Opinião

STF versus STF: as liberdades de expressão e a desinformação

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  • Veruska Sayonara de Góis

    é docente e pesquisadora na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) mestre em Direito Constitucional (UFRN) advogada e autora da obra O Direito à Informação Jornalística.

8 de agosto de 2020, 11h14

À questão "o que significa a palavra liberdade?", feita por Roscoe Pound, podemos imaginar muitas possibilidades. Entre tantas, a de que se possa pensar e dizer o que se quer, bem como o direito ao dissenso e ao desacordo. A Folha de S. Paulo, em editorial publicado no dia 30 de maio deste ano, chamou a atenção para o efeito tóxico de palavras com o advento da internet e das redes sociais, discutindo a regulação da liberdade de expressão e o inquérito das fake news instaurado pelo STF.

Em um sistema republicano e democrático, a liberdade de que dispomos é a liberdade civil, aquela definida pela legalidade. A despeito de uma perspectiva americana ou europeia da discussão, em que se poderia exigir menos (EUA) ou mais (Europa) controle, estamos diante de calibração de expectativas. Se em uma literatura clássica temos J. Stuart Mill tratando "Sobre a liberdade" e John Milton sobre uma "Aeropagítica", talvez ambos possam ser vistos como uma utopia libertária, baseada em um evolucionismo ético que não se comprovou.

Em uma tradição liberal, Benjamim Constant foi mais realista com o texto "Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos", em que aponta as diferentes perspectivas entre a participação política (liberdade coletiva) dos antigos versus o gozo de viver a própria vida (liberdade individual) dos modernos.

Isaiah Berlin continua sendo relevante com o ensaio "Dois conceitos de liberdade", no qual aponta a liberdade negativa como exigência de uma abstenção estatal e de outrem; já a liberdade positiva exige condições para uma ação política, uma mínima qualidade que o Estado deve fornecer para o debate público.

Em um extremo, a liberdade negativa pode levar à premissa de que eu posso matar meus opositores (Dworkin). Em outro extremo, a liberdade positiva pode levar o Estado a acreditar que é o editor da sociedade — na expressão do ministro Dias Toffoli acerca do Supremo. Era exatamente contra a ideia do Estado editor que John Milton se batia, argumentou Fernando Schüler, em sua coluna na Folha de S. Paulo (29/7/2020).

Pulando da utopia à distopia, somos apresentados a um mundo onde a ausência de liberdade é o resultado da tecnologia e do controle do pensamento, a partir de "1984" (G. Orwell) e "O Conto da aia" (M. Atwood). Entre tribalismos, populismos e justiceiros, não é tão distópico assim, afinal.

As chamadas fake news não se contrapõem à informação verdadeira, como se fossem uma notícia errada ou negligente. Funcionam como técnica elaborada de desinformação, na medida em que denotam uma "mentira organizada" (H. Arendt) e funcional, com uso de inteligência artificial em muitas vezes.

O Superior Tribunal de Justiça afirma, em sua oitava tese (de uma série de 13 teses, 2019) que a ampla liberdade de informação, opinião e crítica jornalística reconhecida constitucionalmente à imprensa não é um direito absoluto, encontrando limitações, tais como a preservação dos direitos da personalidade, nestes incluídos os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade, sendo vedada a veiculação de críticas com a intenção de difamar, injuriar ou caluniar.

Pode existir alguma liberdade para a mentira em vários aspectos, como há para a exposição, a arte, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas. Mas não existe liberdade para difamar, caluniar e injuriar, como não existe liberdade para roubar ou matar. Ipso facto, se as pessoas o fazem, sujeitam-se às normas.

Não há censura em se aplicar a norma jurídica, é nisso que implica a liberdade civil.

Mas o Supremo Tribunal Federal do inquérito das fake news é outro Supremo, não aquele Supremo do Recurso Extraordinário 511.961/SP (RE 511.961 — Diploma de jornalista). Para aquele Supremo, em 2009 e de acordo com Gilmar Ferreira Mendes, o exercício da atividade jornalística não deveria implicar na exigência do diploma por não implicar riscos ou danos à coletividade e a terceiros.

