Opinião

É lícita a apreensão de veículos utilizados na prática de contrabando

Autor

  • Lucas Ferreira Dutra

    é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo IBCCrim e pela Faculdade de Direito de Coimbra e delegado de Polícia Federal.

8 de agosto de 2020, 16h13

É recorrente na prática policial, principalmente das Polícias Militares Rodoviárias e da Polícia Rodoviária Federal, a apreensão de veículos utilizados na prática do crime de contrabando. Ocorre que o artigo 91 do Código Penal, que dispõe sobre os efeitos da condenação, diz que serão perdidos em favor da União os instrumentos do crime desde que estes "consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito". No caso do veículo, este não constitui objeto criminoso em si mesmo, sendo inaplicável esta norma para apreensão e futuro perdimento de veículos utilizados como instrumento de crime.

A Lei 13.964/2019, conhecido pacote "anticrime", inseriu o §5º no artigo 91-A do Código Penal, ampliando a hipótese de perdimento de instrumentos utilizados no crime. Neste sentido dispõe o novo §5º:

"§5º. Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por organizações criminosas e milícias deverão ser declarados perdidos em favor da União ou do Estado, dependendo da Justiça onde tramita a ação penal, ainda que não ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, nem ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes". (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Assim, instrumentos utilizados para prática de crimes por organizações criminosas serão objeto de perdimento mesmo quando não forem ilícitos em si mesmo e que não ofereçam perigo à ordem pública ou possam ser usados para o cometimento de novos crimes. A possibilidade de perdimento de bens lícitos é óbvia, já que a nova norma permite a perda de bens que não ofereçam risco para cometimento de novos delitos, o que só poderia consistir em bens lícitos, já que posse de bens ilícitos sempre representará perigo de reiteração criminosa, e via de regra até um crime em si mesmo.

Assim, caso o veículo esteja sendo utilizado por organização criminosa para a prática de contrabando, ou qualquer outro crime, deverá haver a apreensão do veículo visando ao futuro perdimento. Porém essas apreensões já eram realizadas muito antes da entrada em vigor da lei "anticrime", e muitas vezes não envolve organizações criminosas. Assim, elas seriam feitas com base em qual norma?

Na verdade, essas apreensões são feitas como base não na aplicação do Direito Penal, mas, sim, do Direito Administrativo Aduaneiro. Quando as polícias realizam essas apreensões estão agindo no poder de polícia administrativo aduaneiro, assim, mesmo a Receita Federal tem o poder de apreender um veículo utilizado para a prática do crime de contrabando. Vejamos:

O Decreto-Lei 37, de 18 de novembro de 1966, que dispõe sobre os serviços aduaneiros, diz em seu artigo 96 que uma das penas previstas para infrações aduaneiras é a perda do veículo transportador. O decreto regulamenta em seu artigo 104 em quais hipóteses de dará esta perda, entre elas o inciso V:

"Artigo 104  Aplica-se a pena de perda do veículo nos seguintes casos:

V Quando o veículo conduzir mercadoria sujeita à pena de perda, se pertencente ao responsável por infração punível com aquela sanção".

Nesses casos, cabe ressaltar que mesmo que o veículo não seja de propriedade do condutor será possível a pena de perdimento, pois o proprietário que permitiu a utilização do veículo também será responsável pela infração, conforme artigo 95 do decreto-lei:

"Artigo 95  Respondem pela infração:

I Conjunta ou isoladamente, quem quer que, de qualquer forma, concorra para sua prática, ou dela se beneficie".

Por óbvio, nesses casos, precisará restar demostrada a responsabilidade do proprietário do veículo com relação à prática do contrabando. Se este não tinha conhecimento, e não poderia ter, que seu veículo estava sendo utilizado para a prática do crime, não poderá ser aplicada a pena de perdimento. Porém, a apreensão deve ser realizada e a responsabilidade será apurada no âmbito do processo criminal ou administrativo.

O decreto-lei complementa, em seu artigo 131, caput e §1º, que o veículo deve ser imediatamente apreendido e recolhido a repartição aduaneira:

"Artigo 131 — Na ocorrência de fato punível com a perda do veículo ou da mercadoria, proceder-se-á, de pleno, à apreensão.

§1º. A coisa apreendida será recolhida à repartição aduaneira, ou à ordem de sua chefia, a depósito alfandegado ou a outro local, onde permanecerá até que a decisão do processo fiscal lhe dê o destino competente".

Desta forma, é lícita a apreensão de veículos utilizados na prática de infrações aduaneiras, notadamente no caso de importação de mercadorias ilícitas, que configura a prática criminosa de contrabando, podendo a apreensão ser realizada por qualquer agente policial ou mesmo pela Receita Federal.

Autores

  • é advogado criminalista e pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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