Limite Penal

A oralidade e a cultura das audiências:
a Lei 13.964, de 2019

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Thiago M. Minagé

    é advogado criminalista professor de Processo Penal pós-doutor pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro doutor e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá conselheiro estadual da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ e presidente da seção do Rio de Janeiro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

7 de agosto de 2020, 8h01

O surgimento da Lei 13.964, de 2019, demonstra um certo avanço legislativo rumo ao reconhecimento da necessidade de implementação da cultura das audiências para tomada de decisões. Trata-se da adoção do princípio da oralidade, mediante verdadeira mudança de paradigma, em que se busca o abandono da prática dos atos ocultos e escritos para se implementar uma nova (e inovadora) maneira de fundamentar a investigação, acusação e a prisão de pessoas. Além da imposição de um conjunto de novos requisitos a todas as instituições do "setor judicial", a nova legislação acaba por elevar os padrões de proteção do acusado, visando que o processo criminal seja realizado de forma a alcançar sua finalidade [1]. Deveria gerar uma mudança na "dinâmica" do ritual judiciário e da conduta dos atores, mas sempre dependemos — além da mudança legislativa — de uma mudança da "cultura judiciária".

O sistema acusatório adotado taxativamente pelo texto legal modifica a regulamentação de toda a estrutura do código de processo penal, fincando como base quatro características centrais: 1) Introdução da oralidade — cultura das audiências — como um método central para tomada de decisões jurisdicionais; 2) Modificação drástica da atuação dos juízes, promotores e advogados; 3) Intensificação do controle da instauração de investigações, exercício da ação penal e uso da prisão preventiva; e 4) Ampliação do manejo de medidas cautelares e saídas processuais diversas da prisão preventiva.

Como qualquer processo legislativo complexo, a nova regulamentação gera incertezas em relação aos novos institutos processuais e suas implicações práticas. Por esse motivo, um desafio imediato está relacionado à necessidade de esclarecer o significado e a finalidade que eles terão no sistema adotado: em especial, na audiência de custódia ou para a imposição de medidas cautelares, incluindo a prisão preventiva (artigo 3º-A, VI, VII; artigo 287 e artigo 310).

Observem que, todas as decisões a serem tomadas pela autoridade judicial, devem, necessariamente, ser precedidas de manifestação da acusação e da defesa em audiência. Eis o grande desafio: exigir que o judiciário respeite e aplique o disposto na lei e que todas as decisões passem a ser proferidas em audiência.

Quanto à mudança de postura e modo de atuação do Judiciário, Ministério Público e advocacia será importante a correta compreensão do significado de sistema acusatório, pois, na prática, a cultura de audiência exigirá maior capacitação e proatividade da acusação e da defesa. Em outras palavras, as partes — acusação e defesa — atuarão com base nos antecedentes que possuem, articulando argumentos a favor de sua posição. Por outro lado, a defesa envolve o desenvolvimento de uma linha de investigação própria que permite contestar as proposições elaborados pela acusação. Por esse motivo, torna-se central que os advogados de defesa também produzam informações sobre o caso penal. Basta conferir o disposto na Lei 13.964/2019 (artigo 3-A, §2º, 3º, 4º, 3, §5º; artigo 311).

Em um modelo ideal, tal qual posto pela legislação em vigor (ainda que sem eficácia plena), espera-se que o juiz promova o debate e exija que o promotor credencie seus pedidos com os antecedentes investigativos e compartilhados com a defesa. Geralmente, o papel do juiz em audiência tem sido muito passivo e limitado a dar apenas a palavra a cada participante.

Em verdade, o juiz deve exigir que a acusação comprove a pertinência de seus pedidos, o que não implica que a defesa assuma um papel passivo. Pelo contrário, com essa modalidade, os controles horizontais entre ambas as partes são favorecidos, de modo que as informações recebidas pelo juiz sejam de alta qualidade para a tomada de decisão.

