Opinião

Inconstitucionalidade da CBS traz risco de futuros litígios

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5 de agosto de 2020, 18h17

O presidente da República apresentou ao Congresso Nacional, no último dia 21, o Projeto de Lei nº 3.887, anunciado como a primeira parte da tão esperada reforma tributária do governo. Entre alterações na alíquota, a eliminação de uma série de regimes especiais e a mudança na forma de apropriação de créditos, a proposição sugere a substituição da denominação do PIS/Cofins por Contribuição sobre operações com Bens e Serviços (CBS).

No entanto, a principal alteração trazida está na materialidade do novo tributo: enquanto PIS/Cofins incidem sobre a totalidade das receitas do contribuinte, a CBS passará a alcançar a receita bruta, do que trata o artigo 12, do Decreto-Lei 1.598/77, com a redação que lhe foi dada pela Lei 12.973/2014. A legislação aponta que a receita bruta é entendida como o produto da venda de bens, da prestação de serviços e como o resultado da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica, além de acréscimos a esta receita bruta, tais como multas e encargos.

Se, em uma impressão inicial, a mudança poderia beneficiar o contribuinte já que qualquer grandeza escolhida seria menor do que a totalidade das receitas , a verdade é que o PL 3.887 traz dois desafios que nos parecem insuperáveis e evidenciam a inconstitucionalidade do novo tributo.

O primeiro deles diz respeito à indefinição do que vem a ser o resultado da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica. Em que pese tal redação ter sido introduzida desde 2014, quando da edição da Lei nº 12.973, não existe na legislação nenhuma norma que o defina. Seria o resultado decorrente da atividade em que o contribuinte mais aufere receitas? Emprega mais colaboradores? Não há resposta em qualquer norma hoje vigente.

Além disso, fato é que o artigo 195, inciso I, alínea "b", da CF autoriza a criação de contribuições sociais à seguridade social sobre duas grandezas: receita ou faturamento. A receita bruta não é materialidade expressamente referida pela Constituição. Ainda assim, a União estaria autorizada a instituir o tributo, mas desde que no exercício da sua competência residual, o que demandaria lei complementar. A lei ordinária, que decorreria da aprovação do PL 3.887, não é o veículo normativo adequado para a criação de contribuição social sobre a receita bruta. Tal afirmação pode ser confirmada a partir do retrospecto da evolução do conceito de receita no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF).

A primeira oportunidade em que a corte se pronunciou sobre o conceito de receita bruta foi quando instada a confirmar a recepção do Finsocial (que tinha como materialidade essa grandeza) pela Constituição de 1988, considerando que, àquela altura, o texto constitucional fazia menção a faturamento, como base de incidência desse tipo de tributo (além da folha de salários e do lucro).

Nessa ocasião (RREE 170.555 e 150.755, 1993), definiu-se que "faturamento é igual a receita bruta", não por serem conceitos idênticos, mas porque essa foi a conclusão interpretativa possível para a delimitação da materialidade do Finsocial (a chamada "interpretação conforme", preconizada pelo ministro Sepúlveda Pertence). Essa conclusão partiu de duas premissas: faturamento não se confunde com receita que é mais ampla; e o conceito de receita bruta, entendida como produto da venda de mercadorias e de serviços, é o que se ajusta ao de faturamento pressuposto na Constituição.

Importante destacar que a equiparação feita entre faturamento e receita bruta, à época, deu-se enquanto ambos equivaliam à venda de mercadorias e de serviços, ou de ambos.

A segunda grande oportunidade (ADC 1, 1993) em que a Suprema Corte se manifestou sobre o conceito de receita bruta foi quando se pronunciou sobre a constitucionalidade da Lei Complementar nº 70/91, que instituiu a Cofins. Na oportunidade, entendeu-se que o faturamento é "a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza". Afastou-se, assim, a interpretação mais restritiva de que o faturamento, para fins fiscais, corresponderia apenas às vendas a prazo (artigo 1º da Lei nº 187/68), em que a emissão de uma fatura constitui formalidade indispensável ao saque da correspondente duplicata.

A seguir, em 2005, o STF declarou inconstitucional o artigo 3º, §1º, da Lei nº 9.718/98, que ampliou o conceito de receita bruta para incluir a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da classificação contábil (RREE 357.950, 390.840, 358.273 e 346.084).

A conclusão pela inconstitucionalidade se deu porque (a norma) "fez-se incluir no conceito de receita bruta todo e qualquer aporte contabilizado pela empresa, pouco importando a origem, em si, e a classificação que deva ser levada em conta sob o ângulo contábil". Ou seja, anteriormente à Emenda Constitucional nº 20/98 que introduziu receita como base de incidência , a grandeza apenas poderia ser tributada se contemplada no conceito de faturamento, ou seja, como resultado da venda de mercadorias e/ou da prestação de serviços.

