Opinião

A (i)licitude do compartilhamento de interceptações telefônicas

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9 de agosto de 2020, 11h19

Vivemos a era da devassa da intimidade. O cidadão contribui com as suas exposições nas redes sociais, a perversidade sepulta a confiança e o Estado invade os lares em nome da proteção dos interesses sociais.

A verdade é que não há mais controle em nenhum meio de comunicação e interação entre as pessoas.

Ainda que possamos cultivar o silêncio e ficar distantes dos aparelhos celulares e computadores, somos reféns dos mecanismos de áudio e câmeras de imagem espalhados pelas cidades e dos monitoramentos por satélites lançados no espaço sideral.

A adaptação da lei a esse sistema moderno de espionagem é um exercício de sensibilidade humana que exige vigilância permanente para impedir os abusos e excessos que são típicos das nações com as margens de segurança jurídica flutuantes.

A independência dos poderes fica comprometida quando ocorre a usurpação de competência que é outorgada a cada um deles.

Acomodando-se às novidades, a polícia tem se utilizado cada dia mais das escutas telefônicas para solucionar os crimes que brotam das ações humanas. A exorbitância do seu uso estabelece compreensão nociva à sua finalidade, isso é, deixa de ser um meio para promover-se em um fim, em outras palavras, de instrumento de coleta de prova transforma-se na própria prova e, nessas circunstâncias da banalidade, deparamos com condenações fundamentadas unicamente em diálogos interceptados.   

O legislador quis que a escuta telefônica fosse possível em um prazo de 15 dias, renovável por um mesmo período, mas o comum são os prazos prorrogáveis por meses e até anos de duração. 

E na transparência pública, mas velada intenção de limitar a invasão de privacidade, a Lei 9296/96 fixou:

"Artigo 1º — A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e instrução processual penal".

É de clareza brilhante que a vontade do Legislativo permitiu a escuta telefônica e o fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática para fins criminais.

Na tentativa de consolidar o seu anseio e impossibilitar as incursões abusivas, o legislador insculpiu no Código de Processo Civil:

"Artigo 372 — O juiz poderá admitir a produção da prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório".

Enquanto o artigo 1º da Lei 9296/96 refere-se a indícios (investigação criminal) e provas (instrução processual penal), a norma civil delimita a sua transferência tão e somente ao instituto da prova processual que impõe a presença do contraditório e afasta a fragilidade das denominadas provas indiciárias.

Ainda que combatida com frequência, a utilização em processos cíveis das escutas telefônicas é admitida com unanimidade pelos tribunais superiores, entretanto a temerária confusão se instala ao conceder igual tratamento semântico ao indício e à prova. O primeiro é da espécie investigativa e precária, enquanto a prova se consolida em instituto processual, portanto de natureza jurídica frontalmente diversa.

Como se vê, não há amparo legal para o compartilhamento dos registros interceptados na fase investigativa. O prevalecimento da interpretação do Poder Judiciário sobre a vontade legislativa desperta posturas não recomendáveis de agentes públicos pouco interessados na harmonia social e facilita o desvio desses indícios contaminados pela ausência do contraditório. O itinerário inicial é legítimo por conter a autorização judicial proferida em autos de investigação criminal, mas plenamente revestido de ilegalidade com o seu exclusivo aproveitamento em processos e ações cíveis.        

A fraude probatória é quase imperceptível sob um olhar desatento senão em sua exemplificação prática.

Impedido legalmente de requerer autorização judicial para realizar escutas telefônicas nos inquéritos civis, nos processos administrativos e nas ações de improbidade resolve-se com a simplicidade da instauração de um inquérito policial. Produzido algum indício, abandona-se a investigação criminal e encaminham-se as conversas captadas sem nenhuma dificuldade ao inquérito civil, ao processo administrativo e à ação de improbidade administrativa que foram disfarçadamente rotuladas de fins criminais na fonte.

Não é preciso muito esforço para concluir que os fins civis das escutas telefônicas estanques ao âmbito do inquérito policial inserem-se no rol das provas ilícitas.

Qual a serventia da exigida formalidade do contraditório na prova emprestada em seu processo originário se pode ser desprezada por informações colhidas em  procedimentos investigativos ou inquisitoriais arquivados judicialmente?

Enfim, há uma colisão dos aludidos dispositivos legais transcritos, promovendo surpresas graves que devem ser afastadas de forma contundente pelo Poder Legislativo e devidamente observadas pelo Judiciário com o propósito de devolver aos jurisdicionados as garantias constitucionais da preservação da intimidade e da licitude da prova, hoje abaladas pelo ativismo judicial.

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