Opinião

O caso da EC 33/2001, uma contribuição para a incerteza jurídica e fiscal

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10 de agosto de 2020, 15h32

O Supremo Tribunal Federal retomou em 7 de agosto último o julgamento do Recurso Extraordinário n. 603.624, processo-paradigma do tema 325 da sistemática da repercussão geral. A questão constitucional em exame é se a Emenda Constitucional n. 33, de 11 de dezembro de 2001, ao modificar a redação do art. 149, teria revogado as contribuições incidentes sobre a folha de salários, especialmente as destinadas ao custeio do Sebrae[1], Apex[2] e ABDI[3].

Este artigo procura explorar o contexto e o processo legislativo de que resultou a EC 33, assim como consequências institucionais que podem advir do julgamento do STF.

A interpretação postulada pelo recorrente é que a alteração introduziu rol taxativo de materialidades na alínea "a" do inciso III do 2º do artigo 149 da Constituição. Consequentemente, a partir da EC n. 33/2001, as contribuições sociais gerais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais e econômicas só poderiam incidir sobre faturamento, receita bruta, valor da operação e valor aduaneiro. Não seria dado ao legislador colher outras materialidades para as quais falte previsão constitucional específica.

O fundamento dessa interpretação está, sobretudo, numa leitura literal do inciso III do 2º do artigo 149, que incluiu uma lista de bases econômicas antes inexistente:

“2º As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput deste artigo: […] III – poderão ter alíquotas:  a) ad valorem, tendo por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro; b) específica, tendo por base a unidade de medida adotada.    

A redação (original) do caput do artigo 149 limita-se a dispor: "Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas". Não havia rol algum de bases econômicas ou materialidades.

 No artigo 149, a competência é definida pela finalidade: as contribuições devem ser "instrumento de sua atuação nas respectivas áreas". Eis a sua nota típica. À diferença dos impostos, para os quais a partilha de competências se fez pela discriminação de materialidades na Constituição (artigos 153, 155 e 156), a definição dos fatos geradores das contribuições abrigadas no artigo 149 caberia livremente ao legislador, observados os parâmetros constitucionais aplicáveis.

De acordo com a tese em debate, depois da EC n.º 33, as contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas somente poderiam incidir sobre as materialidades expressa e taxativamente previstas no inciso III do § 2º do artigo 149, onde não consta "folha de salários".

 Até o momento da publicação deste artigo, o julgamento conta com dois votos em sentidos opostos. A relatora, ministra Rosa Weber, deu provimento ao recurso extraordinário do contribuinte, por entender que a "adoção da folha de salários como base de cálculo das contribuições destinadas ao Sebrae, à Apex e à ABDI não foi recepcionada pela Emenda Constitucional n. 33/2002". O presidente, ministro Dias Toffoli, abriu divergência. Negou provimento ao recurso para assentar que tais contribuições são constitucionais, inclusive após o advento da EC nº 33/2001.

Para além da discussão a respeito da literalidade da disposição, este artigo pretende chamar atenção para dois aspectos do debate: sobre as causas, o  contexto e o processo legislativo que resultou na EC 33, e sobre as consequências do reconhecimento da "taxatividade" na norma do § 2º do artigo 149 da Constituição.

Sobre as causas: o contexto e o processo legislativo
A EC 33 resultou da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 277/2000, de autoria do Poder Executivo. A iniciativa se deu em contexto de abertura do mercado de combustíveis no Brasil – antes, já vigorou uma tributação parafiscal, com alíneas incidindo sobre preços e servindo para subsidiar consumos, sem passar pelo orçamento público.

A PEC estabeleceu parâmetros para a cobrança da Cide-Combustíveis e assegurou tratamento isonômico entre os produtos nacionais e importados. A Exposição de Motivos (E.M. n. 509 MF) encaminhada ao Congresso por meio da Mensagem nº 1.093 não deixa dúvida a esse respeito:

“2. Com a proximidade da total liberalização do mercado nacional relativo ao petróleo e seus derivados e ao gás natural, tomam-se necessárias as alterações propostas, como única forma de se evitar distorções de natureza tributária entre o produto interno e o importado, em detrimento daquele, que fatalmente ocorrerão se mantido o ordenamento jurídico atual.

3. Assim, adotada a presente proposta, poder-se-á construir se implementar, sem nenhum obstáculo de natureza constitucional, uma forma de tributação dos referidos produtos que garantam a plena neutralidade tributária.” [sic]

A redação originária da PEC proposta pelo Poder Executivo já alterava tanto o texto do artigo 149 quanto o do artigo 177, mas de maneira muito diferente do texto final aprovado pelo Congresso. Eis os trechos modificados originalmente:

Redação originária da PEC nº 277/2000

“Art. 149………………………………………………

……………………………………………………………

§ 2º As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput deste artigo:

I – não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação;

II – poderão incidir sobre a importação de bens ou serviços recebidos do exterior, inclusive energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis, ainda que o destinatário seja pessoa natural, que, no caso, poderá, na forma da lei, ser equiparada a pessoa jurídica."

