Opinião

É urgente jurisprudência que reveja standard probatório para recusa do juiz

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4 de agosto de 2020, 12h29

A 1ª Turma do STF pautou para julgamento o RHC nº 159.194, de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello, que trata do relevante tema da imparcialidade judicial. O recurso se deu contra acórdão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, relatado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, no qual se afirmou que a "condução pelo togado do interrogatório da ré, durante o júri, de forma firme e até um tanto rude, não importa, necessariamente, em quebra da imparcialidade do magistrado e nem influência negativa nos jurados" (HC nº 410.161).

Aliás, a 2ª Turma do STF também deverá se posicionar sobre o tema em breve, quando do julgamento do HC nº 164.493, no qual é suscitada a suspeição do ex-juiz federal Sergio Moro na condução do "caso Lula".

Apesar de alguns avanços jurisprudenciais muito pontuais, como o reconhecimento de que o rol de hipóteses de suspeição, contido no artigo 254 do CPP, é exemplificativo (vide HC 146.796, do STJ) [1], ampliando a possibilidade da análise de situações de quebra da imparcialidade judicial, fato é que o acolhimento da recusa de um magistrado é situação de raríssima ocorrência no Brasil.

Neste sentido, entre 2014 e 2019, somando STF, STJ e os cinco TRFs, foram proferidas 1.432 decisões contrárias ao afastamento do juiz, enquanto apenas 19 foram favoráveis. Especificamente no STF, foram 190 decisões contrárias e nenhuma favorável à recusa do magistrado [2].

Afinal, por qual motivo isso acontece, a ponto de se afirmar que um juiz pode até mesmo ser rude ou hostil com a parte no âmbito do júri? Existem muitos fatores, sem dúvida, que vão do possível corporativismo à jurisprudência defensiva dos tribunais superiores, passando pela cultura inquisitória que ainda insiste em se fazer presente. Entretanto, a resposta a essa indagação, ao que nos parece, também passa pelo standard probatório — critério que dita o grau de suficiência probatória necessária para considerar determinada hipótese provada [3] — que vem sendo exigido para acolhimento da recusa de um juiz.

O que se nota é que a jurisprudência exige prova efetiva da parcialidade do magistrado cujo afastamento se pleiteia. De acordo com o STJ, "o rol de suspeições é exemplificativo, sendo, assim, imprescindível, para o reconhecimento da suspeição do magistrado, não a adequação perfeita da realidade à uma das proposições do referido dispositivo legal, mas sim, a constatação do efetivo comprometimento do julgador com a causa" (REsp nº 1.379.140). Vale dizer, tem-se exigido a demonstração do comprometimento subjetivo do juiz, em seu íntimo, em grau de exigência probatória equiparável à comprovação do dolo (ou má-fé) no(s) ato(s) impugnado(s), na medida em que estariam contaminados pela parcialidade do julgador.

Daí a dificuldade de se admitir a recusa, limitando significativamente o alcance da garantia da imparcialidade judicial, prevista em diversos tratados internacionais de direitos humanos, como o Pacto de São José da Costa Rica (artigo 8.1) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 14.1).

Por sinal, a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) já assentou que o "direito de ser julgado por um juiz ou tribunal imparcial é uma garantia fundamental do devido processo legal", devendo ser garantido que "o juiz ou tribunal no exercício de suas funções como julgador conte com a maior objetividade para enfrentar o julgamento" (Caso Duque vs. Colômbia), o que atesta a elevada envergadura da imparcialidade judicial enquanto estruturante do devido processo legal.

Em verdade, o standard que vem sendo exigido pelos tribunais pátrios é equivocado, pois viola a previsão normativa sobre a matéria, bem como compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

É sabido que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, já na década de 80, afirmou ser possível distinguir a imparcialidade judicial entre um aspecto subjetivo, "que trata de verificar a convicção de um juiz determinado em um caso concreto", e um aspecto objetivo, "que se refere a se este oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida razoável a respeito" (Caso Piersack vs. Bélgica). A partir dessa noção de imparcialidade objetiva, definiu-se que não basta ser imparcial, é preciso parecer imparcial. Ou seja, a imparcialidade judicial pode ser vulnerada pela mera aparência de parcialidade, independentemente de efetivo comprometimento subjetivo do magistrado [4].

