Direito do agronegócio

Reflexões sobre o Direito Alimentar em 2020

Autores

  • Flavia Trentini

    é professora associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil e do programa de mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e livre docente em Direito Agrário pela FDRP-USP com estágio pós-doutoral pela Scuola Superiore Sant'Anna di Studi Universitari e Perfezionamento (SSSUP Itália) e em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP).

  • Eduardo Gomes Cañada

    é mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP) e graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP).

7 de agosto de 2020, 8h00

Há poucos dias passados da metade do ano, já é possível afirmar que 2020 deixará sua marca na história jurídica. As repercussões de uma pandemia das proporções do coronavírus suscitam uma série de consequências para o direito: a mudança do regime das relações de direito privado; a criação de um "orçamento de guerra"; a delimitação da competência executiva dos entes federativos. Como a crise, a lista também continua.

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Contudo, não apenas como resposta, o direito também deve ser rememorado nas indagações sobre o porquê do surgimento da crise. Ainda como hipótese não provada, mas considerando o comportamento de outros membros da "família" do coronavírus, os indícios apontam para os mercados populares (wet markets) como o nicho de cruzamento  interespécies do vírus.[1]

Essa tese, se comprovada, indica que a pandemia tem origens em uma crise alimentar. Com isso, não há o juízo de valor sobre quais alimentos integram a dieta de cada cultura; mas ao fato de que parâmetros de segurança alimentar não foram observados. Caso contrário, o problema permanece, pois a insegurança alimentar também se estende para outras preocupações dos próprios chineses, como: o uso de agrotóxicos, o manejo da produção e a poluição.[2]

Preocupações sociais a respeito da qualidade e quantidade dos alimentos nos mercados inspiraram a conformação de um Direito Alimentar. Esse específico ramo jurídico normatiza as relações jurídicas que têm os alimentos por objeto.[3] Mais do que isso, há primazia na consecução de duas diretrizes fundamentais: a segurança (safety) e a seguridade (security) alimentares. A distinção comum em línguas anglófonas não se verifica em línguas latinas. Com efeito, a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional brasileira (Lei 11.346/06) sintetiza os dois conceitos em apenas um, optando por designar vários propósito na “segurança alimentar”. Sem dúvidas, há uma relação de prejudicialidade entre segurança e seguridade, uma não se realiza plenamente sem a outra.

A segurança alimentar é estágio de qualidade dos alimentos que decorre do atendimento aos requisitos mínimos de higiene, como a ausência de qualquer tipo de contaminação, quer por substâncias em si consideradas tóxicas ao ser humano, quer pelo fato do alimento ter alguma alteração genética potencialmente nociva[4], ou tenha componente lícito, desconhecido pelo consumidor, que possa lhe ser prejudicial, como o glúten para o celíaco, o açúcar para o diabético (= segurança alimentar relativa).

Por outro lado, a seguridade alimentar, é conceito que foi progressivamente desenvolvido até, na Declaration of the World Summit on Food Security de 2009, incluir seus quatro pilares, quais sejam: disponibilidade (quantidade suficiente de alimentos no mercado); acesso (possibilidade física, econômica e social para adquirir alimentos); utilização (adequação sanitária, nutricional e social do alimento e do local onde é manuseado); e estabilidade (presença constante de alimentos no mercado, ao longo do tempo).[5] 

Com efeito, o objetivo de utilidade do alimento compreende a segurança alimentar. Evidencia que, não obstante a diferença conceitual, há um nexo de prejudicialidade entre a segurança e a seguridade. É impossível garantir o acesso ao alimento (seguridade) se não há um mínimo de segurança intrínseca a ele. Ao mesmo tempo, se não há alimentos em quantidades suficientes, não há derrogação dos protocolos de segurança. Aqui percebe-se mais um argumento que corrobora a tese Bernd van der Meulen em posicionar a insegurança ao centro das preocupações do Direito Alimentar.

As questões de Direito alimentar não são uma exclusividade dos chineses, o Brasil  também é afetado cotidianamente e em 2020 já ocorreu: (1) a comercialização de cervejas com substâncias nocivas; (2) a perda de produção em grandes centros de distribuição após as enchentes em São Paulo; (3) a necessidade do auxílio emergencial como forma de assegurar um mínimo existencial; (4) a inclinação do Poder Judiciário a indenizar o consumidor que identifica um corpo estranho em alimentos.Todas esses casos não são aleatórios e podem ser — em alguma medida — reconduzidos ao Direito Alimentar.