Em outras palavras, as liberdades de informação e comunicação não ofereceriam perigo de dano. Certamente, ao tratar de si enquanto instituição e ministros, o STF parece acreditar que a palavra, a liberdade, a informação ou a desinformação, as notícias falsas têm o condão de implicar tanto o perigo quanto o dano concreto.

Não que se confundam notícias erradas ou inverídicas com fake news. Mas houve uma mudança de postura do STF quanto à interferência do Estado na liberdade de expressão. Na pesquisa "Judicialização da comunicação social", em que investigamos a jurisprudência do Supremo no tocante à liberdade de expressão e comunicação social, foram encontradas 19 ações de controle concentrado de constitucionalidade de outubro de 1988 a julho de 2018, incluídas a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 403, Marco Civil da Internet) e a ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5527, Marco Civil da Internet).

Cobrindo o período de 30 anos (1988-2018), o corpus de análise diz respeito às ações em controle concentrado de constitucionalidade, não abarcando os paradigmáticos "caso Ellwanger" (Habeas Corpus 82424/RS) e o "caso do diploma de jornalista" (Recurso Extraordinário 511.961), que se deram por meio de controle difuso de constitucionalidade.

Assim, excetuando as ações que discorrem sobre internet, ainda em julgamento (ADPF 403, Marco Civil da Internet e ADI 5527, Marco Civil da Internet), na maioria dos casos o Supremo se posicionou por uma compreensão libertária quanto aos meios de comunicação, tendente à primazia ou à posição preferencial da liberdade de expressão e informação, e à não intervenção do Estado.

Na declaração de inconstitucionalidade da Lei 5.250/67 (ADPF 130-7), o Supremo, pelo teor dos votos, apontou para um modelo de comunicação social baseado no livre mercado de ideias, cuja regulamentação viria de um clube fechado dos grandes acordos e grandes negociadores, como as organizações internacionais econômicas e os conglomerados corporativos — o modelo institucional top-down. Isso é justamente o que temos com os gigantes da tecnologia que são investigados no inquérito supremamente controverso das fake news.

Suponhamos que essa posição libertarista era utópica por vários motivos, como os de não aprofundar o debate sobre os danos causados pelos meios de comunicação através de monopólio, riscos das tecnologias emergentes, prejuízos à honra das pessoas e descumprimento das normas constitucionais quanto à principiologia ou regime jurídico da comunicação.

Suponhamos que a implantação do Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, foi mais uma formalidade que não ajudou no avanço das questões.

É insuficiente dizer que a intervenção do Estado através do STF — o inquérito sobre as fake news — não redime a questão ou a superficialidade dos debates quanto às liberdades de expressão e comunicação. Antes, demonstra um timing político no STF e nos tribunais superiores, como o do TSE, que ainda não julgou várias ações referentes à campanha eleitoral de 2018.

Voltando a Benjamim Constant: se os pós-modernos voltaram à praça pública, e querem participar da política, é um exercício legítimo da liberdade. Com Isaiah Berlin, se eles podem exercer a sua liberdade negativa, o Estado precisa se abster.

Porém, se excedem do seu direito, por exigência do direito coletivo positivo à liberdade, o Estado precisa intervir, criando um ambiente público que evite o silenciamento de uns por outros. A proteção mais rigorosa da liberdade de expressão não protegeria um homem falsamente gritar fogo em um teatro, causando pânico, no argumento de Oliver Wendell Holmes Jr.

Sobre as fake news, já temos uma Constituição e leis esparsas. Mas uma vez que a sociedade se torna mais complexa, exige-se mais Direito. Como disse Roscoe Pound, o Direito, em contraposição às leis, precisa de juristas. Precisa de consistência e de integridade. Por isso, é importante ressaltar que o inquérito das fake news vai contra a jurisprudência do STF sobre o tema, em um período de 30 anos. Fica a questão: Erramos? E, se sim, antes ou agora?

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