Opinião

Breve reflexão sobre o consequencialismo e o artigo 20 da LINDB

Autor

  • Lucas Asfor Rocha Lima

    é advogado sócio do escritório Asfor Gomes de Matos Advogados Associados doutorando em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa (FDUL).

5 de agosto de 2020, 6h04

O consequencialismo foi introduzido no ordenamento brasileiro com a edição da Lei nº 13.655/18, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) para trazer "segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público". Nesse prisma, foi veiculado o artigo 20 [1], que dispõe que "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".

Para Marçal Justen Filho (cfr. "Artigo 20 da LINDB Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas decisões públicas". In Revista de Direito Administrativo, Edição Especial Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro LINDB  — Lei nº 13.655/2018, Rio de Janeiro, nov. 2018, p. 13-41), o artigo 20 da LINDB é orientado a reduzir a indeterminação das decisões estatais, que muitas vezes se restringe a invocar princípios abstratos.

Segundo ele, o processo decisório exige a concretização de normas e valores ideais, o que impõe tomar em consideração as situações da realidade. Se uma norma pode propiciar diferentes conclusões para o caso concreto, é indispensável analisar os potenciais efeitos pertinentes a cada qual. Essa exigência é ainda mais relevante em vista do princípio da proporcionalidade. É inviável aplicar a proporcionalidade sem tomar em vista os efeitos que a opção hermenêutica produzirá. O parágrafo único do artigo 20 admite, além disso, adotar soluções alternativas à simples invalidação de um provimento administrativo, nas hipóteses de vícios ou defeitos.

Acrescenta Justen Filho que as inovações introduzidas pela Lei nº 13.655/2018 destinam-se preponderantemente a reduzir certas práticas que resultam em insegurança jurídica no desenvolvimento da atividade estatal. O artigo 20 relacionar-se-ia a um dos aspectos do problema, versando especificamente sobre as decisões proferidas pelos agentes estatais e fundadas em princípios e valores de dimensão abstrata. A finalidade buscada seria reduzir o subjetivismo e a superficialidade de decisões, impondo a obrigatoriedade do efetivo exame das circunstâncias do caso concreto, tal como a avaliação das diversas alternativas sob um prisma de proporcionalidade.

Percebe-se, porém, com a devida vênia às lições do ilustre professor Justen Filho, que o dispositivo do artigo 20 da LINDB, dependendo do modo como for interpretado, coloca o julgador na posição de substituir a consequência que o legislador estabeleceu pela consequência que ele pretende estabelecer. Ademais, o referido dispositivo permite que o legislador compreenda a decisão como sendo um meio para atingir fins indeterminados, e não um instrumento para aplicar as regras e os princípios imediatamente aplicáveis.

É preciso interpretar o artigo 20 da LINDB de modo a dar-lhe utilidade e torná-lo apto a produzir normas em conformidade com a Constituição Federal. A sua adequada compreensão é fundamental para a também adequada construção dogmática desse conjunto de normas de aplicação de outras normas jurídicas (conjunto de metanormas).

O propósito desse artigo 20 é nobre, mas não deixa de ser curioso que ele pretenda coibir o uso retórico de normas mais abstratas e assim o faça pelo uso de termos também muito abstratos, como "valores jurídicos abstratos", "consequências práticas", "necessidade e a adequação da medida" e "possíveis alternativas".

Pior do que isso, o dispositivo confere status normativo à concepção teórica o pragmatismo jurídico sem que haja uma tradição doutrinária que ilumine a sua compreensão ou jurisprudência que a concretize. O consenso será construído a partir de agora.

Não bastassem essas dificuldades, ainda existem problemas estruturais como, entre muitas outras coisas, a agenda de trabalho dos julgadores, que impõe restrições de tempo e de material para que decidam casos mais complexos , que podem servir de obstáculo à plena aplicação do dispositivo, assentada em padrões mínimos de racionalidade e voltada ao efetivo incremento de qualidade da atividade jurisdicional.

Tudo isso faz surgir o risco de o artigo 20 funcionar, ao menos por ora, como fonte de insegurança, o que não deixa de ser um paradoxo normativo.

José Vicente Santos de Mendonça projeta três futuros possíveis para o artigo 20 na verdade, diz ele, dois futuros e meio, porque o terceiro fica a meio caminho entre o primeiro e o segundo: a) o primeiro, menos provável, é o futuro em que o artigo 20 será plenamente aplicado e as autoridades julgadoras observarão detidamente os seus termos; b) o segundo, mais provável, é o futuro em que o artigo 20 será insinceramente cumprido, apenas com mudança da "gramática da decisão", para incorporar uma "retórica de consequências"; c) o terceiro, um meio caminho, de mudança paulatina de cultura, em que, pelo artigo 20, "o juiz que buscar 'consequências práticas' para fundamentar seu decisionismo estará sendo educado e constrangido por uma nova gramática" (cfr. MENDONÇA, José Vicente Santos de. Dois futuros (e meio) para o projeto de lei do Carlos Ari. In: MENDONÇA, José Vicente Santos de (Coord.); LEAL, Fernando (Coord.). Transformações do Direito Administrativo: consequencialismo e estratégias regulatórias. Rio de Janeiro, UERJ/FGV-Rio, 2017, p. 31-34).

Ainda assim, o dispositivo não parece ser inconstitucional e, bem aplicado, sobretudo a partir da sua combinação com outros postulados hermenêuticos, pode ser bom e interessante. Se realmente contribuir para a mudança de cultura no trato dos princípios normativos, já terá cumprido bem o seu propósito.

Em poucas palavras, o artigo 20 da LINDB inseriu no sistema vigente o postulado do pragmatismo, por meio do qual o julgador tem o dever de considerar as consequências práticas da sua decisão como elemento para a própria tomada de decisão.

Para concluir, o risco desse tipo de atividade é que ela transforma a consequência prática no protagonista do processo decisório, permitindo, numa espécie de contramão lógica, que o sentido do texto normativo seja construído em razão da consequência considerada ótima pelo julgador. Isso pode conferir ao magistrado uma (sensação de) liberdade incompatível com os postulados de coerência e integridade do Direito, já que pode estimulá-lo a querer dissociar-se das normas existentes (legislação) e da forma como elas vêm sendo aplicadas (precedentes) para proferir uma decisão que considere apenas uma utilidade contemporânea à própria decisão.

 


[1] "Artigo 20 — Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas".

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    é advogado, sócio do escritório Asfor, Gomes de Matos Advogados Associados, doutorando em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa (FDUL).

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