Garantias do Consumo

Aumento do endividamento do consumidor torna urgente aprovação do PL 3.515/2015

Autores

  • André Perin Schmidt Neto

    é pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Salerno (Itália) e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutor e mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela mesma universidade. Atualmente é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) professor de pós-graduação lato sensu em diversas universidades e autor de livros e artigos jurídicos.

  • Flávia do Canto

    é sócia da área de Consumidor e Product Liability do Souto Correa Advogados.

5 de agosto de 2020, 8h01

Na realidade atual das relações comerciais, os contratos deixaram de representar a expressão da autonomia privada das partes em consenso. Na sua imensa maioria, os contratos no mercado de consumo, hoje são de adesão, impedindo ao consumidor, inserido em uma sociedade de massa, participar da sua elaboração, discutir ou intervir efetivamente no conteúdo de suas cláusulas [1]. As técnicas de contratação de serviços também não mais correspondem ao modelo clássico de contrato. Quando envolve fornecimento crédito, o risco de o consumidor assumir mais dívidas do que pode pagar, mais do que real, é freqüente.

Essa mudança de comportamento nas relações de mercado se refletiu nas disposições normativas do Código de Defesa do Consumidor, com adoção, à época de uma "nova teoria contratual" que valorizou e deu desta que aos princípios como o da boa–fé [2] e da confiança. Tais princípios, que se aplicam desde o momento pré-contratual (transparência da oferta e publicidade e o respeito ao direito de informação do consumidor), até a celebração e execução do contrato, também devem incidir no pós-contrato, em situações em que o consumidor endividado necessita reconstruir sua vida econômico-financeira para garantir a proteção ao mínimo existencial.

De fato, pelo CDC, os contratos não obrigam consumidores se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio do conteúdo ou se estiverem redigidos de modo a dificultar a perfeita compreensão [3] das cláusulas. Contratos de adesão devem ser escritos em linguagem clara e letras legíveis, de modo a facilitar a compreensão do seu conteúdo pelo consumidor. Cláusulas que imponham obrigações ao consumidor devem ser redigidas com destaque.

A par disso, a lei considera nulas, sem qualquer valor jurídico, as cláusulas ditas abusivas [4].

Em síntese, as normas do CDC relativas à proteção do consumidor objetivam que as relações contratuais sejam pautadas pela lealdade e transparência, observância das legitimas expectativas inerentes ao negócio, com definição clara dos direitos e das obrigações das partes, resguardando também para que o contrato não seja instrumento de obtenção de vantagem exagerada por parte do fornecedor [5].

O CDC, desde sua promulgação, por meio da Lei 8.078/1990, vem cumprindo tais objetivos.

Todavia, uma nova realidade impõe sua atualização para que o CDC se mantenha capaz de promover a proteção contratual do consumidor, em especial no que se refere aos contratos bancários nas situações de superendividamento.

Em sua obra "Sociedade do Cansaço", Byung-Chul Han afirma, com a lucidez que lhe é peculiar, que cada época apresenta enfermidades fundamentais, lembrando que, ultrapassada a era bacteriológica, que terminou com a descoberta dos antibióticos, e da era viral, com suas pandemias, o século XXI, vive ainda uma ameaça neuronal [6]. Segundo o autor, doenças como a depressão, os transtornos de déficit de atenção e de personalidade, entre outras enfermidades, são produto da sociedade de consumo em que vivemos.

De fato, não há como desconsiderar que o momento atual reflete uma realidade totalmente diferente daquela vivida nos anos 90, ao tempo da edição do CDC. A facilitação do acesso ao crédito ao consumo agravou significativamente os riscos de endividamento dos consumidores, fenômeno próprio do modelo econômico vigente, de amplo acesso ao crédito absoluta ausência de análise e verificação da real capacidade de pagamento do tomador.

Com a criação do chamado crédito consignado, o risco de não contar com recursos para as despesas básicas como alimentação, moradia e saúde tornou-se ainda maior para o consumidor.

Paralelamente, o uso do cartão de crédito segue o principal causador do superendividamento dos consumidores.

Nas pesquisas realizadas pela Confederação Nacional do Comércio de Bens e Serviços, o cartão de crédito aparece como a primeira causa das dívidas, com 78,4%, seguido pelos carnês e crediários ofertados por parte de grandes magazines e pelos financiamentos de veículos. Hoje, 32 milhões de brasileiros encontram-se superendividados, o que corresponde a aproximadamente de 15% da população. No ano de 2020, 25,3% da população do país estava inadimplente, segundo dados da ABDECON.

