Opinião

Atualização dos débitos trabalhistas: primeiro capítulo da última temporada

Autor

  • Eduardo Caringi Raupp

    é advogado sócio fundador do escritório Raupp Moreira Advogados mestre em Processo Civil pela PUC-RS professor convidado de pós-graduação em Direito do Trabalho nas instituições Unisinos Imed UniRitter e Feevale membro da Comissão da Justiça do Trabalho da OAB-RS e ex-presidente da SATERGS (gestão 2015/2017).

5 de agosto de 2020, 15h10

A polêmica sobre o índice de atualização dos débitos trabalhistas lembra uma boa série da Netflix, em que as reviravoltas e o clima de suspense são constantes. Assim, tal qual uma típica série televisiva, antes de ingressar na nova temporada, que espero ser a última, é preciso apresentar um breve resumo das anteriores.

A Lei 8.177/91 prevê a incidência da TR sobre os débitos trabalhistas não satisfeitos pelo empregador nas épocas próprias. O caput do artigo 39 do indigitado diploma legal é inequívoco nesse sentido. Entretanto, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho afasta a incidência da TR e aplica o IPCA a partir de 26/3/2015, por conta de entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal nas ADIs 4.357/DF e 4.425/DF.

Nessas ADIs, nas quais são questionados dispositivos que disciplinam a atualização de valores devidos pela Fazenda Pública, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido para afastar a incidência da TR. Segundo o voto condutor do então ministro Ayres Britto: "A finalidade da correção monetária, enquanto instituto de Direito Constitucional, não é deixar mais rico o beneficiário, nem mais pobre o sujeito passivo de uma dada obrigação de pagamento. É deixa-los tal como qualitativamente se encontravam, no momento em que se formou a relação obrigacional". Ao julgar procedente o pedido, asseverou que os dispositivos questionados "artificializam" o conceito de atualização monetária, que estaria "ontologicamente associado à manutenção do valor real da moeda".

Inobstante os fundamentos adotados pelo STF, tal decisão não afetou o artigo 39 da Lei 8.177/91, norma com presunção de constitucionalidade. Isso porque as decisões proferidas no controle de constitucionalidade concentrado estão limitadas ao pedido, ainda que não adstritas aos fundamentos da inicial. A única exceção ocorre nas hipóteses, admitidas pela jurisprudência, de inconstitucionalidade por arrastamento, quando o tribunal declara inconstitucional outros dispositivos não questionados em face da interdependência entre eles. No entanto, a decisão deve ser expressa neste sentido, o que não ocorreu em relação à Lei 8.177/91 nos julgamentos das ADIs nº 4.357/DF e 4.425/DF. Portanto, o artigo 39 da Lei 8.177/91 não foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Tal situação não impede, todavia, a declaração de inconstitucionalidade pela Justiça do Trabalho no exercício do controle de constitucionalidade difuso, como admitido pela 2ª Turma do STF no julgamento da Rcl. 22.012.

A nova temporada tem início com a edição da Lei 13.467/17 (reforma trabalhista), que inseriu o §7º ao artigo 879 da CLT para dispor: "§7º. A atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial será feita pela Taxa Referencial (TR), divulgada pelo Banco Central do Brasil, conforme a Lei no 8.177, de 1º de março de 1991". Ou seja, já ciente da discussão nos tribunais, o legislador federal, ungido pelo sufrágio e no exercício da soberania popular, reafirma a necessária aplicação da Lei 8.177/91 e a consequente incidência da TR como índice de correção monetária dos débitos trabalhistas. O legislador, segundo seu juízo de conveniência e oportunidade, definiu a TR como índice adequado de correção do débito trabalhista. Como não houve pronunciamento do Supremo sobre a inconstitucionalidade específica da Lei 8.177/91, aparentemente não há desequilíbrio ou usurpação de poderes. Não deixa de ser no mínimo curiosa, porém, a necessidade de edição de norma para reafirmar a vigência de norma anterior de igual hierarquia.

Os tribunais regionais trabalhistas, todavia, insistiram na aplicação do IPCA como índice de correção dos débitos trabalhistas, mesmo após a vigência da Lei 13.467/17 (desde 11 de novembro de 2017). O próprio Tribunal Superior do Trabalho tem precedentes neste sentido (RR 416-65.2010.5.15.0101, 8ª Turma, DEJT 04/11/2019, Relª Maria Cristina Irigoyen Peduzzi e Ag-AIRR 71300-30.2005.5.02.0078, 1ª Turma, DEJT 20/04/2018, Rel.Walmir Oliveira da Costa). Importante destacar que há, de outra parte, um importante precedente da 4ª turma em sentido contrário, afirmando que a partir da vigência da Lei 13.467/17 a atualização dos débitos trabalhistas há de ser feita pela TR (RR 10260-88.2016.5.15.0146, 4ª Turma, DEJT 26/10/2018, Rel. Caputo Bastos).

