Opinião

Equoterapia, mangalarga marchador e algumas questões jurídicas

Autor

  • Alex Matoso Silva

    é juiz de Direito titular da 2ª Vara Cível de Itaúna (MG) com atribuição especializada em saúde (TJ-MG) doutorando em Proteção aos Direitos Fundamentais (UIT-Universidade de Itaúna) mestre em Proteção aos Diteiros Fundamentais (UIT-Universidade de itaúna) especialista em Direito Público (PUC-MG) ex-procurador do Estado de Minas Gerais e ex-defensor público no Estado de Minas Gerais.

6 de agosto de 2020, 6h36

O propósito deste ensaio ou, como preferiram, pequeno artigo é tratar de algumas questões jurídicas que envolvem a criação de um centro de equoterapia, sua vinculação ao poder público, em alguns casos, e o consequente atendimento dos pacientes de determinada região.

A proposta é trazer uma discussão inicial ou uma provocação para quem tenha ouvido falar sobre equoterapia, mas não teve o devido tempo e, quiçá, as ferramentas necessárias para pesquisar o assunto.

De todo modo, não se poderia partir a falar diretamente das diversas questões jurídicas relativas ao tema (que aqui serão tratadas apenas algumas em razão do espaço e porque elas são tantas) sem passar por uma introdução do que seja equoterapia e sobre o perfeito encaixe do cavalo mangalarga marchador nesse método de tratamento.

Conforme exposto no site da Associação Nacional de Equoterapia (Ande-Brasil [1]), equoterapia é "um método terapêutico que utiliza o cavalo dentro de uma abordagem interdisciplinar nas áreas de saúde, educação e equitação, buscando o desenvolvimento biopsicossocial de pessoas com deficiência e/ou com necessidades especiais". Ainda segundo registros da Ande-Brasil, esse método tem atuação voltada a beneficiar física, psíquica, educacional e socialmente pessoas com necessidades especial, estando indicado para os quadros clínicos de: I) doenças genéticas, neurológicas, ortopédicas, musculares e clínico metabólicas; II) sequelas de traumas e cirurgias; III) doenças mentais, distúrbios psicológicos e comportamentais; e IV) distúrbios de aprendizagem e linguagem.

A tal respeito, no campo doutrinário e prático da equoterapia, cabe assinalar a importante contribuição de Neném Otone (Geralda Aparecida Otone [2]), que, acompanhada de Daniela Fonseca Genelhu Soares e Marina Matos de Mora Faico, afirma:

"A prática da equoterapia favorece a sociabilidade, desenvolve a disciplina, estimula o equilíbrio físico e mental, além de proporcionar uma melhor qualidade de vida em indivíduos com necessidades especiais, sejam elas dependência física ou decorrente do envelhecimento, estresse mental, dificuldades escolares ou distúrbios do comportamento" [3].

No método da equoterapia, o cavalo se apresenta como o principal instrumento para o tratamento. Obviamente não seria possível deixar de lado o excepcional trabalho dos profissionais de saúde necessariamente envolvidos no processo, a exemplo dos fisioterapeutas e equipe psicológica e mesmo psiquiátrica. Todavia, importante evidenciar o papel do cavalo como principal instrumento da equoterapia, sem ele, ainda que presente a equipe de profissionais adjacente, impossível alcançar o objetivo final do método: a total cura ou a melhora sensível do acometimento impactante à saúde do paciente. Aliás, sobre isso, Neném Otone e Daniela Soares, com especial pertinência, assinalaram:

"Por conta de suas características morfológicas e psicológicas, esse animal tem sido utilizado como ferramenta terapêutica importante. Dentre essas, a característica de maior relevância para a equoterapia é o movimento tridimensional proporcionado pelo passo do cavalo. Tal movimento ocorre nos eixos: ântero-posterior, látero-lateral e longitudinal, além de possuir um componente rotacional, que em conjunto fazem a pelve do cavaleiro sofrer uma rotação semelhante à proporcionada pela marcha humana" [4].