A oralidade é valiosa na medida em que permite alcançar o imediatismo. Ou seja, a oralidade é um instrumento a serviço da celeridade. Por quê? Sua parte, o imediatismo — que entendemos como o contato direto do julgador com os meios de prova (e as partes) — é valioso por três razões: 1) Ordena ao juiz e ninguém menos que o juiz seja aquele que conhece da prova, proibindo a delegação de funções; 2) Permite ao juiz testemunhar diretamente a "fonte" da informação com a qual ele levará sua decisão, evitando assim o risco de distorção sofrida pela informação quando é recebida de segunda mão; e 3) Permite que o juiz possa julgar, testemunhar e controlar o modo como a informação é produzida.

Vários são os fatores que podem contribuir com a implementação da cultura das audiências para tomada de decisões e prática dos atos judiciais, pois, como dito, teríamos a possibilidade de deslocar o instituto (prisão preventiva) da posição de principal instrumento de exercício do poder jurisdicional para seu devido lugar, que é a cautelaridade e excepcionalidade. Limitando e reduzindo o uso desenfreado da prisão preventiva, que deságua em incontáveis violações de direitos [2]. Ou seja, a audiência oral propicia uma amplitude e um aprofundamento/conhecimento na exposição dos fatos que permite a redução de tomada de decisões precipitadas/equivocadas, na medida em que potencializa a formação do convencimento em contraditório (Fazzalari).

Assim, a implantação da cultura de audiência oral e em contraditório para análise do decreto de qualquer medida cautelar, desde a prisão preventiva até a medida cautelar diversa, será pautada pela objetividade no debate. Não cabendo produção de prova em audiência, a metodologia será focada na hipótese levantada pela acusação (pretensão da prisão ou medida cautelar diversa), sustentação de que os requisitos essenciais e específicos estão presentes (artigo 312 e 313 do CPP) e à defesa caberá resistir à pretensão afirmada [3], desconstruindo a hipótese exposta e/ou defendendo direitos contrapostos ao pretendido (exemplo: prisão domiciliar). Tudo pautado nos elementos informativos ou probatórios apresentado naquele momento (audiência) pela acusação e defesa.

Fato é: existe uma limitação compreensiva nos textos. A escrita fomenta uma compreensão e decisão padronizada. A retórica ou a heurística necessitam da escrita para burlar na simplificação do complexo, afastando os interlocutores. Não há garantia de atenção. Ou seja, a retórica na escrita é uma roupagem para tentar legitimar algo decidido. Com a prática do ato de forma oral, impõem-se um novo standard de qualidade da atuação de todos e, especialmente, do juiz, na tomada de decisões em tempo real. A oralidade vivifica institutos processuais até então "teóricos", como a identidade física do juiz, imediatidade, concentração dos atos, celeridade, economia processual, e, principalmente, da máxima eficácia do contraditório.

No entanto, a resistência a oralidade é forte e vem de todos os lados. Na prática forense, a oralidade no processo não corresponde ao que se estrutura na teoria. Observem o resultado da excelente pesquisa feita por Bárbara Gomes Lupetti Baptista [4] em sua dissertação de mestrado, onde relata que "a impressão que a teoria causa sobre a aplicação da oralidade no processo não corresponde à percepção empírica que se tem da representação desse princípio".

Pois bem, a oralidade é uma forma de comunicação mediante o uso da palavra em que, sob a perspectiva jurídico-processual, adquire conotações que transcendem a simples expressão verbal, ou seja, oralidade não se resume a uma oratória [5]. De fato, refere-se a um sistema de direitos e garantias inseparáveis, que exige a compreensão do sistema processual adequado (acusatório), princípios fundantes (juiz imparcial, procedimento em contraditório e presunção de inocência), natureza jurídica do processo criminal (situação jurídica/direito fundamental), finalidade do processo criminal (limitação de poder e garantia de direitos) e metodologia para tomada de decisões (cultura de audiência).

Como dito, para que a referida mudança legislativa tenha efetividade e alcance os objetivos a que se propôs, é de extrema importância que Poder Judiciário, Ministério Público e advocacia percebam e adotam mudanças radicais em suas formas de atuação.

