Segunda Leitura

Caixa dois, corrupção, lavagem de dinheiro e Justiça eleitoral

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

9 de agosto de 2020, 10h47

Aproximam-se as eleições para prefeitos e vereadores dos municípios e o financiamento das campanhas volta à discussão. Entre os temas mais polêmicos, segue na liderança o chamado caixa dois.

Spacca
Caixa dois é uma prática financeira ilegal, que consiste em não registrar determinadas entradas ou saídas de dinheiro, criando uma reserva monetária paralela ilegal, que geralmente é utilizada "para deixar de pagar impostos devidos (sonegação de impostos), para financiar atividades ilegais ou para fazer lavagem de dinheiro" [1].

Na rotina de nossas vidas, o mais comum exemplo de caixa dois é o do comerciante que não fornece nota fiscal de uma compra ou serviço prestado, desta maneira sonegando o ICMS. Na esfera eleitoral, ela ocorre com a entrada de verba destinada à campanha do candidato, sem que se faça o registro e se comunique na prestação de contas a ser feita perante a Justiça Eleitoral.

O financiamento da campanha eleitoral sofreu mudanças legais e também da jurisprudência, sendo que atualmente, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, "os candidatos a cargos eletivos passaram a ter de financiar suas campanhas com recursos próprios e com doações de correligionários ou de partidos políticos (recursos oriundos do Fundo Partidário). A campanha ainda pode ser financiada pela venda de bens e pela realização de eventos, ou ainda utilizando o Fundo Especial para Financiamento de Campanhas (FEFC)" [2].

Não existe mais a possibilidade de empresas doarem quantias para a campanha de candidatos [3]. Persistem, todavia, as doações de pessoas físicas. Para as eleições municipais de 2020, há um valor máximo que cada candidato a prefeito ou vereador poderá receber, valor este que varia conforme o município e que será fixado pelo TSE até 31 de agosto próximo [4].

Além disso, o TSE baixou a Resolução nº 23.607/2019, que regula minuciosamente a matéria. Também a Resolução 8.009/20, que dispõe sobre a arrecadação e a aplicação de recursos na campanha eleitoral. Esta, por exemplo, estabeleceu, no artigo 18, §1º, que a doação da pequena quantia de R$ 1.064,10 ou a ela superior, só poderá ser realizada mediante transferência eletrônica [5]. Tolerância zero contra a falta de controle.

Ocorre que, em eleições passadas e certamente nas municipais deste ano —, quantias foram doadas "por fora", ou seja, sem qualquer tipo de controle, disto gerando ações penais conhecidas como caixa dois. Por vezes, o gasto se revela maior do que consta nos registros como recebido. Em outras o candidato recebe, mas não gasta tudo, apropriando-se da diferença.

Muitas vezes o candidato pode, até, desconhecer os valores arrecadados ou sua destinação, já que uma pessoa, encarregada de administrar os valores, pode traí-lo. Todavia, será difícil negar desconhecimento se os valores não tiverem sido objeto de contabilidade.

Esta movimentação ilegal de valores é reprimida pela legislação brasileira. Na antiga Lei 7.492/86, que trata dos crimes contra a ordem financeira, ela está prevista no artigo 11, com pena de um a cinco anos de reclusão.

No âmbito eleitoral o caixa dois não tem um tipo penal específico. Por isso, o saudoso Luiz Flávio Gomes registra que tal conduta "é uma forma de delito de falsidade ideológica (prestação de declaração falsa). No campo eleitoral está previsto no artigo 350 do Código Eleitoral, com pena de 5 anos de prisão (se o documento é público)" [6].

Aparentemente de menor gravidade, o caixa dois costuma vir acompanhado dos crimes de corrupção (v.g., uma doação de empresa interessada em grandes obras, a troco de receber do chefe do Poder Executivo, candidato à reeleição, tratamento preferencial em licitação ), sonegação fiscal (repasse de valores fora da contabilidade não geram recolhimento de tributos) e lavagem de dinheiro (candidato recebe R$ 500 mil, usa R$ 200 mil e se apropria de R$ 300 mil que procura legitimar em investimentos lícitos, como a compra de gado).

Pois bem, o Supremo Tribunal Federal, em 14 de março de 2019, decidiu que compete à Justiça Eleitoral julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos. Suscitada a competência nos crimes conexos ao de caixa dois, o ministro relator registrou no voto que a solução preconizada pela Procuradoria-Geral da República de desmembramento das investigações no tocante aos delitos comuns e eleitoral era inviável, porquanto a competência da Justiça federal ou estadual é residual quanto à Justiça especializada [7].