Nesse contexto, o cavalo da raça mangalarga marchador, por suas características, especialmente a docilidade no trato e a regularidade e maciez de sua andadura, ou melhor, de sua marcha (daí o nome "marchador") não encontra concorrente à altura para utilização no método da equoterapia. Ele é, sem dúvida, o cavalo ideal para o método, porque é capaz de transferir ao paciente o esforço de cura da equipe de saúde.

Juridicamente e em nível nacional, a equoterapia passou a ser tratada na Lei 13.830, sancionada pelo presidente da República em 13 de maio de 2019 e publicada do Diário Oficial da União no dia seguinte, com vigência a partir de 10/11/2019, conforme estabelecido em seu artigo 6º.

Essa lei é fruto de grande esforço de pessoas ligadas e que já utilizavam o método da equoterapia há bastante tempo, especialmente é resultado da atuação incansável de Neném Otone. Havia uma lacuna legislativa para o desenvolvimento desse método, que foi suprido com essa norma jurídica.

O advento da Lei 13.830/19 provocou uma revolução na concretização do direito à saúde no Brasil, que, conforme sabido, é previsto no artigo 196 da Constituição da República, de 1988, como "direito de todos e dever do Estado", assim também na efetivação do devido acudimento e necessária inclusão social da pessoa com deficiência.

Isso porque, a partir da vigência dela, o tratamento por meio da equoterapia deve ser disponibilizado pelo SUS (Sistema Único de Saúde) independentemente da existência de lei determinante de tal providência, como é o caso pretendido no Projeto de Lei 3.446/19, de autoria do deputado federal André Ferreira (PSC-PE), além de também ser custeado por planos de saúde particulares.

Nesse ponto, cabe frisar, a negativa do SUS ou de operadoras de planos de saúde ao custeio de tal tratamento, ao arrepio de indicação médica fundamentada, poderá ensejar ações judiciais que obriguem tanto o estado quanto os planos de saúde a assumirem o tratamento.

Até então, por falta de norma legal a respeito do tema, a equoterapia era tida como "tratamento experimental" e, por força disso, o Poder Judiciário enfrentava grande dificuldade em aceitar um pedido judicial para utilização desse método e obrigar o estado, por meio do SUS, a custeá-lo, tal como se vê em decisão de 2015, do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia [5]. Constou dessa referida decisão negativa do pedido que: "A equoterapia consiste em tratamento terapêutico que exige a atuação de profissionais habilitados, porém de prática ainda não regulamentada no Brasil".

Interessante assinalar que no Estado de Minas Gerais a equoterapia já vem sendo disponibilizada e custeada pelo SUS a pacientes com deficiência desde 2014, conforme previsto na Deliberação CIB-SUS/MG nº 1.963, de 09 de dezembro de 2014 [6]:

"Artigo 1º  Fica aprovada a instituição das ações e serviços de equoterapia no âmbito do Sistema Único de Saúde do Estado de Minas Gerais (SUS/MG), nos termos do Anexo Único desta Deliberação".

Registra-se, ainda, que em Minas Gerais está em trâmite na Assembleia Legislativa o Projeto de Lei nº 2.119/2020, de autoria do deputado estadual Coronel Henrique (PSL), que contou com especial assessoria de Neném Otone, visando a regulamentar, em terras mineiras, o Programa Estadual de Equoterapia, permitindo ao Estado de Minas Gerais "celebrar convênios com profissionais habilitados, hospitais veterinários, organizações não-governamentais e outros estabelecimento congêneres, bem como com municípios”.

Alguns municípios têm oferecido o tratamento equoterápico a pessoas com deficiência e, para tanto, contratam centros especializados, a exemplo de Itatiaiuçu (MG), que conta com o Instituto Paraíso (Inpar). Nesse caso, a contratação, ao contrário do que muitos possam pensar, não se faz mediante licitação, senão por meio de credenciamento.

Esse instituto jurídico (o credenciamento) costuma assustar gestores públicos porque eles têm sempre sobre suas cabeças, como uma espada de Dâmocles, a ameaça de se sujeitarem à propositura de uma ação de improbidade pelo Ministério Público.

Mas não há razão para alardes, tampouco para medo.

