Opinião

Advocacia criminal e sistemas manipulados

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5 de agosto de 2020, 7h55

O advogado deve, tal qual os Martell de Dorne, ser insubmisso, não prestando vassalagem a autoridades públicas, nem colegas. O verdadeiro criminalista sabe que seu único suserano é o direito de liberdade. Para tanto, ele deve desenvolver olhar aguçado sobre excessos do poder punitivo e fazer críticas — respeitosas, porém incisivas — a tais atos excessivos, sem receio de desagradar quem quer que seja.

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Questão diversa é saber se há algum contexto no qual o advogado deve ser insubmisso a ponto de rebelar-se contra o sistema de administração de justiça criminal, recusando-se a participar do processo.

Não se trata aqui da hipótese (relativamente comum) em que o advogado e seu cliente nutrem sentimentos negativos (v.g. indignação etc.), em decorrência de ato processual penal contrário aos seus interesses na causa, por considera-lo arbitrário, excessivo, ilegal ou injusto.

Ao contrário, cuida-se de situação extrema, na qual o próprio sistema (ou subsistema) processual penal é manipulado, porquanto vocacionado a sistematicamente favorecer a parte acusadora e/ou limitar excessivamente as garantias do acusado.

Essa conjuntura apresenta duas graves questões éticas para o advogado: I) se ele tem o dever de defender o acusado nas situações em que restrições impostas à sua atuação profissional tornam a defesa técnica efetiva excessivamente difícil, quiçá impossível; e II) se ele tem o dever de declinar a representação processual nas precitadas condições restritivas, caso isso contrarie seus princípios éticos e contribua para a legitimação social de procedimentos manipulados [1].

Tal dilema ressurgiu ao ensejo do notório atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, quando o governo norte-americano decidiu declarar guerra ao terror, notadamente à organização fundamentalista islâmica Al-Qaeda, e ao regime talibã do Afeganistão.

Inspirada no modelo de tribunais militares ad hoc da Segunda Grande Guerra, a administração George W. Bush promulgou a Ordem Militar Presidencial de 13/11/2001, que versa sobre detenção, tratamento e julgamento de alguns não cidadãos na guerra contra o terrorismo (detention, treatment, and trial of certain non-citizens in the war against terrorism[2].

Essa ordem criou órgãos jurisdicionais (comissões militares) com competência para julgar quaisquer pessoas suspeitas de integrar a Al-Qaeda, conspirar para a prática de ato de terrorismo internacional, praticar ato preparatório de terrorismo internacional ou abrigar quaisquer dessas pessoas.

A ordem em digressão expressamente afastou: I) os princípios jurídicos e regras probatórias aplicáveis aos processos criminais comuns; e II) a interposição de recursos pelo acusado perante qualquer tribunal civil, seja norte-americano, estrangeiro ou internacional [3].

O defensor técnico do acusado obrigatoriamente é nomeado pelo Departamento de Defesa, entre oficiais das Forças Armadas que exerçam funções junto à Justiça Militar — à semelhança dos julgadores e acusadores. Assim, tal defensor carece da mais comezinha independência, sendo subordinado hierarquicamente ao secretário de Defesa.

Malgrado haja possibilidade de o acusado constituir advogado civil da sua livre escolha, a atuação deste sofre uma série de limitações: I) ele não substitui o defensor técnico militar, ficando relegado à subordinação hierárquica ao chefe do corpo de defesa militar; (ii) ele não tem direito de conhecer os elementos de prova que — conforme decisão discricionária da comissão militar — estão em regime de segredo, por razões de segurança nacional; III) ele pode ter suas comunicações com o cliente monitoradas; IV) ele deve ser nacional norte-americano, possuir conduta ético-profissional ilibada e se submeter à uma investigação de segurança; V) ele deve apresentar declaração autorizando vigilância sobre sua vida pública e privada; VI) ele deve assumir compromisso formal de submissão às regras de funcionamento do processo; e VII) ele deve atuar por bono, arcando com as despesas da representação processual (v.g. viagens) etc [4].

