expressão depósitos não declarados à repartição federal competente engloba elementos normativos constitutivos do tipo penal, vez que trata de seus núcleos centrais, expressando, dessa forma, a ação criminalizada. Ocorre que referida necessidade de declaração encontra-se regulamentada fora da mesma lei, até mesmo do direito penal. Por essa razão, referido artigo de lei é considerado norma penal em branco.

Segundo precisa definição de Juan Bustos Ramirez, leis penais em branco são aquelas em que “(…) la matéria de la prohibición no aparecia em todos sus extremos em la ley penal que castigaba e acto prohibido, sino em um regulamento u ordenanza, es decir, em uma disposición de rango inferior[3]”. No caso concreto, se não há, na própria lei, referência aos elementos para os quais se deveria dirigir a conduta de declarar, nem mesmo qual seria a repartição federal competente para fazê-lo, evidente que se está diante de uma lei penal em branco.

Por sua vez, a norma administrativa que regulamenta a lei penal em questão é a Resolução CNM nº 3.854, a qual “dispõe sobre a declaração de bens e valores possuídos no exterior por pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no País”. Em assim sendo, até o dia 02 de agosto de 2020, nos termos desta Resolução, as pessoas físicas domiciliadas no Brasil deveriam prestar declarações ao Banco do Brasil quando os bens e valores no exterior exorbitassem o valor de US$100 mil[4].

Porém, no dia 03 de agosto de 2020 foi publicada a Resolução CMN nº 4.841, que alterou expressamente a norma anterior no que concerne ao valor máximo que se pode manter no exterior sem que seja necessário comunicar as autoridades brasileiras: referido valor foi elevado de US$ 100 mil para US$ 1 milhão.

Por certo que, se houve, por meio da resolução, elevação da quantia mínima cuja declaração às autoridades se impõe, referida norma alterou, de forma mais benéfica, as hipóteses de criminalização previstas no artigo 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86 incidentes sobre as condutas praticadas quando da vigência da Resolução anterior, ainda que a alteração normativa seja posterior à suposta conduta delitiva praticada.

O entendimento exposto decorre diretamente do postulado constitucional do princípio da legalidade, previsto no artigos 5º, inciso XXXIX da Constituição — bem como na grande maioria dos Estados civilizados —, de que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".

Tem-se, portanto, um critério de temporalidade para a aceitação da validade da aplicação de uma norma penal, que é reiterado e complementado com outra interface do princípio da legalidade: a garantia da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no artigo 5º, inciso XL, da Carta Magna (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”).

Isso é: o debate gira em torno do princípio da legalidade, que, no ordenamento jurídico brasileiro tem o condão de ser o norte da garantia da dignidade da pessoa humana. Assim, haja vista sua função precípua de limitar o poder punitivo do Estado, não cabe penalizar condutas que foram tipificadas depois de suas práticas. O que se permite, entretanto, é despenalizar condutas cuja lei posterior não mais considera criminosas.

Como bem pontua Américo A. Taipa de Carvalho, "(…) o Estado-de-Direito Material, na sua função de proteção da pessoa humana com a decorrente afirmação da liberdade como princípio geral e fundamental, não apenas proíbe a retroactividade das leis penais desfavoráveis como também impõe aplicação retroactiva das lei penais favoráveis. Quer dizer: o princípio constitucional da liberdade, o ‘favor libertatis’, é hoje a matriz comum e o princípio superior de que derivam não só a irretroactividade inpeius como também a retroactividade in melius” (grifo nosso).

Logo, para analisar se uma conduta se amolda ao tipo penal em questão, deve-se considerar, de forma estritamente objetiva, a nova resolução, haja vista que o complemento da lei penal em branco, como já assinalado, é elemento normativo do tipo objetivo e, portanto, integra a lei própria penal.

Para essa questão, importante ressaltar que o ordenamento jurídico pátrio autoriza expressamente a complemento de uma lei penal por outra lei ou até mesmo por ato administrativo. Logo, esta complementação, legítima, passa a integrar o elemento do tipo penal, e, caso seja mais favorável, retroage a fatos passados[5].

Por outro lado, e até mesmo pela lealdade da discussão, tem-se o posicionamento de Soler, depreendido por Cezar Roberto Bitencourt: o primeiro entende, em alguns casos, pela perfeita continuidade da validade da norma, afirmando que “(…) só influi a variação da norma complementar quando importe verdadeira alteração da figura abstrata do Direito Penal, e não mera circunstância que, na realidade, deixa subsistente a norma[6]”.

A esse respeito vale lembrar o que ocorreu no caso da exclusão – aparentemente por engano — do cloreto de etila ("lança-perfume"), da Resolução nº 104/2000 da Anvisa, que regulamentava a relação de substâncias psicotrópicas de uso proibido no Brasil, tendo em vista o tipo penal em branco da Lei de Drogas então vigente.

Com efeito, a condenação de um homem por transportar frascos de "lança-perfume" foi invalidada[7] por meio do Habeas Corpus nº 120026, relatado pelo decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, por considerar que a exclusão do cloreto de etila da referida resolução operou a “abolitio criminis” em relação à conduta de alguém ter sob sua posse “lança perfume”[8].

Em suma, a despeito de opiniões diversas sobre se o complemento da norma penal em branco constitui ou não verdadeiro elemento objetivo do tipo, fato é que, agora, alguém que tenha deixado de declarar às autoridades valores de até US$ 1 mil, mantidos no exterior, não mais poderá ser responsabilizado criminalmente, alterando-se o resultado de uma possível condenação — caso já transitada em julgado — ou, eventualmente, da necessidade de continuidade da persecução penal – para os casos ainda em curso.

