Opinião

A privacidade em tempos de Covid-19

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10 de agosto de 2020, 10h35

O mundo vem testemunhando uma preocupação com a regulamentação das políticas de uso de dados pessoais, com alterações significativas em sistemas jurídicos de inúmeros países, com o objetivo de traçar diretrizes claras rumo à segurança e privacidade das informações individuais. Em decorrência da Covid-19, contudo, temos presenciado a defesa do uso de tecnologias para o monitoramento da movimentação e deslocamento dos cidadãos, com a justificativa de possibilitar o mapeamento da exposição ao vírus e transmissão.

O uso de aplicativos para identificar o risco de exposição a doenças, de fato, não é novo. Em 2011, uma dupla de cientistas da Universidade de Cambridge criou o FluPhone (em tradução livre e direta, FoneGripe), que rastreia a localização e proximidade entre pessoas para prever e monitorar o avanço do vírus da gripe.

Sistema semelhante também foi adotado pelo governo chinês. Durante a epidemia da Covid-19 o governo daquele país, através do cruzamento de informações de GPS, passagens de aviões e trens, criou um mapa de transmissão e exposição ao novo coronavírus. Com o acesso aos dados das operadoras de transporte, o governo chinês chegou a obter informações sobre passageiros que se sentaram próximos a pessoas diagnosticadas com o vírus, permitindo um acompanhamento mais rápido e eficaz da epidemia. O histórico de deslocamento registrado nos smartphones de cidadãos que testaram positivo para Covid-19 era acessado e utilizado para emitir alertas, via SMS, a terceiros que haviam compartilhado espaços comuns, tais como carros por aplicativos ou vagões de metrô, para restringir ainda mais o contato social e  monitorar eventuais sintomas.

Apesar de controversos, polêmicos e agressivos, os métodos usados na China foram eficazes e, assim, a vigilância sobre os cidadãos não foi relaxada. Atualmente, todos os que desejam circular livremente pelas ruas devem preencher um cadastro online no qual informam seus dados pessoais, histórico recente de viagens, casos de Covid-19 na família e sintomatologia comum à infecção, como a ocorrência de febre e crises de tosse. A partir destes dados, o aplicativo gera um QR Code que pode ser verde, amarelo ou vermelho para sinalizar possibilidades de infecção. Muitos bares, restaurantes e escritórios passaram, assim, a autorizar somente a entrada de pessoas portadoras de um QR Code verde. O preenchimento do formulário não é obrigatório, mas para um indivíduo usar linhas de trem intermunicipais ou acessar grandes shopping centers é fundamental exibir o aplicativo e o código verde.

O método pode parecer excessivamente invasivo, mas é visto pelo governo chinês como uma condição essencial para evitar o retorno ao quadro de isolamento social e uma nova onda de infecções.

Na Coréia do Sul, o sucesso no controle da letalidade e da transmissão é explicado por muitos como resultado de duas medidas: testes em massa e o monitoramento através de ferramentas de geolocalização de pessoas contaminadasO volume de informações que o governo coreano produziu que incluía até mesmo informar à população se o vizinho de porta estava com coronavírus acabou gerando pânico social, uma vez que as pessoas recebiam constantemente, via celular, informações sobre pessoas infectadasAo final, o governo suspendeu a divulgação desses dados pessoais pelas implicações que poderia gerar.

Vale lembrar que, em 2011, a Coreia do Sul ganhou destaque por adotar uma das leis de proteção de dados pessoais mais rígidas do mundo, a Pipa (Personal Information Protection Act). Nesses quase dez anos de vigência da lei e de uma estrutura de proteção de dados pessoais, o conhecimento e a implementação de medidas protetivas amadureceram consideravelmente e foram modificados para comportar algumas exceções quanto ao seu âmbito de atuação. Em momentos de epidemia ou de surtos de doenças infectocontagiosas, sua vigência fica suspensa e entra em vigor automaticamente uma outra lei (Lei de Controle e Prevenção de Doenças Infecciosas). É preciso considerar, ainda, que os países asiáticos têm uma experiência maior do que o Ocidente no enfrentamento de epidemias de doenças infectocontagiosas. Muito recentemente, a Coréia do Sul sofreu com epidemias de gripe asiática, gripe aviária e com a Mers (sigla em inglês de Síndrome Respiratória do Oriente Médio).  

Enquanto alguns pesquisadores e cientistas defendem a inclusão e uso desse tipo de tecnologia nos smartphones para o monitoramento da doença, outros apontam questões importantes, principalmente com relação à precisão dos dados e ao controle de privacidade de informações altamente pessoais. Críticos desse procedimento apontam que na China e na Coreia do Sul, há evidências que indicam que os governos têm usado dados pessoais em métodos de controle com o potencial de gerar constrangimentos públicos.

No Brasil, logo no início do período de isolamento social, algumas prefeituras monitoraram grupos de pessoas com base em sua geolocalização, por meio da técnica de "triangulação de antenas". Por esse método, operadoras de telefonia conseguem informar às autoridades de saúde, por exemplo, o índice percentual da adesão da população ao isolamento social. Tal método foi suspenso, visto poder existir argumentação de legítimo interesse, no sentido de que os cidadãos seriam beneficiados ao saber que tiveram contato com alguma pessoa infectada pelo vírus.

De fato, não é possível comparar o Brasil com os países asiáticos citados, onde o conceito de privacidade é diluído. Implementar tais soluções aqui esbarra não só no arcabouço jurídico e legislativo brasileiro, como também em questões culturais e de construção de convenções sociais.

Estamos em construção de uma cultura de proteção de dados pessoais em meio às diversas discussões sobre o uso destes dados no combate à Covid-19, mas não podemos deixar que uma situação de crise justifique ações atropeladas. Ao se tratar de dados pessoais, precisamos de critérios.

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