A atual pandemia da Covid-19 agravou ainda mais essa situação, elevando significativo do número de superendividados. Os efeitos nefastos do endividamento excessivo, que já eram graves, agora, diante das intempéries impostas pela Covid-19, reforçam a necessidade de uma atualização urgente do CDC no intuito não só de melhor regular o acesso ao crédito, mas também e notadamente criar um procedimento de recuperação financeira para o consumidor falido que, de boa-fé, caiu nas armadilhas do crédito fácil.

Seja em razão do apelo excessivo ao consumo, das doenças ou do desemprego, fato é que acidentes da vida atingem diretamente a saúde econômico-financeira dos brasileiros [7].

Com isso, o número de superendividados no Brasil vem aumentando exponencialmente. Pesquisa de inadimplência de consumo demonstra que 66,2% das famílias estão endividadas [8]. Dados colhidos no último mutirão de renegociação de dívidas promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) demonstram que, mesmo antes da pandemia, cerca de 80% dos casos enquadram-se no chamado superendividamento passivo, causado por acidentes da vida.

Tal realidade impõe o aprimoramento dos mecanismos de proteção ao consumidor e evidencia que o CDC, na sua redação atual, não tem se mostrado suficiente para assegurar-lhe a devida proteção, diante do modo agressivo e irresponsável como tem sido praticadas as operações de concessão de crédito no país, com evidente abuso de poder decorrente da assimetria nas relações contratuais de consumo.

No corrente ano de 2020, com crise sanitária e econômica, diminuição dos salários, impossibilidade de exercer certas atividades e profissões, redução de renda, perda do emprego e os problemas de saúde e doenças decorrentes da pandemia, é crescente o fenômeno do superendividamento, a exigir pronta resposta da sociedade organizada.

Ignorar a miséria dos consumidores superendividados só faz sobrecarregar o sistema econômico, aumentar os gastos com programas sociais, levando as pessoas à exclusão social em razão da carência de recursos mínimos para fazer frente aos serviços essenciais de água e luz, com consequente adoecimento da população e mortes.

Não é exagero afirmar, pois, que a atualização do CDC para incluir disposições voltadas à proteção do consumidor de crédito é instrumento essencial para salvaguardar não apenas do equilíbrio financeiro do consumidor, mas forma de preservação da sua dignidade e modo de salvar vidas.

Nesse sentido, no atual cenário de grave crise sanitária e econômica vivida pela população brasileira, mostra-se, mais do que necessário, urgente a aprovação do Projeto de Lei 3515/2015 como forma de minimizar as situações de superendividamento dos consumidores e, ao mesmo tempo, recuperar a economia e assegurar-lhes um mínimo de dignidade.

 


[1] MARQUES, Claudia Lima. "Novas regras sobre a proteção do consumidor nas relações contratuais". Revista de Direito do Consumidor, vol. 1/1992, p. 27 – 54, Jan – Mar / 1992, p. 27. "Nas sociedades de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em massa, as relações contratuais se despersonalizaram, aparecendo os métodos de contratação e standardizados, como os contratos de adesão e as condições gerais dos contratos. Hoje esses métodos predominam em quase todas as relações entre empresas e consumidores, deixando claro o desnível entre os contratantes – um, autor efetivo das cláusulas, e outro, simples aderente. É uma realidade social bem diversa daquela do século XIX, que originou a concepção clássica e individualista de contrato, presente em nosso Código Civil de 1917. Ao Estado coube, portanto, intervir nas relações de consumo, reduzindo o espaço para a autonomia de vontade, impondo normas imperativas de maneira a restabelecer o equilíbrio e a igualdade de forces nas relações entre consumidores e fornecedores".

[2] Artigo 4, inciso III do CDC

[3] Artigo 46. do CDC.

[4] Artigo 51 do CDC.

[5] Do Canto, Flávia. "Da efetividade dos Órgãos de Defesa do Consumidor" O Direito das Obrigações na Contemporaneidade: Estudos em homenagem ao Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior; MELGARE, Plinio (organizador). Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2014.

[6] HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço; tradução de Enio Paulo Giachini. 2 edição- Petrópolis, RJ: 2017, p. 8.

[7] SCHMIDT NETO, André Perin. Contratos na sociedade de consumo: vontade e confiança. 2 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019.

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