Os impactos da Lei 14.034/20 nos direitos dos passageiros-consumidores
9 de agosto de 2020, 7h12
No dia 5 deste mês, foi sancionada a Lei nº 14.034/20, oriunda da Medida Provisória nº 925, de 18 de março de 2020, que prevê "medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrentes da pandemia da Covid-19 na aviação civil brasileira" (artigo 1º).
Durante sua tramitação no Congresso Nacional, a redação original sofreu diversas emendas [1], o que acarretou um brusco impacto nos direitos dos consumidores do serviço de transporte aéreo, alguns deles para além da própria pandemia.
De acordo com o artigo 3º da nova lei, para todos os voos programados entre os dias 19 de março e 31 de dezembro de 2020, em caso de cancelamento por parte das companhias aéreas, terá o passageiro direito ao reembolso do valor pago na passagem, corrigido pelo INPC. Mas esse pagamento somente será realizado no prazo de 12 meses, a contar da data do voo cancelado.
Caso a contratação do bilhete junto à empresa aérea tenha ocorrido com pagamento parcelado, mediante solicitação do consumidor, a companhia aérea deverá adotar as providências necessárias perante a instituição emissora do cartão de crédito ou de outros instrumentos de pagamento, visando promover a imediata interrupção da cobrança de eventuais parcelas que ainda não tenham sido debitadas, sem prejuízo da restituição de valores já pagos.
O consumidor, alternativamente, poderá optar pelo recebimento de um crédito de valor maior ou igual ao de sua passagem, que poderá ser utilizado em nome próprio ou de terceiro em até 18 meses, a contar de seu recebimento. Caberá ao consumidor a solicitação desse crédito, que será concedido no prazo máximo de sete dias a contar de seu pedido.
Outra opção será a reacomodação em outro voo, próprio ou de terceiro, com a remarcação da passagem aérea, sem ônus, mantidas as condições aplicáveis ao serviço contratado. Todavia, tais opções serão oferecidas apenas quando possível.
Nos casos de cancelamento, atraso ou interrupção de voo, durante o período de pandemia, a assistência material estará vinculada aos critérios de possibilidade definidos pela própria empresa aérea, estipulando o "quando cabível" fornecerá essa assistência aos seus passageiros, diverso ao que disciplinava a Resolução 400/2016 Anac [2].
Caso o passageiro desista da viagem, ou seja, cancele o serviço no período de 19 de março a 31 de dezembro de 2020, também terá direito ao reembolso, porém, serão descontadas eventuais penalidades contratuais do valor a ser ressarcido. E se o consumidor aceitar o recebimento de crédito, este deverá ser equivalente ao valor da passagem aérea, podendo ser utilizado em até 18 meses, a contar de seu recebimento pelo passageiro ou por terceiro.
A norma ressalva como única exceção a essa regra a desistência realizada pelo passageiro no prazo de 24 horas, a contar do recebimento do comprovante de aquisição do bilhete da passagem e desde que tal ocorra com antecedência igual ou superior a sete dias da data do seu embarque. Este preceito já se encontra disciplinado no artigo 11 da Resolução nº 400/2016 da ANAC, que prevê o reembolso sem qualquer ônus [3].
Todas as disposições do artigo 3º se aplicam, também, às hipóteses de atraso e de interrupção do serviço disciplinadas nos artigos 230 e 231 do Código Brasileiro de Aeronáutica [4], e que tais regras, relativas ao reembolso, ao crédito, à reacomodação ou à remarcação do voo, independe do meio de pagamento utilizado para a compra da passagem. No mais, este artigo assinala que o reembolso de tarifas aeroportuárias ou de valores devidos a entes governamentais, que tenham sido pagos pelo passageiro, deverá ser realizado no prazo de sete dias a contar de sua solicitação.
É nítida a redução dos direitos dos passageiros causada pelo citado artigo 3º, pois, além do diferimento do prazo para reembolso do serviço não prestado, da relativização dos deveres de assistência material, de reacomodação e de remarcação da passagem tanto para os casos de cancelamentos programados, quanto para as hipóteses de atraso ou interrupção do serviço — situações essas que agravam ainda mais a vulnerabilidade do passageiro que está em trânsito —, não são apresentadas outras exceções à regra de reembolso em 12 meses.
Outrossim, muito embora regulamente uma situação emergencial, de pandemia, impõe ao consumidor a obrigação de arcar com "eventuais penalidades contratuais", caso necessite cancelar seu voo, sem ater-se à situação excepcional que estamos vivendo.
Vale lembrar que, desde a decretação da pandemia, o consumidor está receoso de viajar, buscando preservar a sua saúde [5], devido à possibilidade da rápida transmissão do coronavírus nos aeroportos, dentro das aeronaves ou no destino contratado.
