Improbidade em Debate

Um diálogo saudável entre as instâncias de responsabilização

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7 de agosto de 2020, 8h00

De grande importância decisão liminar proferida pelo Ministro Gilmar Mendes na reclamação 41.557 (DJ de 6/7/2020), inclusive merecedora de atento artigo que já cuidou de examiná-la.

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Ajuizada sob o fundamento de inobservância da autoridade de decisão anterior emanada do Supremo Tribunal Federal, a referida reclamação invocou como paradigma o acórdão proferido no HC 158.319 (DJ de 26/6/2018), no qual a 2ª Turma da Corte concedeu a ordem para determinar o trancamento de ação penal intentada contra o paciente por reputá-la despida de justa causa, à falta de materialidade e de indícios de autoria.

Diante do aludido trancamento, o Ministério Público, em primeiro grau, ajuizou nova ação, dessa vez de improbidade, arrimada, todavia, nos mesmos fatos que haviam amparado a ação penal original. Recebida que foi a inicial, abriu-se vereda para a propositura da reclamação mencionada, arrimada em que o acórdão prolatado no HC teria exaurido a questão da inexistência de autoria e da ausência de materialidade, superando a autonomia das esferas de responsabilização para tornar natimorta a pretensão sancionadora em sede de improbidade (artigo 935 do Código Civil).

Ao apreciar o feito, o ministro relator enfrentou, preliminarmente, o cabimento da reclamação e a possibilidade de se cotejar em seu bojo os fatos e provas da ação penal com os da ação de improbidade. Nela divisando mecanismo amplo de manutenção da ordem constitucional, a decisão admitiu, ainda que em ação de natureza subjetiva, o exame do liame temático material entre um e outro feitos.

No ponto, adicionalmente, chamou atenção na decisão a aproximação estabelecida entre o direito criminal e a seara sancionadora da improbidade, à guisa de estabelecimento de uma identidade entre as ações em questão: "A ação civil de improbidade administrativa trata de um procedimento que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal."

Fixada a premissa, entendeu o relator que, diante "da existência de dois procedimentos distintos, respondidos pelo mesmo sujeito e aparentemente sobre os mesmos fatos, em que o primeiro procedimento é arquivado pelo Supremo – no caso do processo trancado –, é legítimo o escrutínio da Corte, em sede de reclamação, acerca da viabilidade do trâmite do segundo procedimento – viabilidade significa neste ponto, sobretudo, a existência comprovada de fatos novos, que apontem para um acervo probatório independente com relação ao primeiro procedimento". Uma vez admitida a possibilidade de cotejo, constatou-se, no caso, a duplicidade de narrativas.

Ato contínuo, passou a decisão à análise sobre uma espécie de "motivos determinantes" da decisão concessiva da ordem, ou sua ratio, sua holding, perscrutando-se sobre se de fato teria nela restado consignada a ausência de autoria e/ou a inexistência de materialidade como fundamentos do trancamento da ação penal, concluindo-se positivamente.

Após uma cuidadosa construção de suas bases, a decisão finalmente atingiu seu núcleo ao assentar que a necessária "limitação do jus puniendi estatal por meio do reconhecimento (1) da proximidade entre as diferentes esferas normativas e (2) da extensão de garantias individuais tipicamente penais para o espaço do direito administrativo sancionador", merecendo realce o fato de o direito administrativo sancionador consistir em verdadeiro subsistema da ordem jurídico-penal.

Bem além de simplesmente invocar a mitigação da independência entre as instâncias de responsabilidade, a decisão traz consigo o predicado de reconhecer na improbidade produto da matriz punitiva que tem na seara penal seu expoente, mas que nela não se exaure.

Direitos fundamentais, por conseguinte, não obedeceriam a uma compartimentação adaptável a partir de balizas já superadas; ao contrário, sua proteção nela contemplada a vedação ao bis in idem incidiria de maneira verticalizada, sobre toda e qualquer pretensão estatal de apenação (aliás, não somente estatal, como já se observou com sua eficácia horizontal).

Ainda além, celebramos a decisão não somente por seu vanguardismo, mas por seu potencial garantista: a frutificar o raciocínio semeado, não somente a vedação ao bis in idem, mas também o princípio da tipicidade, do in dubio pro reo, da interpretação restrita de normas punitivas e de retroatividade da norma benigna possuirão aptidão de, quiçá, no futuro corrigir algumas das impropriedade observadas em sede de improbidade.

Em fecho, nos anima perceber que esses novos ventos também sopraram sobre o Projeto de Lei 10.887/2018, que previu, em seu artigo 18-C, a comutação de sanções sempre que houver investidas estatais paralelas originadas de um mesmo fato reputado ilícito, com isso preocupando-se exatamente, a exemplo da decisão comentada, com a proibição da dupla punição.

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

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    é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre e doutorando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-Presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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