Em 2017 (RE 574.706), finalmente, a corte determinou a exclusão do ICMS da base do PIS/Cofins, pois nem todos os ingressos constituem receitas, já que alguns deles não ensejam qualquer incremento do patrimônio. A parcela correspondente ao ICMS não tem natureza de receita, mas de simples ingresso de caixa, não podendo, em razão disso, compor a base de cálculo quer do PIS, quer da Cofins.

Mas não é só. Ao longo de todos esses julgamentos, o STF igualmente consagrou o entendimento de que os dispositivos constitucionais indicativos das bases econômicas tributáveis não são "meros pontos de partida para a tributação, porquanto a Constituição, ao outorgar competências tributárias, o faz delineando os seus limites" (RE 559.937). Afora disso, "além das contribuições nele (artigo 195) enumeradas, outras somente podem vir à baila via lei complementar, consoante previsto no §4º. do citado artigo" (RE 357.950).

Dessa forma, ainda que economicamente a grandeza receita contemple, por lógica, a receita bruta, independentemente de como definida, a verdade é que a previsão constitucional do conceito mais amplo não autoriza a exigência de tributo sobre o resultado da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica, que consiste no conceito contábil de receita típica para fins de imposto sobre a renda, tal qual definida na Lei 12.973/2014 e replicada no PL 3.887. Essa acepção é arbitrária, pois não corresponde ao resultado da venda de mercadorias, da prestação de serviços ou de ambas, tampouco à receita bruta, da forma como era definida anteriormente. Resultado da atividade ou objeto principal não equivale a receita, tampouco a faturamento, e representa recorte distinto daquele definido na Constituição Federal.

A própria leitura do texto constitucional torna isso claro: faturamento é subconjunto de receita. Se a referência constitucional a receita permitisse a exigência de tributo sobre subconjunto dessa riqueza, a menção constitucional a faturamento seria ociosa. Naturalmente não se pode interpretar que a Constituição traria palavras inúteis.

No julgamento do 559.937/RS, o STF definiu que a outorga de competência tributária à União compreende a indicação exata e precisa da efetiva riqueza a ser tributada, sendo inviável a adoção de materialidade mais ampla ou diversa da definida na Constituição: "Ao analisar o comando constitucional, não vejo como interpretar as bases econômicas ali mencionadas como meros pontos de partida para a tributação, porquanto a Constituição, ao outorgar competências tributárias, o faz delineando os seus limites. Ao dispor que as contribuições sociais e interventivas poderão ter alíquotas 'ad valorem, tendo por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro', o artigo 149, §2º, III, 'a', da CF utilizou termos técnicos inequívocos, circunscrevendo a tais bases a respectiva competência tributária. Portanto, a meu ver, não se sustenta o argumento de que tal dispositivo estaria estabelecendo o valor aduaneiro tão somente como uma base mínima para a tributação. Na verdade, essa norma delimita, por inteiro, a base de cálculo das contribuições sociais a ser adotada nos casos de importação. Trata-se, assim, de comando dirigido ao legislador ordinário que revela a grandeza econômica que pode ser onerada o valor aduaneiro quando se verifica o fato jurídico 'realizar operações de importação de bens'".

Como se vê, a materialidade constitucional é definida por inteiro, como um recorte, uma moldura da grandeza econômica que pode ser onerada quando verificado o fato jurídico-econômico.

A receita bruta atualmente definida pelo DL nº 1.598/77, após a alteração introduzida pela Lei nº 12.973/2014, não guarda relação nem com o conceito de receita, nem com o conceito de faturamento. É provavelmente algo entre ambos, mas não está expressamente referida na Constituição, tampouco encontra definição em quaisquer das normas atualmente vigentes. Como consequência, a única via para que seja tributariamente alcançada é por meio de lei complementar. E desde que a lei defina expressamente o que representa, algo que ainda não ocorreu.

O propósito da reforma tributária do governo é, basicamente, de simplificar o sistema e de reduzir litígios, intenção louvável e muito aguardada por toda a sociedade brasileira. Mas, diante da indagação se é constitucional a CBS, da forma como proposta pelo PL 3.887, a resposta inevitável e inequívoca é não. Aliás, essa resposta já nos foi dada pelo STF, ao longo de todo o histórico de decisões.

Louvamos o propósito do governo de priorizar a reforma tributária, mas partir de inconstitucionalidade "na largada" nos parece no mínimo impróprio e nos deixa a sensação de deja vu. À comunidade jurídica só resta aguardar que os debates que virão e as emendas ao PL 3.887 sirvam para sanar esse vício, sob pena de seguirmos para um emblemático contencioso entre o contribuinte e o fisco. Mais um entre tantos nas últimas décadas.

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