Opinião

O Estado-Gendarme-Acusador

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9 de agosto de 2020, 6h34

Com espeque em Norberto Bobbio e autores contemporâneos, podemos definir Estado democrático de Direito como um conceito jurídico-político que retrata uma sociedade democrática existente em determinado espaço territorial, em que os órgãos/aparatos/instituições através dos quais se manifesta o poder do Estado têm seus poderes limitados e regulamentados estritamente pela Constituição e pelas leis que compõem o ordenamento jurídico, especialmente para impedir arbitrariedades e abusos contra os cidadãos comuns, que têm direitos e garantias em face dos próprios órgãos/aparatos/instituições que corporificam o Estado (ver Bobbio, Norberto, "Democracia e Liberalismo e Dicionário de Política", UNB).

Desde Montesquieu, entendemos o Estado como poder político organizado e regido por leis constantes de um ordenamento jurídico, estruturado/materializado em três poderes que coexistem harmônica e equilibradamente, com funções determinadas pela sua própria racionalidade operativa ou pela Constituição (artigo 2º da CF), em Executivo, Legislativo e Judiciário [1].

Contudo, o Estado de Direito, concebido pelos juristas, é ligado a uma realidade objetiva econômica, política, social determinada, assim como o sonho repousa sobre a realidade [2].

Qualquer leigo que pesquisar a Constituição Federal, em seus artigos 2º, 37, 44, 76 e 92, que se referem aos poderes do Estado, perceberá que não há ali nenhuma conceituação do que seja o ou um poder, cabendo esta tarefa aos teóricos.

 Entretanto, da leitura dos artigos citados sobressai que a legitimação desses poderes está nas funções específicas que cada um tem como poder-dever de cumprir. Falta ali, ainda, a definição do que sejam as funções do poder executivo, que não constam do artigo 76 e seguintes, devendo ser depreendidas da leitura do artigo 37; está dilatada dentro desse artigo que se refere à administração pública.

Em suma, os poderes do Estado brasileiro são definidos como tais pelas funções que desempenham: Poder Legislativo, o poder que legisla; Executivo, o poder que executa e administra as decisões do Estado; Judiciário, o poder que judica, que diz o que a lei quer dizer e a aplica aos casos concretos a ele submetidos.

Ainda que a Constituição Federal não os tenha concebido como poder, o Ministério Público, pelo artigo 127 e seguintes, e as polícias, pelo artigo 144 e seguintes, tiveram elencadas um rol de funções e instrumentos para exercê-las, que, pela sua importância para a garantia de reprodução das relações econômicas, políticas, sociais, culturais e das próprias normas que compõem o ordenamento jurídico, extrapolam as atribuídas ao judiciário, por exemplo, em matéria penal.

Da leitura do artigo 127, decorre explicitamente, de forma literal que este aparato é essencial a função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Entre as funções constitucionalmente atribuídas ao Ministério Público pelo artigo 129 da CF está a de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; ou seja, o monopólio da ação penal pública incondicionada.

Por sua vez, às polícias civis, militares, federais são atribuídas, pelo artigo 144 da CF, as funções indispensáveis para a averiguação de cometimento de delitos, o policiamento ostensivo e repressivo, a repressão ao tráfico de entorpecentes e aos crimes, e a mais importante: a preservação da ordem pública, que não é outra que a imposta pelo Estado e cuja observância preserva a sua própria existência e garante a reprodução das relações sociais imperantes.

Um raciocínio feito sem preguiça mental ou apego a dogmas, ainda que a dogmas jurídicos, torna indispensável a percepção de que podemos, escorados na lógica teórica empregada para conceituar os demais poderes/aparatos do Estado (estrutural e funcional, mais uma especialização técnico-jurídica e científica, nos termos propostos por Max Weber) conceber mais um poder/aparato do Estado, que pode assim ser denominado: Estado-Gendarme-Acusador, pois:

a) As polícias e o Ministério Público fazem parte, em matéria penal, de aparatos, cujas funções são a investigação dos delitos cometidos, a repressão a estes delitos, mais a acusação dos supostos autores destes delitos junto ao Estado-judiciário;

b) Ainda que sejam — as polícias e o Ministério Público aparatos organizacionais distintos, com hierarquia, especialização técnico-jurídica e científica distintas, podem ser, em decorrência das funções complementares e, às vezes, coincidentes que cumprem e desempenham (a investigação criminal, por exemplo), serem conceituados como componentes de um mesmo poder, o Poder-Gendarme-Acusador; por uma questão de coerência teórica, se tratarmos os demais poderes do Estado como Poder Executivo, Poder Judicial e Poder Legislativo.

Nas primeiras décadas do século XIX, um autor já havia percebido ser a jurisdição penal mero apêndice do inquérito e da investigação criminais, apesar de não ter desenvolvido o raciocínio que o levasse a estabelecer o alcance do aparato e funções desse poder que conceituei como Estado-Gendarme-Acusador. Ressaltou que se os integrantes do judiciário permanecessem em greve por meses, ninguém sentiria ou perceberia: a sociedade continuaria funcionando e reproduzindo-se como dantes. O mesmo não ocorreria se a polícia, toda a polícia, entrasse em greve durante uma semana: a sociedade e o ordenamento jurídico entrariam em colapso [3].

Corolário: Não restam dúvidas, teóricas ou fáticas, quanto a conceber o Estado-Gendarme-Acusador, em matéria penal, como mais um poder, como forma de manifestação direta do poder do Estado, com estrutura, hierarquia e funções específicas, essenciais a reprodução da sociedade nos termos em que ela se organiza, bem como do ordenamento jurídico.

Isso fica mais claro a cada dia em nosso país, quando as instituições/aparatos/poderes Executivo, Legislativo e Judiciário encontram-se condicionados pelo acionar de membros da Polícia Federal e do Ministério Público de primeira instância, especificamente aqueles integrantes da força tarefa denominada "lava jato", que, em típica operação policial inquisitória, marca os destinos da nação há praticamente cinco anos, tendo contribuído/influenciado/condicionado o impeachment da então presidente Dilma Roussef, a cassação de Eduardo Cunha, o quase impeachment e enfraquecimento do governo de Michel Temer e, principalmente, a eleição de Bolsonaro e a posse de Moro, condutor segundo os diálogos revelados pela "vaza jato", da força-tarefa da "lava jato".

 


[1] Destaco que a teoria de Montesquieu é conceituada pelos estudiosos como mecanicista, vez que concebeu o Estado tendo como referencial o relógio de pêndulo, em seu tempo o objeto mais preciso em funcionamento. Sua adaptação, absorvendo elementos da concepção organicista do Estado feita por Hegel é a que predominou teoricamente e é posterior a sua formulação original. Sobre o ponto, ver: O Espírito das Leis; Martin Claret editora, 2003; Norberto Bobbio, teoria das formas de Governo, UNB editora, 2000; Juan Ramón Capella, Fruto Proibido, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002.

[2] Ver: Passukanis, Eugeny Bronislanovich, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, Livraria e Editora Renovar, 1989.

[3] Pasukanis, Eugeny Bronislanovich; A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, Livraria e Editora Renovar, RJ, 1989.

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