(1) O caso Backer representa pode apresentar uma grave falha na segurança alimentar na produção de cervejas — que também são alimentos! Um furo no tanque de armazenamento viabilizou  a presença de dietilenoglicol (substância tóxica, anticongelante e usada no sistema de refrigeração). Caso demonstrada a negligência, somada à omissão em realizar um recall, atingiu ao menos vinte e nove pessoas, bem como matou outras sete. O inquérito foi encerrado com o indiciamento de sete pessoas.

(2) Em fevereiro deste ano, as fortes chuvas — em conjunto a velhos problemas de urbanização — causaram alagamentos e diversos pontos da cidade de São Paulo. Um desses pontos foi a Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo). Como consequência, toneladas de alimentos foram descartados. O fato  foi amparado na normativas sobre boas práticas para serviços de alimentação, bem como foi vistoriada pela Anvisa. 

(3) Com o avanço da pandemia e a necessidade do isolamento social, o Governo Federal lançou um programa de Auxílio Emergencial, com o objetivo de garantir o mínimo existencial para a população mais vulnerável. Com efeito, o direito à alimentação já estaria, também, garantido pela previsão do salário mínimo, pois os direitos fundamentais são indivisíveis e reciprocamente dependentes.[6]

(4) Por fim, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo parecem estar mais propensos a indenizar o consumidor que encontra algum corpo estranho em seu alimento. Um caso paradigmático foi a exigibilidade da indenização frente o Ifood, noticiado aqui na ConJur. Contudo, nem sempre foi assim. Em 2015 o STJ publicou dois enunciados conflitantes na 39ª edição do Jurisprudência em Teses. Alguns ministros acreditavam que apenas a ingestão do alimento inseguro era indenizável. Outros, que a mera identificação bastava.

Eventualmente, numa sociedade pautada pelo risco, as crises não são condicionadas por um hipotético "se" [algo não for feito], mas por um fatídico "quando" [algo acontecerá]. Ainda assim, a recusa em implementar um regime de Direito Alimentar eficiente, cujo núcleo pragmático é o imperativo de retirar alimentos inseguros da dinâmica dos mercados,[7] terá como consequência a abreviação do nascedouro de outra(s) crise(s).


[1] Estudos mais recentes falharam em localizar o vírus em amostras de alimentos coletados. Nesse sentido, os mercados seriam apenas locais de super transmissão (como templos, restaurantes, etc). Ainda assim, a obtençãode uma narrativa conclusiva sobre a origem do coronavírus pode demorar mais de uma década, a exemplo da Sars. 

[2] SI, Zhenzhong; REGNIER-DAVIES, Jenelle; SCOTT, Steffanie. Food safety in urban China: Perceptions and coping strategies of residents in Nanjing In China Information, 2018, v. 32(3), pp. 377–399

[3]  COSTATO, Luigi. I principi fondanti il diritto alimentare. In Rivista di diritto alimentare. Roma: A.I.D.A., ano 1, pp. 1-6, v. 1, 2007

[4] GRASSI NETO, Roberto. Segurança Alimentar: Da Produção Agrária à Proteção do Consumidor. Tese (Livre-Docência), FD, USP, São Paulo, 2011, p. 55

[5] ALABRESE, Mariagrazia. Il regime della food security nel commercio agricolo internazionale: Dall’Havana Charter al processo di riforma dell’Accordo agricolo WTO. Torino: G. Giappichelli Editore, 2018, p. 15 e ss.

[6] SARLET, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 627

[7] MEULEN, Bernd van der. The Core of Food Law: A Critical Reflection on the Single Most Important Provision in All of EU Food Law. In European Food and Feed Law Review. Berlin: Lexxion, pp. 117-125, v. 7, n. 3, 2012

Autores

  • é professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, doutora em Direito pela USP, com pós-doutorado em Administração e Economia das Organizações pela USP. Visiting professor na Scuola Universitaria Superiore Sant’anna (Itália).

  • é mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP) e graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP).

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