Opinião

O adolescente infrator é sujeito de direito após 30 anos de vigência do ECA?

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6 de agosto de 2020, 16h13

Amado ou odiado, o ECA, como é conhecido, regulamentou os artigos 227 e 228 da Constituição Federal e trouxe várias inovações fundadas em movimentos nacionais ou internacionais em defesa dos interesses de crianças e adolescentes, sendo que a mudança de concepção jurídica sobre a criança ou adolescente emerge como a mais festejada. Antes da edição da Constituição Federal de 1988, vigia, no Brasil, a doutrina da situação irregular, que, dentre tantas outras características, enxergava a criança como objeto das relações jurídicas sobre a qual recaiam os efeitos de decisões proferidas invariavelmente pelo todo-poderoso juiz de menores, responsável por promover o "bem-estar" deles, sem que, contudo, contassem com a opinião dos principais interessados. Pois bem. Com a entrada em vigor da doutrina da proteção integral tudo mudaria, pois, doravante, o público infanto-juvenil ganhara status de sujeito de direito. Não mais seria tratado como coisa, objeto. A família, a sociedade e o Estado tornaram-se obrigados a promover tudo quanto possível a fim de conferir proteção integral à criança e ao adolescente.

No entanto, a prática tem demonstrado que a realidade parece estar distante da ótica proposta pela novel doutrina, notadamente no campo infracional. Ainda é muito visível a atuação do sistema de Justiça da infância sem a observância da legislação estatutária. Constata-se que muitos profissionais não cumprem dispositivos da lei que não tiveram a constitucionalidade formalmente questionada em qualquer modalidade de controle de constitucionalidade vigente no país. E o que é mais preocupante: normalmente, agem dessa maneira com a nobre justificativa de que é melhor para o adolescente. Sempre têm um princípio constitucional para citar, mas nenhuma declaração de nulidade formal. Em benefício do adolescente, regridem 30 anos.

Há vários exemplos que se poderiam mencionar que atestam essa dura e triste realidade, mas acredita-se que um bom exemplo da reminiscência do período pré-CF/88 seja a jurisprudência que pode estar se formando no Superior Tribunal de Justiça, conforme se passa a expor.

Diz parte da ementa do julgado AgRg no HC 567.090/SC:

"AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS. MENOR SUBMETIDO À MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO. SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA POR OUTRA MAIS BRANDA. INVIABILIDADE. PECULIARIDADES E CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. HISTÓRICO INFRACIONAL DO ADOLESCENTE. NECESSIDADE DE ACOMPANHAMENTO ESTATAL MAIS CUIDADOSO. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. PRECEDENTES. PLEITO SUBSIDIÁRIO DE LIBERDADE DEVIDO À PANDEMIA DO COVID/19. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. (…). 2. In casu, as instâncias de origem indicaram que, além da gravidade concreta do ato infracional praticado – especialmente diante da vultosa quantidade e diversidade de entorpecentes (388 g de maconha, 120 g de cocaína e 154 g de crack) -, o paciente ostenta diversas outras representações, inclusive pela prática de condutas análogas a crimes como tráfico de drogas, razão pela qual a internação apresenta-se como a melhor alternativa no caso. Ademais, benefícios anteriores concedidos a ele foram ineficientes. 3. Essas circunstâncias demonstram a necessidade de um acompanhamento estatal mais cuidadoso que propicie ao adolescente sua desdrogadição, por meio de tratamentos clínicos e psicoterápicos, visando à sua ressocialização e reeducação, para que se possa refrear seu envolvimento com a criminalidade e possibilitar-lhe uma vida útil e produtiva. 4. (…). 5. Agravo regimental não provido". (Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 23/6/2020, DJe 30/06/2020).

Observando a referida ementa, já se constata algo que chamaria a atenção dos estudiosos do crime. O STJ convolou decisão da corte de Justiça a quo que condenara o adolescente acusado de ato infracional ao cumprimento da medida mais gravosa, em razão de ele ter sido alvo de outras representações.

Mas o que são representações? Representação nada mais é do que a peça vestibular de uma ação penal socioeducativa. Em uma única palavra: representação é denúncia. Será que um imputável seria condenado à pena de reclusão a ser expiada em regime fechado, inicialmente, pelo fato de responder a outras ações penais? A jurisprudência do próprio STJ deixa a dica. Diz a súmula 444: "É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base". 