Pois bem, dezenas de processos foram das varas federais, onde eram conduzidos por juízes experientes e especializados na matéria, para as zonas eleitorais, presididas por juízes de Direito dos Estados.

O resultado foi mostrado pelo jornal O Estado de São Paulo, que, em reportagem de Tulio Kruse e Bianca Gomes, assim concluiu:

"Um ano e quatro meses após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que a Justiça Eleitoral deve julgar corrupção e lavagem de dinheiro quando houver caixa dois de campanha, ao menos 78 casos chegaram à segunda instância, segundo levantamento do Estadão. Destes, três resultaram em denúncias aceitas e dez em arquivamentos. Ainda não houve condenação nos processos enviados por cortes superiores às varas eleitorais. A maior parte dos procedimentos tem origem na Operação Lava Jato e segue na fase de investigação, sem acusações apresentadas pelo Ministério Público" [8].

A conclusão da pesquisa não surpreende. A Justiça Eleitoral não tem expertise para examinar complexos e volumosos processos, por vezes com dezenas de réus, muitas audiências e múltiplas peculiaridades, como a remessa de valores para paraísos fiscais em contas de firmas "fantasma".

Não porque seus juízes sejam menos capazes dos que os colegas das varas federais especializadas. Na verdade, eles são tão capazes quanto. Ocorre que, juízes eleitorais são juízes estaduais oriundos de varas diversificadas. Podem ser do cível, crime, fazenda pública etc. Designados por um período de dois anos para trabalhar na Justiça Eleitoral de primeira instância, não se afastam da vara de origem. É natural que tenham dificuldades para adaptar-se a crimes diferentes e pouco tempo para os intrincados processos, porque, afinal, terão que dar conta dos seus na vara de origem. Óbvio que o desafio será enorme e quando estiverem familiarizados com os casos, serão sucedidos por outros que começarão tudo outra vez.

Esta afirmação em nada os diminui. A mesma dificuldade teria um juiz federal que fosse designado para uma vara de família ou um juiz do trabalho em uma vara de registros públicos. Com certeza se sairiam muito mal.

Nas varas federais especializadas em crimes contra a ordem econômica, não só os juízes submetem-se a intensos cursos, mas também os servidores, que se tornam expertos naquele sofisticado tipo de criminalidade.

Tudo isso exige anos de teoria e prática. Daí o inegável sucesso da operação "lava jato", citada na reportagem, que em cerca de cinco anos teve em "R$ 4,069 bilhões o total de valores recuperados por meio de acordos de colaboração premiada, acordos de leniência, termo de ajustamento de conduta (TAC) e renúncias voluntárias de réus ou condenados, já efetivamente restituídos" [9].

Pois bem, se queremos um país que evolua economicamente, que dê oportunidade a todos, cujas regras sejam respeitadas dentro do Estado de Direito, precisamos atuar com firmeza no combate à corrupção. Lamentavelmente, não vamos bem nesta área. Segundo a Transparência Internacional, em 2019 "o país manteve-se no pior patamar da série histórica do Índice de Percepção da Corrupção, com apenas 35 pontos" [10]. Precisamos reagir.

 


[1] Direito. Significado de Caixa 2. Disponível em: https://www.significados.com.br/caixa-2/. Acesso 8/8/2020.

[2] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleições 2020: conheça as regras e os limites para doações eleitorais. Disponível em: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Fevereiro/eleicoes-2020-conheca-as-regras-e-os-limites-para-doacoes-eleitorais. Acesso 8/8/2020.

[3] STF. ADI 4.650, relator ministro Luis Fux, j. 17/9/2015.

[6] GOMES, Luiz Flávio. caixa 2 eleitoral é crime? Disponível em: https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/204315523/caixa-2-eleitoral-e-crime. Acesso em 8/8/2020.

[7] STF, Plenário, QUARTO A G .REG. NO INQUÉRITO 4.435 DISTRITO FEDERAL, RELATOR MINISTRO Marco Aurélio, j. 14/3/2019. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750577279. Acesso em 8/8/2020.

[8] O Estado de São Paulo. Tulio Kruse e Bianca Gomes. "Lava Jato perde celeridade na Justiça Eleitoral", 3/8/2020, p. A-4.

[9] Procuradoria da República no Paraná. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/valor-devolvido-pela-lava-jato-ja-ultrapassa-os-r-4-bilhoes . Acesso em 8/8/2020.

[10] Transparência Internacional – Brasil. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ipc/. Acesso em 8/8/2020.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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