O credenciamento é um instrumento decorrente da própria lei de licitações. Muitos pensam que a "dispensa de licitação" somente ocorre quando se apresenta apenas um fornecedor possível de ser contratado e isso é que configuraria a impossibilidade de competição a que se refere o artigo 25 da Lei de Licitações (Lei 8.666/93). Mas não. Essa seria uma leitura simplista do artigo 25. O modo correto de pensar é que também ocorre a impossibilidade de competição quanto se puder contratar todos os interessados que se apresentarem.

Veja-se: quando o poder público, tendo efetivado seus estudos e estabelecido um preço mínimo razoável e as demais condições de contratações, e a partir daí, nesses parâmetros, abrir a contratação para qualquer fornecedor que aceitar o preço e as condições estipuladas, também nessa hipótese haverá impossibilidade de competição. É nessa situação que se encaixa perfeitamente sem nenhum desrespeito à constituição e à lei de licitação o instituto do credenciamento.

Abre-se um edital, que é publicado é preciso cumprir o princípio da publicidade convocando os fornecedores que se interessem na contratação. É o caso típico para o fornecimento dos serviços de tratamento por equoterapia.

Esses são os pontos, ou questões, que motivaram a elaboração deste trabalho, que não pretendeu em momento algum esgotar profundamente o assunto, mas apenas provocar uma reflexão.

Por fim, à guisa de conclusão, é importante ressaltar que a equoterapia, exatamente por conta de seu público-alvo, é coisa muito séria, imensamente significativa. É preciso ter em mente que a criação de um centro de equoterapia deve ser precedido de assessoria especializada, escolhidos apenas aqueles profissionais que sejam efetivamente vocacionados para o trabalho e os animais adequados e treinados. Simplesmente fazer as coisas sem essa preocupação certamente causará profundos dissabores e, possivelmente, enormes danos, não só ao patrimônio público, mas, irreversivelmente, aos pacientes.

 


[1] FONTE: Ande-Brasil. Disponível em: http://equoterapia.org.br/articles/index/articles_list/138/81/0 Acesso em: 28/7/2020.

[2] Geralda Aparecida Otone, a Neném Otone, como é conhecida nacionalmente, é pessoa de grande importância tanto na equoterapia quanto para a raça mangalarga marchador. Ela é coordenadora do Projeto de Equoterapia do Instituto Paraíso (Inpar), pioneiro na prática do método da equoterapia para o tratamento de pessoas com deficiência no Brasil; é criadora de cavalo mangalarga marchador; campeã brasileira de equitação em 2004 e 2009; instrutora de equitação e profissional de equitação para equoterapia; incansável lutadora pela causa da equoterapia no Brasil, tendo atuado insistente e veementemente nos bastidores do Congresso Nacional para a aprovação da Lei nº 13.830/19 (Lei da Equoterapia).

[3] GENELHU, Daniela Fonseca Soares; OTONE, Geralda Aparecida; FAICO, Marina Matos de Moura (Organizadoras). Indicações de equoterapia. In: Equoterapia: teoria e prática. Caratinga, FUNEC Editora, 2011, p. 38.

[4] GENELHU, Daniela Fonseca Soares; OTONE, Geralda Aparecida. O cavalo ideal. In: Equoterapia: teoria e prática. Caratinga, FUNEC Editora, 2011, p. 95.

[5] TJ-RO – 2ª Câmara Especial – Apelação cível nº 0003922-72.2014.822.0001 – Relator: Desembargador Roosevelt Queiroz Costa. Publicação em 12/8/2015. Disponível em: https://tj-ro.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/295450160/apelacao-apl-39227220148220001-ro-0003922-7220148220001. Acesso em: 29/7/2020.

Autores

  • é juiz de Direito titular da 2ª Vara Cível de Itaúna (MG), com atribuição especializada em saúde (TJ-MG), doutorando em Proteção aos Direitos Fundamentais (UIT-Universidade de Itaúna), mestre em Proteção aos Diteiros Fundamentais (UIT-Universidade de itaúna), especialista em Direito Público (PUC-MG), ex-procurador do Estado de Minas Gerais e ex-defensor público no Estado de Minas Gerais.

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