Examinando o julgado citado, ao ler o inteiro teor [1] do voto condutor do acórdão, a partir da transcrição de parte da decisão recorrida, observa-se a existência de cinco registros anteriores na folha de antecedentes do adolescente, sendo três sentenças de remissão e dois processos ainda não concluídos. Como se vê, não houve julgamento de mérito em qualquer processo. E isso é bastante relevante, pois tem repercussão na lei, como será demonstrado logo em seguida.

Antes, porém, ainda há mais com o que se preocupar. O referido voto traz ementas das duas Turmas Criminais do mesmo tribunal, admitindo a aplicação da medida de internação (a mais gravosa prevista na lei), em situações semelhantes ao aqui examinado, quando "as peculiaridades do caso concreto recomendarem".

Assim, analisando o que aqui foi dito, a receita para aplicar a medida mais gravosa prevista no ECA, segundo o STJ, seria a seguinte: existência de outras representações, remissões e peculiaridades do caso em concreto.

Mas o que diz a lei de regência sobre a medida de internação e a remissão? Pois bem: no âmbito de aplicação das medidas socioeducativas, como é cediço, o ECA não atrela a prática de cada ato infracional a uma medida socioeducativa específica. Relaciona, no artigo 112, as medidas que podem ser aplicadas, em todos os crimes, levando em conta a capacidade do adolescente de cumpri-las, as circunstâncias do fato e a gravidade do crime (§1º do mesmo artigo).

A mais gravosa, contudo, que é a internação por até três anos, tem uma regra específica. Está textualmente previsto no artigo 122, a medida socioeducativa de internação só poderá ser aplicada quando: I) o ato infracional for cometido com grave ameaça ou violência à pessoa; ou II) o adolescente for considerado reiterado na prática de atos infracionais graves. O ECA não prevê a possibilidade de internação diante das peculiaridades do caso concreto.

Como se observa, o caso julgado é um delito de tráfico de drogas. Logo, impossível aplicar a medida de internação com base na primeira hipótese. Sobra então a possibilidade de aplicar em caso de reiteração na prática de infrações graves.

Mas o que é reiteração na prática de crimes? Sem grandes lições de semântica, quem reitera na prática de algo é porque já fizera algo igual antes. Então, quem reitera na prática do crime já praticou crime antes. Mas o que o Superior Tribunal de Justiça considerou, então, como crime anterior? Como dito acima, dois processos ainda em aberto e três em que o adolescente recebeu remissão. Mas o que vem a ser a tal da remissão?

Sem esgotar o estudo desse instituto, para a finalidade do trabalho, de acordo com o próprio ECA (artigos 126 a 128), remissão é instituto pelo qual é possível aplicar medida socioeducativa não restritiva de liberdade ao adolescente, sem a necessidade de levá-lo a julgamento. Por ele, o processo sequer precisa ser instaurado. Se já instaurado, pode ser suspenso ou extinto. Assemelha-se à transação penal da Lei 9099/95.

Além disso, por expressa previsão legal, não pode gerar antecedentes, porquanto não há declaração de que o adolescente praticou o ato infracional. E por que isso? Porque não é relevante, para a concessão da remissão, a confissão ou a prova, produzida sob o contraditório, de que o adolescente foi o autor de fato definido como crime na legislação. Assim, ele pode ser remido, mesmo que negue o fato na delegacia, perante o Ministério Público ou em juízo ou fique em silêncio. Os requisitos para a concessão da benesse são as circunstâncias e consequências do fato, o contexto social, a personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional, verificado pelo responsável em conceder a remissão.

Ao aceitar a remissão, o adolescente abre mão de obrigar o Estado a provar sua culpa, mas, quando acompanhado de medida socioeducativa, obriga-se a cumprir as condições assumidas por ele. E se não cumprir? Pode ser compelido a cumpri-las até mesmo com restrição de sua liberdade ou ter as medidas substituídas (inciso III do artigo 122 e 128, ambos do ECA). Não há, entrementes, qualquer previsão legal equiparando a remissão à sentença condenatória, mesmo que se adicionem as peculiaridades do caso em concreto.