Portanto, o subsistema processual penal militar em apreço pode ser caracterizado como inquisitivo, tratando o acusado como objeto do poder punitivo.

Com base na doutrina de Günther Jakobs, tive a oportunidade caracterizar esse subsistema processual penal como exemplo paradigmático de processo penal do inimigo, visando à neutralização do suposto perigo representado pelos suspeitos de terrorismo internacional. Isso por meio de verdadeiro tribunal de exceção com estrutura inquisitória, que dispensa ao acusado uma defesa técnica meramente formal.

Assim, no ordenamento jurídico estadunidense há configuração dualista: um sistema processual penal comum para cidadãos e um subsistema processual penal militar para inimigos [5].

A doutrina norte-americana manifestou sua preocupação com a questionável constitucionalidade de diversos aspectos desse subsistema [6].

O então presidente da National Association of Criminal Defense Lawyers (NACDL) em 2003 publicou artigo se manifestando contra a atuação de seus associados como advogados civis em Guantánamo. O fundamento foi a impossibilidade de atuação zelosa e profissional, causada pela severidade das restrições legais impostas [7].

Após, o Comitê de Ética dessa entidade se manifestou no sentido de considerar antiética a representação de acusados perante as comissões militares em análise. Isso porque as condições impostas aos advogados civis são tão restritivas que, na prática, elas impedem a representação adequada e ética dos clientes, e fomentam condenações inconfiáveis e injustas.

Não obstante, a NACDL ressalvou que não condenará advogados que entendam possuir o dever ético de representar clientes perante esses tribunais de exceção.

No caso da aceitação do patrocínio desse tipo de causa, a NACDL recomenda que o advogado suscite todo argumento de boa-fé concebível (every conceivable good faith argument) sobre a incompetência da comissão militar, a ilegalidade da não aplicação do Uniform Code of Military Justice (UCMJ), a aplicação de tratados internacionais de direitos humanos, da cláusula do devido processo legal e do controle jurisdicional de tribunais civis norte-americanos sobre a legalidade dos procedimentos.

Além disso, a NACDL sugere que todas as causas julgadas perante as comissões militares sejam consideradas susceptíveis à pena de morte, devendo o advogado civil possuir as mesmas qualificações exigidas dos profissionais que atuam em casos de pena letal  [8].

Em resposta, o National Institute of Military Justice (NIMJ) divulgou nota redarguindo que o boicote de advogados civis às comissões militares enseja erosão da confiança pública depositada no sistema de administração da justiça criminal e nas associações de advogados. Também se argumentou que uma das missões mais nobres da advocacia é proporcionar representação de qualidade e independente àqueles mais desfavorecidos pelo governo. Outro ponto suscitado foi que a participação do advogado civil pode permitir impugnações de práticas e procedimentos, sugestões de mudanças, registros de atos processuais etc., aumentando as chances de aperfeiçoamento do sistema e decisões justas.

O Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil impõe uma série de deveres ao defensor técnico, porém ele não regula a problemática da participação em sistema (ou subsistema) processual penal manipulado, porquanto vocacionado a sistematicamente favorecer a parte acusadora e/ou limitar excessivamente as garantias do acusado.

Há premissa implícita no sobredito marco deontológico regulador da advocacia: o profissional atuará em sistema processual penal democratizado, ou seja, imparcial, justo e que propicie condições mínimas para o desenvolvimento da defesa técnica do acusado.

Nada obstante, por mais bem formado, empenhado na causa, ético e qualificado que o advogado seja, é possível que características estruturais de determinado sistema (ou subsistema) processual penal impeçam a representação zelosa e profissional do cliente, conforme reconhecido pela NACDL.

Nessa conjuntura, é discutível qual é a melhor estratégia para insuflar a mudança desse sistema: I) extrassistêmica: criação de fato político, decorrente de boicote coletivo de advogados ao sistema; e II) intrassistêmica: atuação processual vigorosa do advogado, fazendo impugnações de práticas e procedimentos, sugestões de mudanças, registros de atos processuais etc.

