Opinião

Geografia do Direito: inviolabilidade do domicílio e associação para o tráfico

Autores

  • André Nicolitt

    é juiz de Direito e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense).

  • Charlene da Silva Borges

    é defensora pública federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM coordenadora do Departamento e do Grupo de Estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

  • Lívia Sant'Anna Vaz

    é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia.

  • Saulo Mattos

    é promotor de Justiça do MP-BA mestre pela UFBA mestrando em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona (Espanha) professor de Processo Penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL e membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

10 de agosto de 2020, 7h15

Nos programas de disciplinas e nos manuais de graduação voltados à dogmática penal e processual penal, é comum que se reserve um tópico para o estudo da "lei penal" ou "lei processual penal" no "tempo e no espaço". O tratamento que a dogmática tradicional dá ao tema, em geral, não tem uma perspectiva crítica, como se todos os tempos e todos os espaços fossem os mesmos.

Walter Benjamin [1] bem nos ensinou a olhar as coisas sob a ótica do oprimido, permitindo-nos enxergar a vigência de um estado de exceção permanente. Como destaca Agamben, há de se manter fixo o olhar no seu tempo para nele perceber, não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são obscuros. É preciso, no entanto, que nos confrontemos com a obscuridade, transformando o tempo, colocando-o em relação a outro tempo, lendo a História de modo inédito [2].

Segundo a dogmática tradicional, as leis brasileiras se aplicam em todo o território nacional. A lei penal é irretroativa se prejudicial ao réu e a lei processual penal se aplica imediatamente. Serão essas luzes que iluminam todo o tempo e todo o espaço onde se concebe o Direito Penal? Tratemos, então, do espaço.

Em artigo anterior, demonstramos como fatos idênticos são tratados pela mídia de modo distinto. Nas comunidades, a atividade de vender, entregar e fornecer drogas recebe o nome de tráfico, enquanto nos bairros elitizados, como o Leblon, é delivery. Demonstramos, também, que o sistema penal, através do §2º do artigo 28 da Lei de Drogas, dá ferramenta ao juiz para, a partir do espaço, definir quem é traficante e quem é usuário ao dispor que:

"§2º. Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais (…)".

Pretendemos agora apontar outras vicissitudes do sistema de Justiça criminal que, através do espaço geográfico, seleciona pessoas para se hospedarem no cárcere.

O primeiro exemplo incide sobre as condições de moradia. A regra constitucional de que a casa é o asilo inviolável da pessoa, e que nele só se pode ingressar durante o dia com autorização judicial, aplica-se nos espaços conhecidos como "periferias"?

Como ensina Milton Santos, em um país extenso como o Brasil e marcado pela desigualdade, para a realização da cidadania é necessário revalorizar os lugares [3]. As ações não se "geografizam" indiferentemente. Há, em cada momento, uma relação entre valor da ação e valor do lugar onde ela se realiza. Sem isso, todos os lugares teriam o mesmo valor [4].

A Geografia Crítica há muito aponta o espaço como o locus da reprodução das relações sociais de produção. Também nessa corrente da Geografia, encontramos a ideia de seletividade espacial e marginalização espacial [5].

Os métodos e as formas de organização do espaço são modos de efetivação do "poder". Essa organização espacial constitui uma técnica de poder de individualização e de "etiquetação" que se dá a partir da fabricação de um espaço classificatório e combinatório, no qual indivíduos podem ser estigmatizados e transformados em objeto, tanto de preconceitos quanto de vigilância perpétua e constante [6].

Zaffaroni entende por sistema penal o controle social punitivo institucionalizado [7]. Juarez Cirino ensina que o sistema penal é constituído pelos aparelhos judiciais, policiais e prisionais, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, pretendendo-se afirmar como garantidor de uma ordem social justa, mas, na verdade, funciona como uma estrutura opressora e injusta [8], atuando seletivamente e a serviço de interesses econômicos, tendo como marca, além da seletividade e da repressividade, a estigmatização [9].

O sistema penal abrange as funções legislativas, das agências de persecução (polícia e Ministério Público), do Poder Judiciário e dos órgãos de execução penal [10]. Ele dispõe de tecnologias historicamente destinadas a essa tarefa, conforme ilustrado no artigo passado. Todavia, o processo de criminalização primária, via lei, não é a única forma de atuação.

As agências estatais (polícia, Ministério Publico e Judiciário) exercem importante papel nas operações não declaradas do sistema penal (criminalização secundária). A todo tempo, constroem e reforçam "estereótipos criminosos", estabelecendo necessidades punitivas que justificam sua existência institucional no sistema de Justiça criminal. Naturaliza-se, sutilmente, a ideia de um direito de punir como se, de fato, fosse um direito natural e universal, que antecede a formação da sociedade.

