Observatório constitucional

Do "direito adquirido" à orientação jurisprudencial

Autor

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

8 de agosto de 2020, 8h00

Na última coluna do Observatório, Victor Marcel Pinheiro trouxe reflexão oportuna sobre a formação de precedentes. Aproveitando esse tema geral, proponho colocar em discussão a instigante questão relacionada à modulação dos efeitos de decisões judiciais, prevista no artigo 927, § 3º, do CPC, segundo o qual "na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica".

Já havíamos tratado sobre o tema da modulação em agosto de 2014, antes do advento do atual Código de Processo Civil[1]. Na ocasião, reconhecíamos que a expectativa de previsibilidade e segurança jurídica se projetava no campo da jurisprudência, estando na pauta das discussões à época formas de prevenir viradas bruscas de orientações jurisprudenciais, sobretudo dos tribunais superiores, e de evitar surpresas na prestação jurisdicional.

Naquela época, alguns defendiam a aplicação ampla, em todos os campos da jurisdição, do artigo 27 da Lei 9.868, de 1999, segundo o qual "ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado".

Defendíamos, naquela oportunidade, que o artigo 27 da Lei 9.868, de 1999 não seria um expediente disponível para a generalidade do Poder Judiciário, dado que não se deve confundir os mecanismos próprios de atuação do Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional que lhe compete, com a prática judiciárias dos demais juízes e tribunais, mesmo que superiores.  

Essa lacuna agora, sem dúvida alguma, restou preenchida pelo mencionado artigo 927, § 3º, do CPC, admitindo a aludida modulação nas hipóteses em que o Tribunal Superior modificar sua orientação ("alteração da jurisprudência dominante"), quando houver razões de interesse social e segurança jurídica.

Para interpretar o dispositivo, parece natural que se inspire no artigo 27 da Lei nº 9.868, de 1998, mas com a cautela de não mimetizar, sem acurada reflexão, o entendimento do STF a respeito dessa ferramenta do controle de constitucionalidade na atuação dos demais Tribunais Superiores, sendo indispensável a formação de uma dogmática processual própria[2].

Para ilustrar, é válido pensar no Superior Tribunal de Justiça. Não obstante o STJ tenha nos últimos 20 anos assumido, paulatinamente, a função de uma Corte de Precedentes[3], essa feição do STJ não permite atribuir-lhe uma função assemelhada a de uma Corte Constitucional (da legalidade), pois os planos da legalidade e da constitucionalidade não são assimiláveis.

A jurisdição (ordinária), vale lembrar, voltada à composição de conflitos ou ao suprimento de vontades pela aplicação da lei, é marcada pela imparcialidade do julgador que decorre da sua vinculação ao direito posto, destinando-se a jurisdição à atuação da vontade do direito sobre a vontade das partes.

Na jurisdição ordinária, pois, o juiz reconhece o direito (sem colocá-lo em xeque) e o aplica ao caso em julgamento. Mesmo no exercício do controle difuso de constitucionalidade, há uma diferença de atitude do julgador quando aplica a lei  ou quando declara a sua inconstitucionalidade incidental (reconhecendo sua aplicação em tese no caso em julgamento, mas deixando de utilizá-la em função do vício da inconstitucionalidade), daquela relativa à jurisdição constitucional prestada pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade.

Igualmente, não se afirma que "o juiz é a boca da lei", mas sim que a atividade judicial padrão deve sim ser concebida como uma atividade estatal que os processualistas chamam de secundária e substitutiva (Calamandrei e Chiovenda). Relembro a ponderação de Ingborg Maus:

"A concepção de Montesquieu do juiz como um autômato (‘inanimé’) de aplicação da lei contém, na verdade, a excessiva ilusão de que toda sentença em particular no caso de aplicação (singular) seria definitivamente determinada pela formulação da lei (geral). No entanto, Montesquieu profere neste contexto o entendimento correto de que, em todo caso, a vinculação legal da justiça garante, em geral, a liberdade dos cidadãos diante de abusos estatais arbitrários. Sem esta vinculação, 'viveríamos na sociedade sem conhecer exatamente as obrigações que contraímos nela'[4]."

E aqui entra o cerne da nossa reflexão sobre a modulação, nos termos do artigo 927, § 3º, do CPC, sobre a necessidade de vincular eventual modulação de decisão pelos Tribunais Superiores quando houver modificação de sua jurisprudência (a indicar que a decisão da modulação só está disponível para o Tribunal Superior que altera sua jurisprudência e não para as instâncias inferiores) e houver razões de interesse social e segurança jurídica, com o objetivo de assegurar que a sociedade conheça "exatamente as obrigações que contraímos nela".

Pamela Stephens, ao tratar da doutrina da retroatividade (das decisões judicia da Suprema Corte norte-americana), lança algumas luzes sobre a discussão[5].

Relata a professora Stephens que, no âmbito penal, a Suprema Corte, a partir da decisão Griffith x Kentucky, decidiu que "ideias fundamentais de correção e de procedimento legal ditam que as mesmas regras devem ser aplicadas a todos os casos semelhantes em revisão direta"[6], seguindo o antigo entendimento do Justice Harlan, no sentido de que o devido processo legal exige que a Corte "aplique seu melhor entendimento sobre princípios constitucionais a todos os casos perante  ela em revisão direta e ideias fundamentais de correção ditam que partes semelhantemente situadas sejam tratadas semelhantemente"[7].