A segunda opção traz o risco de a participação do advogado servir como fator de legitimação social do sistema manipulado, máxime porque sua atuação vigorosa pode até aperfeiçoar algumas práticas judiciárias de interpretação e aplicação do Direito, mas não as características estruturais desse sistema.

Portanto, a decisão de participar ou não de sistema (ou subsistema) processual penal manipulado comporta múltiplas perspectivas morais.

O monitoramento das comunicações entre advogado e cliente causa grau de restrição tão intenso que é inadmissível em quaisquer circunstâncias, pondo em causa a capacidade de o advogado exercer a defesa técnica efetiva. Também é possível entender que a oposição política ao sistema manipulado é mais efetiva se for feita a partir de fora.

Por outro flanco, é possível que o advogado sinta que deve questionar a legitimidade do sistema manipulado a partir de dentro, por obrigação moral, concepção pessoal sobre justiça e/ou dever de assistir o acusado da melhor forma possível, em circunstâncias adversas.

Assim, essas duas opções são moralmente legítimas, cabendo a cada advogado decidir por conta própria, sem sofrer nenhum tipo de recriminação pela sua escolha pessoal [9].

A polêmica sobre a participação de advogados civis nas comissões militares norte-americanas é interessante, pois descortina uma série de questões éticas relevantes para o advogado criminalista.

Este deve — principalmente em tempos de autoritarismo, discursos de emergência, práticas judiciárias de exceção, megaprocessos criminais etc. — desenvolver aguda sensibilidade para detectar sistema (ou subsistema) processual penal manipulado, porquanto vocacionado a sistematicamente favorecer a parte acusadora e/ou limitar excessivamente as garantias do acusado.

 


[1] MARGUILES, Peter. Foreword: Risk, deliberation and professional responsibility, In: In: Journal of National Security Law & Policy, v. 01, n. 02, pp. 357-374, 2005.

[2] BELKNAP, Michal. A putrid pedigree: The Bush administration’s military tribunals in historical perspective, In: California Western Law Review, v. 38, n. 02, pp. 433-480, 2002.

[3] No caso Rasul v. Bush, a Suprema Corte decidiu que os suspeitos de terrorismo internacional detidos na base naval da Baía de Guantánamo (Cuba) têm direito a impetrar Habeas Corpus perante Tribunais civis norte-americanos (542 US 466 (2004)).

[4] BOUCHARD, Marco. Guantánamo: morte do processo penal e início do apocalipse, In: Revista do Ministério Público, Lisboa, n. 97, pp. 61-72, jan./mar. 2004.

[5] MALAN, Diogo. Processo penal do inimigo, In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 59, pp. 223-258, mar./abr. 2006.

[6] FLETCHER, George. On justice and war: Contradictions in the proposed military tribunals, In: Harvard Journal of Law & Public Policy, v. 25, n. 02, pp. 635-652, 2002; KATYAL, Neal; TRIBE, Laurence. Waging war, deciding guilt: Trying military tribunals, In: Yale Law Journal, n. 111, pp. 1.259-1.310, 2002; PAUST, Jordan. Antiterrorism military commissions: Courting illegality, In: Michigan Journal of International Law, v. 23, n. 01, pp. 01-29, 2001.

[7] GOLDMAN, Lawrence. Guantanamo: Little hope for zelous advocacy, In: The Champion, July 2003.

[8] NATIONAL ASSOCIATION OF CRIMINAL DEFENSE LAWYERS (NACDL). Ethics Advisory Committee. Opinion 03-04 (August 2003). Disponível em: https://www.nacdl.org/getattachment/16b12bdd-1a3f-4b59-90b3-a798ac8510ee/ethics_op_03-04.pdf

[9] CHEH, Mary. Should lawyers participate in rigged systems: The case of military commissions, In: Journal of National Security Law & Policy, v. 01, n. 02, pp. 375-408, 2005.

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