Como exemplo, verifica-se, na prática, a subversão que se faz relativamente à garantia constitucional de inviolabilidade do domicílio. Essas agências atuam de modo a impedir que essa garantia se estenda sobre os espaços mais necessitados da atenção estatal, as comunidades, que, vistas por um olhar externo e opressor, são tratadas como lixões humanos.

Polícia, Ministério Público e Judiciário, em uma simbiose patética de funções institucionais, através de operações retóricas, criam, ao arrepio da lei, mecanismos "oficiais", como mandados de busca e apreensão genéricos, para colher todo e qualquer tipo de prova servível a reforçar suas hipóteses condenatórias. Com as portas escancaradas, uma vez dentro das casas de bloco ou de adobe, outras incontroláveis perversões estatais acontecem, justificáveis, no entanto, pela fria dogmática que diz que o tráfico de drogas é um crime permanente, para o qual a sanha persecutória do sistema de justiça busca produzir "justificativas injustificáveis".

A fragilidade do domicílio em áreas ditas periféricas é uma constatação, inclusive do próprio STJ, que, ao apreciar o R. E. 1.574.681, consignou que "não se há de desconsiderar, por outra ótica, que ocasionalmente a ação policial submete pessoas a situações abusivas e arbitrárias, especialmente as que habitam comunidades socialmente vulneráveis e de baixa renda".

Todavia, o STF, lamentavelmente, firmou entendimento de que:

"A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões devidamente justificadas a posteriori que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados [11].

Ao usar a expressão "a entrada forçada… só é lícita" faz parecer que a corte estabelece limite ao ingresso no domicílio, quando, na verdade, autoriza a polícia a entrar durante a noite, com "amparo em fundadas razões" justificadas "a posteriori", razões essas que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante. A própria redação permite perceber que o flagrante só vai existir após o ingresso e que esse ingresso estaria autorizado, não pela situação de flagrante, conforme a Constituição preceitua, mas por "fundadas razões", condição inventada (e não explicada) pelo STF [12].

Essa posição conduz a um verdadeiro absurdo, pois o juiz por decisão precedida de investigação criminal e manifestação favorável do Ministério Público não pode autorizar a polícia a entrar à noite na residência das pessoas. No entanto, uma simples notícia anônima, geralmente sem qualquer prova de sua efetiva ocorrência, segundo a corrente jurisprudencial predominante, é capaz de autorizar o ingresso à noite em domicílio alheio. A decisão do STF traduz-se em um brutal e seletivo atentado aos direitos fundamentais e ao Estado de Direito [13].

Mas é óbvio que essa decisão não se aplica fora de um espaço geográfico periférico. Não são os domicílios de bairros de elevado padrão econômico que são submetidos ao ingresso forçado sem mandado, pela polícia, inclusive durante a noite. Isso só ocorre, de fato, em bairros pobres, majoritariamente povoados por pessoas negras.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, no seu artigo 11.2, assim dispõe: "Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação". No entanto, o sistema penal, através de suas agências que atuam de maneira seletiva, exclui tal proteção aos espaços geográficos transformados em zonas de exclusão, operando na lógica do campo de concentração, como ensina Agamben. Nessas zonas de indistinção são produzidas vidas nuas, despidas de proteção jurídica. Nesse espaço o agente estatal se mostra "soberano" para suspender o Direito e se permitir o livre exercício da violência [14].

Dito isso, se por um lado as agências estatais sustentam um pálido discurso de igualdade jurídica para todas as pessoas e de uma legalidade penal radiante, por outro, através de suas práticas institucionais, excluem da proteção jurídica as pessoas que habitam as periferias e se utilizam do espaço geográfico para procederem à adequação típica ao seu bel-prazer e ao dissabor da população negra massivamente encarcerada.

Uma ilustração dessa prática reside na imputação do crime de associação para o tráfico (artigo 35 da Lei de Drogas), ao arrepio da dogmática penal.

No Rio de Janeiro, por exemplo, é muito comum que um só preso ou indiciado por tráfico seja denunciado em concurso com o crime de associação para o tráfico, em razão do local no qual se deu sua prisão. Nesse caso, infere-se que, se a pessoa está traficando droga em uma comunidade dominada por uma facção, é porque estaria associada a esta. Logo, deve responder pelo artigo 35 em concurso material com o artigo artigo 33.

A dogmática e a jurisprudência do STJ prescrevem que "para a configuração do delito de associação para o tráfico de drogas, é necessário o dolo de se associar com estabilidade e permanência, sendo que a reunião de duas ou mais pessoas, sem o animus associativo, não se subsume ao tipo do artigo 35 da Lei nº 11.343/2006".