“Art. 177 ………………………………………….

……………………………………………………….

§ 4º A Lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de comercialização, decorrente de revenda ou refino, e de importação de petróleo e seus derivados, bem assim de gás. natural e álcool carburante, deverá atender aos seguintes requisitos:

I – a alíquota da contribuição será:

a) ad valorem, incidindo sobre o faturamento ou a receita bruta, no caso de comercialização e, no caso de importação, sobre o respectivo valor aduaneiro; ou

b) específica, tendo por base a unidade de medida adotada;”

A redação da EC 33, como hoje a conhecemos, é resultado das alterações realizadas durante a tramitação da proposição na Comissão Especial destinada a proferir parecer à Proposta na Câmara dos Deputados. No substitutivo, apresentado pelo relator da matéria, Deputado Basílio Villani, deslocou-se a disposição que constava originalmente no § 4º do art. 177 (título da "Ordem Econômica e Financeira") para se tornar o inciso III do § 2º do artigo 149 (título "Da Tributação e Do Orçamento").

Dessa forma, ficou estabelecido que não apenas a Cide, mas qualquer contribuição (amparada pelo artigo 149 da Constituição), poderia ter alíquota ad valorem — incidindo sobre o faturamento ou a receita bruta, no caso de comercialização e, no caso de importação, sobre o respectivo valor aduaneiro — ou específica, tendo por base a unidade de medida adotada.

No contexto da tramitação da PEC nº 277-A, de 2000, o teor da modificação realizada no Substitutivo foi especificamente justificado pelo relator da matéria na Câmara, no parecer apresentado na comissão especial, nos seguintes termos:

"A referência apenas à contribuição de intervenção no domínio econômico, contudo, pode ensejar o entendimento de que essas características não se aplicariam a outros tributos e contribuições, o que não parece conveniente. Pelo contrário, torna-se indispensável, a fim de alcançar plenamente os objetivos almejados com a Emenda Constitucional de que ora se cogita — vale dizer, de equiparar as cargas tributárias incidentes sobre os combustíveis nacionais e os importados — que se possam instituir alíquotas ad valorem ou ad rem também para as contribuições sociais, nomeadamente, a Cofins e a do PIS/Pasep".

O texto do Substitutivo proposto, ao trazer esses dispositivos para o artigo 149 da Constituição, procura solucionar esse problema, reafirmando a faculdade de o legislador infraconstitucional escolher livremente, ao deliberar sobre as contribuições sociais ou de intervenção no domínio econômico, entre ambas as espécies de alíquotas.”  (Grifamos)

Mais adiante, lê-se no mesmo documento:

"18. Do Substitutivo:
18.1. O art. 1º do Substitutivo, além de acrescentar a importação de gás natural e álcool carburante ao rol de eventos sobre os quais poderá incidir a futura contribuição, procura também, como já mencionado no item 14 acima, atender emendas propostas com o objetivo de estender às contribuições sociais, quando incidirem sobre combustíveis, algumas características que se pretendem atribuir à contribuição de intervenção no domínio econômico sobre combustíveis.

Tais características são, basicamente: a possibilidade de instituição de alíquotas específicas ou ad valorem, contemplada no inciso III do § 2º acrescentado ao art. 149 da Constituição, e a incidência em uma única vez, nas hipóteses definidas em lei, abrigada pelo § 3º do mesmo dispositivo.” (Grifamos)           

Com base na tramitação legislativa da PEC, é seguro afirmar que a mudança realizada pela EC 33/2001 no inciso III do § 2º do art. 149 da Constituição Federal pretendia ampliar a margem de liberdade do legislador tributário pela adoção de diferentes tipos de alíquota nas contribuições. Não se tratava de incluir rol taxativo para o futuro, muito menos de revogar as contribuições incidentes sobre a folha então vigentes.

Por esse ponto de vista, enxergar no artigo 149, § 2º, III, "a", um rol exaustivo de bases de cálculo para os tributos do caput do artigo 149, é aceitar a ideia de uma revogação acidental de uma infinidade de exações, sem oposição nem debate parlamentar. Ou seja, trata-se uma leitura que não guarda nenhuma pertinência com o objetivo EC 33 nem com o histórico legislativos da sua tramitação.

Das consequências — riscos imensos
Naturalmente, não se pode tomar a intenção do legislador como único critério para interpretação do produto legislativo — a lei ou, no caso, uma emenda constitucional. Os atos normativos, uma vez editados, emancipam-se da vontade de quem os cria: ganham o sentido e a eficácia que lhes permitem as instituições e práticas sociais.

Em se tratando do artigo 149, § 2º, III, nos quase vinte anos de aplicação da Emenda, o Congresso e o STF nunca consideraram haver no §2º do artigo 149 um rol taxativo, tampouco assumiram que estivesse revogada qualquer contribuição que não tivesse sido criada “tendo por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro”.