Ao Ministério Público foi reservada a importante decisão sobre a exposição ou não de uma pessoa a um processo criminal. Acusar ou não. Denunciar ou arquivar. Antes de submeter o cidadão a um processo criminal, deve-se exigir a garantia de que existem elementos informativos ou probatórios suficiente para fazê-lo. O não cumprimento desta regra deve ensejar a rejeição da acusação por falta de justa causa.

Ao advogado foi atribuída uma nova forma de atuação, desde a fase pré-processual e consequente fase processual. Direito ao aconselhamento jurídico e representação durante a etapa pré-processual (valorização da investigação defensiva); direito à entrevista reservada; direito a contar com parâmetros sobre a independência e profissionalismo do advogado; e direito à defesa (pessoal e técnica). Possibilidade de obter provas e entrevistar prováveis testemunhas, dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa; direito de ser julgado quando presente e a participar dos procedimentos judiciais [6].

É essencial que os juízes compreendam o seu lugar constitucionalmente demarcado (Jacinto Coutinho) e a que expectativas devem corresponder. Estamos falando de uma revolução copérnica, pois o rompimento com a cultura (e estrutura processual) inquisitória não é tarefa fácil diante dos mais de 700 anos (Quarto Concílio de Latrão ou pouco menos, se pensarmos no Directorum Inquisitorum) de seu domínio. Não há mais lugar para a iniciativa/gestão probatória nas mãos do juiz (juiz-ator-inquisidor) e para o ativismo judicial de "combate à criminalidade". A imparcialidade judicial somente tem lugar na estrutura acusatória, que cria condições de possibilidade para que o juiz seja efetivamente um terceiro, alheio (terzietà) e com estranhamento, com uma estética de imparcialidade.

Mas, para isso, também é preciso compreender que existe um preço a ser pago: o juiz obrigatoriamente deve conformar-se com a atividade probatória incompleta das partes e não se deixar seduzir pelo canto da sereia, pela tentação inquisitória-supletiva. Diante da dúvida, a absolvição e o in dubio pro reo são critérios pragmáticos para resolução da incerteza judicial (Ferrajoli). Por fim, os juízes precisam interiorizar que para a jurisdição, condenar ou absolver são valores equivalentes, e que ele cumpre perfeitamente bem seu papel quando condena diante de prova robusta produzida no devido processo, como também quando absolve, diante da dúvida ou da fragilidade probatória. Não há de se sentir frustrado, como muitos se sentem, por absolver.

 


[1] FANDIÑO, Marco, POSTIGO, Leonel González; ESTÁNDAR DE PRUEBA EN LA AUDIENCIA DE MEDIDAS CAUTELARES DE URUGUAY. In: REFLEXIONES BRASILEÑAS SOBRE LA REFORMA PROCESAL PENAL EN URUGUAY, 2019, p. 423-439.

[2] RIEGO, Cristian. La Oralidade En La Discusión Sobre La Prisión Preventiva. IN: Estudios Sobre El Nuevo Proceso Penal – Implementación y Puesta En Prática. Associación de Magistrados Del Uruguay. Montevideo: FCU, 2017, p. 107.

[3] GUTTIEREZ PUPPO, Maria Cecília. El Principio de Defensa Tecnica. In: Curso sobre El Nuevo Código del Proceso Penal. Vol. 1. Coordenação Alejandro Abal Oliú. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, p. 141.

[4] BAPTISTA; Bárbara Gomes Lupetti. O princípio da oralidade às avessas: um estudo empírico sobre a construção da verdade no processo civil brasileiro. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação da Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2007, pp. 79-82.

[5] MENDOZA; Laura Gabriela Bravo. El Principio de Oralidad En la Reforma Constitucional Al Sistema de Justicia Penal. FACULTAD DE DERECHO Y CIENCIAS SOCIALES. Morelia, Michoacán, 2011, p. 14-15

[6] BINDER; NAMORADZE, 2016, pp. 12-16.

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