Então, por que se violam o procedimento de apuração do ato infracional? Por que os juízes e todo o sistema de Justiça ignoram a previsão legal e criam, usurpando a função do parlamento, outra hipótese de aplicação da medida extrema, fundada na resumida expressão "peculiaridades do caso em concreto"?

A resposta a essas situações não parece simples. Mas Jeremy Waldron, ao falar sobre Estado de Direito, alerta sobre o perigo de não se observar a lei ou sobre fazer algo que não está previsto nela, resume bem a situação aqui retratada: "É um retorno à situação em que cada pessoa simplesmente age com base no próprio julgamento e faz o que lhe parece bom ou correto". [2] A propósito, sobre essa liberdade de interpretação contra legem, Carlos Maximiliano complementa: "Nenhum ato, de qualquer dos outros poderes, Executivo ou Judiciário, prevalece contra a lei expressa: é nisto, sobretudo, que consiste o grande valor da doutrina de Montesquieu, fora da qual só existe arbítrio, ditadura, absolutismo". [3]

Diante desse quadro, será que realmente o adolescente infrator é sujeito de direito? Uma suposição corrobora a ideia de que não. Se o instituto da remissão estivesse previsto na legislação penal comum da mesma forma que está previsto no ECA, ele seria aplicado da mesma maneira que se aplica ao adolescente?

Com pouco risco de errar, acredita-se que não. Isso não acontece com a transação penal. Outro caminho que aponta para aplicação diferente é o novo instituto denominado de acordo de não persecução penal, recentemente incluído no Código de Processo Penal pela Lei 13974/2019. Ou será que o juiz criminal, diante do que prevê o §12 do artigo 28-A do Código, utilizaria sua liberdade de interpretação para reconhecer o referido acordo, cumprido ou não cumprido, como mau antecedente?

Um detalhe chama a atenção no acordo de não persecução penal: mesmo sendo condição para a homologação do acordo a confissão do suspeito (caput do artigo citado), o referido parágrafo determina que ele não pode sequer figurar na folha de antecedentes criminais do cidadão. No caso da remissão, o sistema de Justiça da Infância, mesmo sem haver qualquer menção à confissão do adolescente, não só figura na folha de passagens (folha de antecedentes) dele, como se atribui à remissão força de sentença penal juvenil condenatória.

Em verdade, com três décadas de implementação da doutrina da proteção integral, o adolescente infrator, que, obviamente, é adolescente para fins da CF/88 e do ECA, ainda sofre muitas dificuldades para ser considerado sujeito de direito em toda sua integralidade pela comunidade jurídica. Não importa a Lei Maior estabelecer proteção integral, prioridade absoluta, conclamar a necessidade de colocar a salvo de toda sorte de negligência ou violência ou garantir seus direitos fundamentais. Não importa a lei elogiada internacionalmente prever a garantia de sua escuta, seu direito ao silêncio, a cláusula do devido processo legal, o procedimento específico de apuração do ato infracional, garantir a ampla defesa e contraditório, taxar as hipóteses de restrição de sua liberdade etc. Pouco importa a lei afirmar que a remissão não gera antecedentes. A criação de fórmulas abertas e gerais por quem não recebeu um único voto nas urnas permite muita coisa, senão tudo, mas é um verdadeiro ativismo judicial contra legem.

Com todas as vênias de quem entende contrariamente, mas permitindo fazer uso também de liberdade interpretação, só no âmbito do pensamento, a doutrina da situação irregular parece ainda viver em nossos corações, em nossas mentes, na ponta de nossas canetas e, principalmente, sobre os adolescentes.

 

Referências bibliográficas
WALDRON, Jeremy. "A dignidade da legislação". Tradução: Luís Carlos Borges; revisão da tradução Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p-45.

MAXIMILIANO, Carlos. "Hermenêutica e aplicação do Direito". Rio de Janeiro: Forense, 1998, p-78.

 


[1] Uma reflexão: por que é possível consultar o inteiro teor de acórdãos de uma das mais altas cortes de Justiça do país, sem qualquer restrição, mas não é possível fazer isso com os repositórios dos Tribunais de Justiça? O STJ não protege a infância e a adolescência? Ou será a transparência, com alguns poucos cuidados, uma proteção qualificada?

[2] A dignidade da legislação. WALDRON, Jeremy. Tradução: Luís Carlos Borges; revisão da tradução Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p-45.

[3] Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p-78.

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