O nosso país é continental e, diante de sua extensa área, estudos comprovam diferentes curvas da Covid-19 nos estados brasileiros. No início da pandemia, o epicentro da contaminação afetou a região Norte, especialmente a cidade de Manaus e o estado do Pará, e a região Sudeste. Já nos últimos meses, a curva se acentuou nas regiões Centro-Oeste, Sul, em alguns Estados do Nordeste e em Minas Gerais.
Diante dessa instabilidade que assola de forma rápida e distinta o Brasil, não se pode admitir que o consumidor que opta pelo cancelamento de sua viagem, contratada para um destino com elevada taxa de contaminação, esteja sujeito a "eventuais penalidades contratuais", quando, na verdade, o pedido não decorre propriamente de sua vontade, mas, sim, do receio de se deslocar e contrair a enfermidade.
Tal situação demonstra o desequilíbrio que a lei realiza entre deveres dos passageiros e dos transportadores: para aqueles, nada é relativizado; para estes, todos o são.
Portanto, não é possível punir o consumidor por algo que não lhe pode ser imputado, com as mesmas penas que ele sofreria na hipótese de desistência pura, simples e imotivada, em situação de normalidade.
Além dessas alterações, e apesar de a lei expressamente mencionar que dispõe sobre "medidas emergenciais para a aviação civil em razão da pandemia da Covid-19", em seu artigo 4º, estabelece outras ainda mais prejudiciais aos passageiros, realizando mudanças permanentes no texto do Código Brasileiro de Aeronáutica, que nem sempre guardam relação direta com a situação de calamidade pública ora vivenciada.
A nova lei insere no citado código um dispositivo legal que regulamenta o dano extrapatrimonial, assinalando que, para fins de indenização pelo transportador, em virtude de falha na prestação do serviço, deve o passageiro demonstrar a efetiva ocorrência do prejuízo e a sua extensão, sendo certo que tal espécie de dano não é de prova fácil em razão de sua própria natureza.
Assim, dificilmente será possível demonstrar o dano moral de maneira tão visível como é o dano material, cuja prova é estritamente documental. Como comprovar a insegurança e a apreensão do passageiro, motivadas pelo descaso com que é submetido pelas empresas aéreas quando se negam ou demoram a fornecer assistência material ou informações necessárias em relação ao cancelamento, atraso ou interrupção do voo contratado?
E, como se não bastasse, foram criadas hipóteses de caso fortuito ou força maior visando a afastar a responsabilidade das companhias aéreas (desde que comprovem a impossibilidade de adotar medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o dano, sendo mantidos os deveres de assistência material e de oferecimento de alternativas de reembolso, reacomodação ou reexecução do serviço), que não guardam qualquer relação com a crise instaurada pela pandemia, tais como a restrição ao pouso ou à decolagem, decorrentes de condições meteorológicas adversas impostas por órgão do sistema de controle do espaço aéreo, de determinações emanadas de autoridades ou, ainda, de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária.
Diante de todos esses prejuízos causados aos passageiros-consumidores, não lhes restará alternativa senão buscar o abrigo do Poder Judiciário, já que o Executivo e o Legislativo, a toda evidência, não cumpriram com o seu dever constitucionalmente insculpido de promover e de assegurar a defesa do consumidor.
[1] CONGRESSO NACIONAL. Medida Provisória nº 925, de 2020. Congresso Nacional. Disponível em: <https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/141111>. Acesso em: 06 ago. 2020.
[2]https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/resolucoes-2016/resolucao-no-400-13-12-2016/@@display-file/arquivo_norma/RA2016-0400%20-%20Retificada.pdf Art. 27. A assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos: I – superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação; II – superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e III – superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta.
[3] AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. Resolução nº 400, de 13 de dezembro de 2016. ANAC. Disponível em: <https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/resolucoes-2016/resolucao-no-400-13-12-2016/@@display-file/arquivo_norma/RA2016-0400%20-%20Retificada.pdf>. Acesso em: 6 ago. 2020.
[4] "Art. 230. Em caso de atraso da partida por mais de 4 (quatro) horas, o transportador providenciará o embarque do passageiro, em voo que ofereça serviço equivalente para o mesmo destino, se houver, ou restituirá, de imediato, se o passageiro o preferir, o valor do bilhete de passagem. Art. 231. Quando o transporte sofrer interrupção ou atraso em aeroporto de escala por período superior a 4 (quatro) horas, qualquer que seja o motivo, o passageiro poderá optar pelo endosso do bilhete de passagem ou pela imediata devolução do preço. Parágrafo único. Todas as despesas decorrentes da interrupção ou atraso da viagem, inclusive transporte de qualquer espécie, alimentação e hospedagem, correrão por conta do transportador contratual, sem prejuízo da responsabilidade civil" (BRASIL. Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Planalto. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7565.htm>. Acesso em: 6 ago. 2020).
[5] Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) Art. 6º São direitos básicos do consumidor: I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.
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