Opinião

Ordens de prisão de devedores de alimentos devem ser suspensas na Covid

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9 de agosto de 2020, 17h18

O mundo enfrenta a pandemia da Covid-19. O estado de calamidade pública decretado no Brasil fez com que Estados e municípios tomassem medidas de contenção do contágio e, consequentemente, gerou um reflexo na atuação dos tribunais e demais órgãos da administração da Justiça.

Caso que deve ser levado em consideração, nesse momento, é a prisão de devedor de alimentos cujo mandado esteja em vias se ser expedido ou, tendo sido expedido, não tenha sido cumprido.

Maria Berenice Dias [1] afirma, quanto ao direito a alimentos:

"Todos têm direito de viver, e viver com dignidade. Surge, desse modo, o direito a alimentos como princípio da preservação da dignidade humana (CF 1º III). Por isso os alimentos têm a natureza de direito de personalidade, pois asseguram a inviolabilidade do direito à vida, à integridade física. (…) Depois dos cônjuges e companheiros, são os parentes os primeiros convocados a auxiliar aqueles que não têm condições de subsistir por seus próprios meios. A lei transformou os vínculos afetivos em encargos de garantir a subsistência dos parentes. Trata-se do dever de mútuo auxílio transformado em proteção à família (CF 226). Parentes, cônjuges e companheiros assumem, por força de lei, a obrigação de prover o sustento uns dos outros, aliviando o Estado e a sociedade desse ônus. Tão acentuado é o interesse público para que essa obrigação seja cumprida que é possível até a prisão do devedor de alimentos (CF 5º LXVII)".

Ocorre que junto da obrigação de pagamento dos alimentos há, também, o direito à vida e saúde (integridade físico-corporal) do devedor. São direitos conflitantes, amparados pela Constituição Federal, que merecem atenção do Estado, a fim de que pondere qual deve ser aplicado em detrimento do outro.

De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteúdo do seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência [2].

Ou seja: de nada adianta que aquele que não esteja infectado tenha o risco de infectar-se, quando adentrar no sistema prisional e, da mesma forma tantos os funcionários públicos, quanto os demais detidos, têm o direito de serem protegidos em face da possibilidade de o novel prisioneiro ter o vírus e contaminá-los, quando preso.

No estado atual, em que se preza pelo isolamento social, distanciamento, bem como (ainda) para que sejam redobrados os cuidados de higiene pessoal e coletiva, é temerário inserir uma pessoa em um sistema penitenciário "falido" [3] é gerar danos a si e aos demais que lá se encontram.

A prisão do devedor de alimentos gera um duplo dano, reitere-se: ao preso, com a possibilidade de se contaminar e aos demais detentos (e serventuários) com a possibilidade de se contaminarem.

Entendemos que há de prevalecer o direito à vida e saúde do devedor sobrepondo-se à pena de prisão pelo não adimplemento oportuno dos alimentos, vez que de nada adianta o inadimplente adoecer ou, ainda, morrer e deixar de custear os alimentos posteriormente.

A dívida existe. O que se deve suspender é o cumprimento (execução) da ordem de prisão, executando-a posteriormente, quando a situação pandêmica atenuar ou encerrar totalmente.

Por isso que, data vênia, a Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é, nesse ponto, prejudicial, vez que em seu artigo 6º recomenda que se coloque em prisão domiciliar aquele que se encontram presos por dívidas alimentícias.

"Artigo 6º  Recomendar aos magistrados com competência cível que considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus".

O que se tem percebido é que os mandados de prisão são (inicialmente) cumpridos e, posteriormente, pretendida a colocação em prisão domiciliar, essa é analisada pelo magistrado, seguindo literalmente a citada recomendação do CNJ.

O devedor é exposto (e/ou expõe terceiros) ao vírus para, depois (de horas, dias, semanas etc.), ser avaliada a colocação em prisão domiciliar, pondo em risco a vida e saúde daquele que foi recentemente preso ou, ainda, dos terceiros que com ele terão contato.

O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de analisar o tema. Em alguns entendimentos converteu da prisão civil em estabelecimento prisional para a prisão domiciliar.

Entretanto pensamos que o entendimento mais acertado, ante o aumento dos casos de infectados pelo coronavírus, seja a solução aplicada recentemente pela 3ª Turma, consignada no julgamento do Habeas Corpus nº 580261/MG.

No citado caso, conforme voto do ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino, ficou consignado que seria o caso de "determinar a suspensão do cumprimento das prisões civis durante o período da pandemia", considerando ser a medida mais prudente, no atual estado das coisas.

Por certo que referido entendimento foi aplicado no caso em questão, mas mostra uma sensibilidade do Superior Tribunal de Justiça em casos como o ora em estudo, padronizando a suspensão (momentânea) das penas de prisão civil, evitando que mau maior (ao devedor e terceiros) ocorra, ponto em risco, inclusive, o cumprimento da obrigação de alimentos que, poderia, ser futuramente adimplida com a prisão civil, pós-pandemia, como meio de coerção.

Entendemos, dessa forma, que há a necessidade de que haja a suspensão das ordens de prisão, momentaneamente, prosseguindo-se a execução com as medidas de expropriação patrimonial, mas não permitindo que o devedor seja colocado (ou coloque terceiros) em risco em estabelecimento prisional.

 


[1] Manual de Direito das Famílias, 8ª ed., Ed. RT, p. 513

[2] Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva, 37ª ed., Ed. Malheiros, p. 200

[3] Vale recordar que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a figura do estado de coisas inconstitucional para o sistema penitenciário brasileiro (ADPF n.º 347)

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