Opinião

O "pindura" nas tradições da faculdade de Direito

Autor

  • Belisário Santos Jr

    é ex-secretário de Justiça do Estado de SP (1995) membro Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura) da Comissão Internacional de Juristas com sede em Genebra e sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados.

10 de agosto de 2020, 18h12

As tradições da faculdade de Direito são muitas. Já escrevi que todos os movimentos libertários e em favor da democracia ou saíram da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP) ou por ali passaram e assim ganharam maior pujança. 

Por notáveis momentos, lembro  a luta contra a escravatura, o movimento de 1932, a luta contra a ditadura de 1937/1945, a campanha pelo petróleo, a luta contra o acordo MEC/Usaid e a tomada da faculdade em 1968, a luta pela redemocratização, a campanha pelas eleições diretas, a Carta aos Brasileiros e a pira acesa que foi apagada apenas na promulgação da Constituição democrática de 1988. 

Menção obrigatória merece a tradição da poesia, eis que nas três arcadas por onde se ingressa na velha e sempre nova Academia, estão desde 1940 os nomes de poetas (Fagundes Varella, Álvares de Azevedo e Castro Alves) e não de jurisconsultos.

Mas havia outras tradições festivas — algumas sobrevivem — como as serenatas, o  quim quim querum (os mais antigos ainda sabem a longa letra de cor…) sempre cantado nos aniversários de franciscanos, a peruada, as trovas acadêmicas e, claro, o Pendura, costume acadêmico bem traduzido por Noel Rosa, em Conversa de botequim (Seu garçom me empresta algum dinheiro / Que eu deixei o meu com o bicheiro / Vá dizer ao seu gerente /Que pendure esta despesa / No cabide ali em frente).

O Pindura, como popularmente ficou conhecida a celebração do XI de Agosto era o clássico pedir, comer, beber, agradecer, a gorjeta nunca esquecer e sair sem nada pagar.  O grande memorialista do Centro Acadêmico 11 de Agosto, Armandinho Marcondes Machado Jr, lembra que essa tradição datava do começo do século 20. E cita um dos bons penduras dos anos 50, cuja "vítima" foi o restaurante Carlino, no largo do Paissandu. Estudantes de direito passando-se por responsáveis pela campanha de Hugo Borghi ao governo do Estado (1950) ali marcaram um jantar em homenagem ao candidato. Na data aprazada, o "candidato", sua entourage, ali chegaram, entregaram-se a uma grande comilança, houve até discurso do "prefeito", e o "candidato" agradeceu emocionado, assinando a conta para ser "paga" no diretório central do PTN. O candidato era nada menos que o estudante Vilelão, grande gozador e parecidíssimo com o político. Os estudantes saíram cantando: "Nosso chefe é você Vilelão, nossa arma é o garrafão"… Lembra Armandinho que a sagrada gorjeta foi paga em dinheiro.

 Nos meus anos de faculdade — 1965 a 1970 —, a luta política era obrigatória. Tempos duros, difíceis. Estudantes sendo presos, estudantes morrendo na luta armada. Era fundamental ganhar as eleições para o Centro Acadêmico e para o Diretório Acadêmico (representação discente ante a Congregação). Houve a Tomada da Faculdade em 1968. Mas o 11 de Agosto era sagrado.

Um "pindura" terrível foi dado em 1969 na cervejaria Urso Branco, na avenida Santo Amaro, seguindo a melhor tradição: comer, dançar, discursar, deixar os 10% e fugir. O crime segundo os juristas de então era ter dinheiro e não pagar. Não era o nosso caso. O presidente do CA 11 de Agosto, José Roberto Maluf, hoje na direção executiva da TV Cultura, sossegou os leões de chácara, deixando o relógio que seu pai lhe dera. A vaquinha do dia seguinte recuperou a joia, ainda hoje em seu braço, segundo me disse há pouco.

 Outro foi, pouco depois, no Restaurante Franciscano, na rua da Consolação.  A casa era famosa pelo chopp da Brahma e pela boa carne. Teve discurso, homenagens, agradecimentos, muita carne, cerveja, gorjeta religiosa e correria na saída.  Dessa vez, um estudante de nome Ricardo, do PRA, então de partido da direita, convidado por namorar uma das nossas companheiras do Movimento 23 de Junho, e por ela e pela cerveja embevecido, tardou a reagir e foi preso. Três de nós voltamos, sempre de terno, gravatas recolocadas e camisas abotoadas, "advogados" como se por ele chamados e lamentando o ocorrido, explicamos a tradição e dispensamos a Polícia sempre chamada nessas horas. Não se pagou nada.

 Corri atrás de histórias de penduras no Itamarati. José Gregori lembrou-se de uma mesa no Itamarati, que se reunia toda sexta-feira, capitaneada por Gil Costa Carvalho, por mais de 20 anos no Itamarati. Essa mesa tinha também, além do Zé Gregori, Cássio Costa Carvalho, Waldir Troncoso Peres, Thomaz Lauria, Areobaldo de Oliveira Lima, entre tantos outros. E o "Pindura", perguntei ao ex-ministro da Justiça? Isso não era coisa que se fizesse com o Itamarati. Aloísio Lacerda de Medeiros, ex-presidente da AASP, ex-secretário geral da OAB/SP, lembrava também dessa mesa histórica. "Era uma mesa alegre, bacana, invejável aquela amizade. Hoje essa mesa continua lá, com um único ocupante, que é o Gil Costa Carvalho. Lembro com muita saudade de tudo isso". Perguntei ao Aloísio: e as penduras no Itamarati? Não, a gente estava sempre lá e eles eram amigos. Não era o caso. E se lembrou: "às vezes eles ofereciam o pindura, sabedores que o estudante de hoje é o cliente de amanhã".

 No curso desta breve pesquisa, entendi com muita clareza duas coisas. A primeira é que o Itamarati é sem sombra de dúvida parte da tradição acadêmica, inserindo-se indelevelmente na memória dos estudantes, como ponto remarcável do Largo São Francisco. A outra é que a força da amizade remove montanhas e reabre restaurantes. Meus caros Francisco, Arnaldo e tantas e tantos amigos deste grupo e seus representados das várias turmas, o Despindura! ficará para a história não só do Itamarati mas também da própria Faculdade de Direito, que afinal é onde mora a amizade, onde mora a alegria, no Largo de São Francisco, na Velha Academia.

Autores

  • é membro da Comissão Internacional de Juristas e integrante da Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos do Estado Brasileiro, ex-secretário da Justiça de São Paulo.

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