Por certo, ocorreu abolitio criminis — ou, tendo em vista que foi alterado o montante a ser declarado e não a finalidade da norma, uma novatio legis in mellius —, em relação à norma penal que criminalizava a manutenção, em conta no exterior, de quantias superiores a cem mil dólares, sem autorização do Banco Central do Brasil.

Cabe, ainda, ressaltar outro aspecto: a despeito da nova Resolução somente entrar em vigor no dia 1 de setembro p.p. — estando, portanto, em vacatio legis —, pode ela ser aplicada imediatamente na esfera penal?

A resposta deve ser afirmativa. É entendimento consolidado na doutrina que, em se tratando de lei penal mais benéfica — lex mtior — deve ser aplicada mesmo no período de vacatio legis. Cezar Roberto Bitencourt[9], por exemplo, assevera que, por meio da publicação de determinado texto legal, este já passa a existir no mundo jurídico, representando “(…) o novo pensamento do legislador sobre o tema de que se ocupa, produto, evidentemente, de novas valorações sociais.” Daí conclui que “(…)a sua imediata eficácia é inegável, e não pode ser obstaculizada a sua aplicação retroativa quando configurar lei mais benéfica, mesmo que ainda se encontre em vacatio legis (grifo nosso).

No mesmo sentido, argumenta Rogério Greco[10]: “Em caso de lex mitior existe a possibilidade de ser aplicada ao caso concreto antes mesmo de sua entrada em vigor. Se a lei terá obrigatoriamente que retroagir, por que não aplicá-la antes mesmo do início de sua vigência, mediante a sua só publicação? Por economia de tempo não se exige que se aguarde a sua vigência, podendo ser aplicada a partir da sua publicação”.

Disso se conclui que, se a lei penal, por força do princípio da legalidade, é garantia individual contra o abuso do Estado, sua aplicação, para efeitos temporais, retroage sempre que mais benéfica, bastando a existência da norma no mundo jurídico, mesmo que ainda em vacatio legis.

Oportuno, por fim, lembrar importante polêmica travada anteriormente em relação ao delito de descaminho, previsto no artigo 334 do Código Penal[11]. Assim como nesta hipótese,  o tipo penal do descaminho também é norma penal em branco, pois não estabelece qual seria “o pagamento de direito ou imposto”. Em assim sendo, entendia-se que o art. 20 da Lei nº 10.522/02 regulamentava o valor limite de R$ 10 mil de débito tributário, sendo que qualquer conduta que envolvesse valor menor do que isso tornava os fatos materialmente atípicos.

Ocorre que as Portarias de nºs 75 e 130 do Ministério da Fazenda passaram a estipular um valor limite maior, qual seja, de R$ 20 mil. Tendo em vista que se trata de norma penal em branco, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela aplicação das Portarias, porque mais benéficas ao réu. Assim, restou pacificado, por meio do Tema 157, a incidência do princípio da insignificância para os crimes tributários federais e para descaminho, quando o débito tributário não ultrapassar o limite de R$ 20 mil[12].

Assim, por todas as considerações acima expostas, pode-se concluir que a Resolução Bacen de nº 4.841/2020, por se tratar de norma mais benéfica, descriminalizou toda e qualquer conduta relativa à manutenção de valores no exterior, não declarados às autoridades brasileiras, cujo montante não exceda US$1 milhão.

[1]Artigo 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7492.htm>. Acesso em 10 de agosto de 2020.

 

[2] Ranulfo de Melo Freire, “Prefácio à 4ª Edição” in Alberto Silva Franco. Crimes Hediondos. São Paulo: RT, 2000, p. 11.

[3] Em tradução livre, (…) a matéria da proibição não aparece em sua completude na lei penal que tipifica o fato criminalizado, mas em em um regulamento ou portaria, ou seja, em um dispositivo de grau inferior. Juan Bustos Ramirez. Introducción al Derecho Penal. Bogotá: Temis, 1994, p. 54.

[4] Eis os precedentes significativos: RHC: 82880 SP 2017/0076345-6, Relator Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Superior Tribunal de Justiça, 5ª. Turma, j. em 16/08/2018, DJe em 27/08/2018; e AP 470, Relator Min. JOAQUIM BARBOSA, Supremo Tribunal Federal, Pleno, j. em 17/12/2012, DJe em 22/04/2013.

[5] Juarez Cirino dos Santos. Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: ICPC Editora Ltda e Lumen Juris Ltda, 3ª Ed. 2008, p.54.

[6] Apud Cezar Roberto Bittencourt. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2016, p.217.

[7] Exclusão de substância da lista de entorpecentes proibidos da Anvisa descaracteriza tráfico. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=292757#:~:text=A%20subst%C3%A2ncia%20ativa%20do%20%E2%80%9Clan%C3%A7a,de%20Vigil%C3%A2ncia%20Sanit%C3%A1ria%20(Anvisa).. Acesso em: 04 de agosto de 2020.

[8] Habeas Corpus nº 120.026/SP, rel. Ministro Celso de Mello, Supremo Tribunal Federal, Primeira Turma, DJE em. 03.06.2015.

[9] Cezar Roberto Bittencourt, cit., p. 166.

[10] Rogério Grecco. Curso de Direito Penal. Niterói: Impetus, 2007, V. I, p.102.

[11]Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

[12] REsp 1709029/MG, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Superior Tribunal de Justiça, 3ª. Seção, j. em 28/02/2018, DJe em 04/04/2018. Não por outro motivo que o “Pacote Anticrime” alterou a redação do referido art. 20 da Lei nº 10.522, passando a deixar apenas ao critério do Ministério da Fazenda a complementação do tipo penal de descaminho.

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