O exemplo da Lei Complementar n. 110, de 29 de junho de 2001, é especialmente ilustrativo. Editada meses antes da promulgação da EC 33, a lei complementar criou, com fundamento no artigo 149, duas contribuições sociais: a do artigo 1º, que tinha como base de cálculo o montante de todos os depósitos FGTS, durante a vigência do contrato de trabalho objeto de dispensa sem justa causa; e a do artigo 2º, que era calculada sobre a remuneração devida, no mês anterior, a cada trabalhador.

A contribuição do artigo 2º vigorou apenas por sessenta meses, mas do artigo 1º foi cobrada por quase vinte anos, até ser revogada pelo artigo 24 da MP nº 905, de 11 de novembro de 2019. O próprio STF, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 2.556 e 2.568, em 2012, declarou a constitucionalidade da cobrança, tomada como uma “contribuição social geral”, com lastro no caput do artigo 149.  A regra do artigo 149, § 2º, III, já existia à época do julgamento.

Agora, com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.624, talvez se venha a descobrir que, na verdade, esses tributos não poderiam ter sido cobrados além do ano da sua instituição, ou seja, 2001. Esse fato, aliás, deveria ter prejudicado inclusive as ações diretas ajuizadas, que rigorosamente, na linha da orientação tradicional do STF, sequer deveriam ter sido conhecidas. Afinal, norma revogada não pode ser objeto de ADI.

A prevalecer essa interpretação restritiva que se pretende no Recurso Extraordinário n. 603.624, a lista de contribuições revogadas em dezembro de 2001 pode ser significativa. O voto divergente do ministro Dias Toffoli aponta que o provimento do recurso trará repercussões em relação às contribuições relativas ao Sebrae, ao Incra, à Apex, à ABDI, ao FDEPM e ao Fundo Aeroviário. O rol, nesse caso, não é taxativo. É aberto e indefinido.

Além dessas, a decisão também pode colocar em xeque a validade da Cide-remessas instituída pela Lei n. 10.168/2000, que incide sobre os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, a cada mês, a residentes ou domiciliados no exterior, nas hipóteses em que especifica. As anuidades cobradas pelos conselhos profissionais em geral, com base na Lei n. 12.514/2011, também não ficam livres de questionamentos. Afinal, têm fundamento no artigo 149, e sua base de cálculo não se encontra do rol do inciso III do § 2º do artigo 149.

Em todos esses casos e também em relação à contribuição do artigo 1º Lei Complementar n. 110, de 2001, o reconhecimento da revogação, desde dezembro de 2001, geraria naturalmente o direito de repetir os valores indevidamente recolhidos com base em lei revogada não alcançados pela prescrição.

A leitura restritiva do inciso III do § 2º do artigo 149 tornará ainda mais rígido o sistema tributário brasileiro e dificultará consideravelmente a criação de novas contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais e econômicas (art. 149, caput). Fora das hipóteses taxativamente previstas no dispositivo, não há possibilidade de inovação legislativa, sem emendar a própria Constituição. Ou seja, a rigidez do rol do inciso III do §2º do artigo 149, na prática, implicará novas mudanças no próprio texto constitucional. É uma forma de torná-la mais flexível, na prática, com mais e mais emendas.

Por isso, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 603.624, o STF escreve uma das mais importantes páginas da recente história do sistema tributária brasileiro, não apenas pelas implicações econômicas, mas também pelos parâmetros que a decisão assenta para os casos futuros. Enganam-se os que julgam que os riscos alcançariam apenas os orçamentos do Sebrae, Apex e ABDI. As repercussões poderão alcançar muitos outros tributos federais, e o julgamento dará um importante norte para a interpretação do sistema tributário.

Em conclusão
Resgatar o histórico legislativo da PEC que deu origem à EC 33, quase vinte anos depois da edição de Emenda, é importante para que se perceba o absurdo do que se está a construir: uma leitura completamente descompassada com o contexto e o objetivo da EC nº 33/2001, com consequências institucionais ainda imprevisíveis, à margem do debate parlamentar, e muito distante dos fins da política fiscal que motivaram sua edição.

Ironicamente, a Emenda aprovada para assegurar segurança jurídica à cobrança da Cide passaria a ser lida de forma a por em xeque boa parte das contribuições existentes, e não apenas aquelas que custeiam algumas entidades do Sistema S. Dessa forma, aumenta-se inclusive a pressão sobre gastos públicos, porque o Tesouro teria que custear boa parte do suporte dado para microempresas, inovação e exportações (que precisam crescer na pandemia) e hoje financiado pelas próprias empresas, por contribuições que poderiam cair por um acidente de redação.

Caberá ao STF definir se é dessa forma que devemos ler o texto constitucional, neste caso e no das próximas emendas constitucionais que virão. A lista de consequências desse julgamento decerto não é taxativa.


[1] Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

[2] Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos.

[3] Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial.

Autores

  • é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), pós-doutorando em Administração Pública na Universidade de Lisboa, doutor em Economia pela Unicamp e mestre em Economia pela UFRJ.

  • é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), consultor legislativo da Câmara dos Deputados, advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público. Foi assessor e chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal. Autor dos livros O Avesso do Tributo e Os Impostos e o Estado de Direito.

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