O varejo das denúncias e sentenças criminais insiste na imputação do crime de associação, mesmo diante da ausência dos elementos exigidos para a configuração da tipicidade penal (dolo, estabilidade, permanência), não sendo raro denúncias com narrativas do tipo:

"(…) Em data e horário que não se pode precisar, mas certamente até o dia 18 de abril de 2017, na Comunidade do Morrão, bairro de Guaxindiba, (…) o denunciado, com vontade livre e consciente, se associou a outros sujeitos não identificados, para o fim de praticarem, reiteradamente ou não, o crime de tráfico ilícito de entorpecente" [15].

O raciocínio acusatório acima exposto parece ressuscitar, em sua pior modelagem, a teoria causal da ação, incompatível com um Direito Penal de raiz democrática. Tem-se aí um raciocínio inferencial extremamente fraco. De um ponto de partida que sugere, quando muito, a caracterização de tráfico de drogas o que para tanto ainda se devem somar outros elementos informativos , já se conclui pela existência de associação ao tráfico. É um salto inferencial que aniquila, já no início do processo, uma proposta epistemológica aplicável ao processo penal.

Por essa forma de pensar, o espaço geográfico é indiciário de uma subjetividade dolosa, que, nessas condições, é impossível de existir, pois não há dolo só por se pertencer a determinada comunidade. Esse raciocínio é semelhante à insana ideia de se querer punir uma pessoa apenas por imaginar a prática de um crime.

Em uma segunda reflexão, nem a teoria causal da ação autorizaria adequação típica ao artigo 35 da Lei nº 11.343/2006, pois, na situação analisada, sequer se delineia "movimento corpóreo" do indivíduo que externalize objetivamente o verbo associar [16]. Há apenas o existir. Nas comunidades, existe-se sem desistir, mesmo ali quando a água da chuva inunda, a milícia toma conta e as UPPs infernizam vidas. Nesses tempos totalitários e totalmente solitários, criminalizar o existir dessas pessoas é, por ironia, estar associado ao bem. O bem para quem?

Conforme ensina Muñoz Conde [17], há, na Lei nº 11.343/2006, o denominado modelo omnicompreensivo de tipificação penal, com multiplicidade de verbos e excessivos conceitos jurídicos indeterminados. Uma estrutura legislativa programada para abarcar qualquer conduta relacionável a uma droga ilícita. E, ainda assim, é um programa normativo incompleto, pois, sempre que possível, o Congresso Nacional acrescenta mais uma figura típica, como foi o caso do inciso IV, §1º, do artigo 33, introduzido pela Lei nº 13.964/2019.

Sem apresentar grandes enigmas para que se possa descobrir, em uma primeira leitura, seu perfil punitivo e altamente encarcerador, a Lei nº 11.343/2006 se mantém firme como instrumento útil à mutilação e extermínio sistemático de corpos negros, dentro e fora das prisões. É que quando uma prisão-morte se consuma, famílias negras desmancham-se em lágrimas que espelham as armas de fogo apontadas nas nucas dos seus. Nesse mesmo instante, também se pode testemunhar o reflexo de um pedacinho do coturno que tenta fugir de sua própria covardia genocida, muitas vezes, também contra os seus.

 


[1] BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos L. Müller. LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio–uma leitura das teses “sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, p. 41-142, 2005.

[2] AGAMBEN, Giogio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó. Argos, 2009.

[3] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 113.

[4] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Editora da Universidade de São Paulo: 2002, p. 83-898.

[5] CORRÊA. Roberto Lobato. Espaço: um conceito-chave a Geografia. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo Cesar da Consta; CORRÊA. Roberto Lobato (Orgs.). Geografia: Conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 25-42.

[6] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 105.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Sistemas penales y derechos humanos em América Latina. Buenos Aires, 1984, p. 07.

[8] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 26.

[9] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, p. 26.

[10] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 1999, p. 31.

[11] STF – Repercussão Geral – RE 603616

[12] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 936.

[13] Idem.

[14] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I – Trad. de Henrique Burigo. – Belo Horizonte: Editor UFMG, 2002.

[15] TJRJ, 3ª Vara Criminal de São Gonçalo, Processo nº 0014381-06.2017.8.19.0004.

[16] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal: São Paulo: Tirant Lo Blanc, 2019. p.150 e 151.

[17] MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal: Parte Especial. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 552.

Autores

  • Brave

    é juiz de Direito do TJ-RJ, doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro–UERJ, professor do PPGD da Faculdade Guanambi–BA, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense– UFF e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e membro emérito do Instituo Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

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    é defensora pública federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA, mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM, coordenadora do Departamento e do Grupo de Estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

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    é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia.

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    é promotor de Justiça do MP-BA, mestre pela UFBA, mestrando em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona (Espanha), professor de Processo Penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL e membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

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