Quando tudo levava a crer que o conflito entre as turmas seria resolvido pela Sessão de Dissídios Individuais (SDI) do TST, o Supremo Tribunal Federal novamente entra em cena, com o ministro Gilmar Mendes no papel principal. Ele deferiu medida liminar postulada na ADC nº 58 ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro para suspender o "julgamento de todos os processos em curso no âmbito da Justiça do Trabalho que envolvam a aplicação dos artigos 879, § 7º e 899, 4º, da CLT, com redação dada pela Lei nº 13.467/2017, e o artigo 39, caput e § 1º da Lei 8.177/91". A indigitada ação tem como objeto a declaração de constitucionalidade do §7º do artigo 879 da CLT. Nos fundamentos da sua decisão liminar o ministro Gilmar Mendes destaca precedentes de sua relatoria afastando a aplicação do mesmo entendimento sobre a correção de débitos da Fazenda Pública para os débitos trabalhistas. Também suscita a crise econômica decorrente da pandemia para reconhecer o perigo na demora do julgamento.

Posteriormente, motivado por pedido de reconsideração manejado pela PGR, o ministro Gilmar Mendes esclareceu que a sua decisão não "impede o regular andamento dos processos judiciais, tampouco a produção de atos de execução, adjudicação e transferência patrimonial no que diz respeito à parcela do valor das condenações que se afigura incontroversa pela aplicação de qualquer dos dois índices de correção".

Assim, caberá ao STF definir, na última temporada da série, se incidência da TR como índice de atualização monetária dos débitos trabalhistas prevista pela Lei 13.467/17 é ou não é constitucional. Sem querer dar spoiler, alguns precedentes pretéritos da corte podem nos indicar o possível posicionamento da corte.

Gilmar Mendes e Dias Toffoli devem julgar procedente a ADC para reconhecer a incidência da TR. Lembro que Dias Toffoli foi o relator da reclamação (Recl 22.012) que discutia a usurpação da competência do STF pelo TST quando este último declarou a inconstitucionalidade do artigo 39 da Lei nº 8.177/91 (que prevê a correção pela TR). Em seu voto, vencido na turma, Toffoli julgava procedente a reclamação. Gilmar Mendes o acompanhou em costumeiro voto enfático, no qual qualificava o julgamento das ADIs 4.357/DF e 4.425/DF como um dos maiores vexames do Supremo. Aliás, ambos foram vencidos naquele precedente.

De outra parte, é bem provável que Lewandowski, Celso de Mello e Fachin, que imprimiram a derrota a Toffoli e Mendes na turma que julgou a Recl. 22.1012, optem pela improcedência. Lembro que os dos primeiros participaram e julgaram com a maioria as ADIs 4.357/DF e 4.425/DF. Fux, que foi o redator daquele precedente e "herdou" a relatoria, igualmente deve votar pela improcedência. O mesmo poderia afirmar em relação a Rosa Weber e Carmen Lúcia, que o acompanharam na ocasião. Marco Aurélio também acompanhou a maioria nesse julgamento, mas suas manifestações mais recentes atacando o desmedido ativismo judicial e o desvirtuamento da tripartição dos poderes indicam sua opção por preservar o juízo de conveniência do legislador. Finalmente, os votos dos Ministro Barroso e Alexandre de Moraes são uma incógnita, pois não participaram do julgamento da Recl. 22.012 e das ADIs 4.357/DF e 4.425/DF. Mas, se tivesse de apostar, colocaria minhas fichas no juízo de procedência.

Nesse exercício especulativo, o placar ficaria seis votos a cinco, prevalecendo a improcedência da ADC e a inconstitucionalidade da Lei 13.467/17, que determina a incidência da TR. Ocorre que esse julgamento, como sugere o título deste artigo, contém todos os elementos para o sucesso de uma série televisiva, ou seja, disputa por poder, reviravoltas e suspense na temporada final. Teria, inclusive, uma temporada fraca, desconexa e quase sem lógica, como o período de vigência da regra inscrita na MP 905.

Mas não estamos falando de uma série de TV, e, sim, de uma discussão jurídica que gera impacto financeiro exorbitante no passivo das empresas. Infelizmente a segurança jurídica passa ao largo de toda essa celeuma. Grandes empresas podem estar praticando fraudes involuntárias em seus balanços, atualizando a provisão de seu passivo trabalhista por índice de correção de duvidosa constitucionalidade. O que serve para temporadas de série de televisão não deveria servir às discussões jurídicas, especialmente no tocante à constitucionalidade de leis.

Aparentemente o capítulo final da última temporada já tem data e hora, pois as ADCs 58 e 59 e as ADIs 5867 e 6021 estão pautadas para a sessão ordinária do Plenário que será realizada no próximo dia 12, às 14 horas. Oxalá seja o capítulo final da última temporada, e não o início de novo ciclo.

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    é sócio do escritório Flávio Obino Fº Advogados Associados, mestre em Processo Civil pela PUC-RS, professor convidado de pós-graduação em Direito do Trabalho nas instituições Unisinos, Imed e UniRitter e membro da Comissão de Direito do Trabalho da OAB-RS.

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