Por outro lado, segundo ela, em matéria cível, o teste da retroatividade observa os seguintes parâmetros (teste de 3 fases do caso Chevron Oil): 1) se a Corte anunciou um novo princípio de direto; 2) o objetivo e o efeito desse novo princípio e se o processo retroativo fomentará esse objetivo; 3) a iniquidade de aplicar retroativamente o novo princípio[8]. Fácil perceber que o primeiro critério dialoga com o requisito da alteração da jurisprudência dominante, previsto no artigo 927, §3º, do CPC.

No caso American Trucking vs. Smith, a Suprema Corte assentou que o princípio que está na base da doutrina de irretroatividade, no âmbito civil, é a proteção da legítima confiança (enquanto na retroatividade penal há o princípio da igualdade e da expansão da proteção aos demandados criminais em face do Estado).

Relata a professora Pamela Stephens que a discussão sobre a retroatividade ainda gera perplexidades na Suprema Corte dos Estados Unidos, havendo movimentos pendulares para ora se aproximar da presunção da retroatividade da nova orientação e ora dela se afastar. Mas, para os fins dessa breve reflexão, essa experiência oferece subsídios para aprimorar nosso entendimento sobre o instituto.

Entendo que a definição de interesse social e segurança jurídica, a justificar a decisão ou não de modulação, deve observar parâmetros do direito material.

No plano do direito público, é forte a tendência de expandir a esfera de proteção do cidadão frente ao Estado. São indicativos dessa tendência o disposto nos artigos 140 e 146 do CTN, para o âmbito das lides tributárias, ou no artigo 2º, parágrafo único, XIII, da Lei nº 9.784, de 1999, para questões envolvendo o contencioso administrativo[9], a que se agrega ainda o artigo 23 da LNDB, recentemente introduzido no nosso ordenamento jurídico. No plano do direito eleitoral a questão já foi enfrentada considerando as peculiaridades de cada ciclo eleitoral[10].  No âmbito do direito privado, a discussão parece ser mais complexa, dado que sempre haverá o litigante que busca ver sua conduta avaliada pela orientação passada, que balizou sua decisão e, do outro lado, a contraparte que com essa interpretação antiga nunca se conformou, levando ao Judiciário sua irresignação. A boa-fé certamente será um instituto relevante para essa reflexão.

É preciso destacar, no entanto, que a regra que deriva do artigo 927, § 3º, do CPC, é a orientação geral de que a nova orientação do Tribunal Superior deve retroagir, salvo se preenchidos os requisitos postos na norma. Essa leitura prestigia uma visão do princípio da Separação de Poderes, segundo o qual o Poder Judiciário é estruturado com a função de dizer o que o direito é, deixando ao legislador a função de modificá-lo[11].

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse aqui o portal do OJC.


[1] Em artigo intitulado “modulação dos efeitos não pode ser banalizada pelo Poder Judiciário”, https://www.conjur.com.br/2014-ago-09/observatorio-constitucional-modulacao-efeitos-nao-banalizada-poder-judiciario 

[2] Uma rápida pesquisa é suficiente para demonstrar que há hoje no Brasil farta doutrina processual sobre o tema de precedentes, em geral, e sobre a modulação, em específico, em que se identificam ricas divergências. Apenas para ilustrar: DIDIER JR., Fredie et al. (coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016 (com artigos de vários autores, como Lenio Streck, Georges Abboud, Daniel Mitidiero, Cruz e Tucci); PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de processo, v. 246, p. 381-399, ago.2015; PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019; MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2016 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014; THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015; MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2018; ARRUDA ALVIM, Teresa. Modulação na alteração da jurisprudência firma ou de precedentes vinculantes. São Paulo, RT, 2019.

[3] É o que se revela por sua função constitucional de garantir a integridade da legislação federal e a uniformidade de sua interpretação (artigo 105 da Constituição), pelas reformas legislativas que ampliaram a força de suas decisões, no CPC-73 e no CPC-2015 (vide, por exemplo, os arts. 557, 518 e 543-C do CPC-73, com a redação conferida pelas Leis nº 9.756, de 1998, 11.276, de 2008, e 11.672, de 2008, respectivamente) e pelas nossas práticas judiciárias.

[4] MAUS, Ingeborg. Separação dos poderes e função judiciária: uma perspectiva teórico-democrática. In: BIGONHA, Antonio Carlos Alpino; MOREIRA, Luiz (org.). Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 30

[5] STEPHENS, Pamela J. A nova doutrina da retroatividade: igualdade, confiança e stare decisis. Trad. Pablo Giordano Bernardi Bombardelli, revisão de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2012.

[6] Opinião do Justice Stevens em American Trucking v. Smith, 496 US at 212 apud STEPHENS, op.cit, p. 40.

[7] STEPHENS, op.cit, pp. 40-41.

[8] STEPHENS, op.cit, pp. 30-33.

[9] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Irretoratividade e jurisprudência judicial. In:  FERRAZ JR. Tércio Sampaio; CARRAZA, Roque Antonio; NERY JUNIOR, Nelson. Efeito ex nunc e as decisões do STJ. 2ª ed. São Paulo, Manole, 2009. pp. 1-13.

[10] Sobre o ponto, vide RE 637.485 (STF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 21/5/2013) e a dissertação de mestrado de Wagner Une (UNE, Wagner Akitomi. O princípio da segurança jurídica e modulação dos efeitos da alteração da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitora. Brasília, IDP, 2017).

[11] Nesse sentido, o voto do Min. Teori Zavascki, quando integrava o STJ, nos autos do paradigmático julgamento ocorrido no ERESP 738.689 (STJ, 1ª Seção, DJ 22/10/2007).

Autores

  • é Editor-Chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional. Doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito do Estado pela UnB. Professor, vinculado ao programa de pós-graduação do IDP, e advogado.

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