Essa linha foi seguida pela Corte IDH, já tendo afirmado inclusive que os tribunais devem inspirar a "confiança necessária às partes do caso, bem como aos cidadãos em uma sociedade democrática" (Caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica). Por isso, ainda de acordo com a Corte IDH, "(a) recusa não deve ser vista necessariamente como um julgamento da retidão moral do funcionário recusado, mas como uma ferramenta que brinda confiança àqueles que venham perante o Estado solicitar a intervenção de órgãos que devem ser e aparentar ser imparciais" (Caso Apitz Barbera e outros vs. Venezuela).

Não por acaso — e seguindo a mesma tendência —, os Princípios de Conduta Judicial de Bangalore (ONU) estabelecem que "(u)m juiz deve considerar-se suspeito ou impedido de participar em qualquer caso em que não é habilitado a decidir o problema imparcialmente ou naqueles em que pode parecer a um observador sensato como não-habilitado a decidir imparcialmente" (Valor 2, item 2.5). No mesmo sentido, o Código Ibero-americano de Ética Judicial prevê que "o juiz tem a obrigação de abster-se de intervir naquelas causas nas quais se veja comprometida a sua imparcialidade ou, nas quais um observador razoável possa entender que há motivo para pensar assim” (artigo 11).

O Código de Ética da Magistratura Nacional também reforça a ideia da aparência de imparcialidade quando dispõe que "o magistrado imparcial é aquele que (…) evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito" (artigo 8º). Note-se que não se fala em comportamento que reflete favoritismo, predisposição ou preconceito, mas sim naquele que possa refletir.

Ademais, parece claro que o próprio Código de Processo Penal adotou o critério da aparência de parcialidade, pois denominou exceção de suspeição (artigo 95, I) o instrumento cabível para recusa do magistrado, além de apresentar rol exemplificativo de hipóteses nas quais o juiz dar-se-á por suspeito (artigo 254). Ora, suspeição significa "suspeita, desconfiança"; suspeitar é "conjecturar, supor, imaginar com certas bases"; enquanto dar-se por suspeito significa "recusar-se a emitir opinião, voto ou sentença num debate ou processo, por não poder ser ou poder não parecer imparcial[5] (grifo do autor).

Logo, o standard probatório para a recusa não requer a comprovação de efetiva parcialidade do juiz, como tem sustentado a jurisprudência pátria, mas sim prova da aparência de parcialidade (juiz aparentemente parcial), a qual deve ser considerada tanto desde a perspectiva das partes, como da sociedade em geral (observador razoável ou sensato).

Enfim, considerando o papel contramajoritário do STF e sua função de guardião da Constituição da República, a qual assegura o devido processo legal e, consequentemente, o direito a um juiz imparcial, afigura-se urgente a conformação de uma jurisprudência que não apenas afirme a não taxatividade dos róis de suspeição e de impedimento, como também reveja o standard probatório exigido para a recusa do juiz, adequando-o ao critério da aparência de parcialidade.

 


[1] A jurisprudência atual do STJ se mostra alinhada com a doutrina de Guilherme de Souza Nucci, que diz: "Embora muitos entendam ser taxativo (o rol de hipóteses de suspeição), preferimos considerá-lo exemplificativo. Afinal, este rol não cuida dos motivos de impedimento, que vedam o exercício jurisdicional, como ocorre com o disposto no art. 252, mas, sim, da enumeração de hipóteses que tornam o juiz não isento. Outras situações podem surgir que retirem do julgador o que ele tem de mais caro às partes: sua imparcialidade. Assim, é de se admitir que possa haver outra razão qualquer, não expressamente enumerada neste artigo, fundamentando causa de suspeição". (in: Código de Processo Penal Comentado, Ed. RT, 2007, p. 521).

[2] Para acesso à pesquisa, realizada pela Revista Piauí: https://piaui.folha.uol.com.br/na-era-da-lava-jato-supremo-nunca-afastou-juiz/.

[3] Sobre o tema, vide: MATIDA, Janaina; VIEIRA, Antonio. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova "para além de toda dúvida razoável" no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 27, n. 156, p. 227.

[4] Oportuna é a colocação de Gustavo Badaró, que entende pela não-taxatividade dos róis de impedimento e de suspeição: "Segundo a teoria da aparência de imparcialidade, para preservar a confiança que a sociedade deve ter nos tribunais, deve ser impedido de atuar todo juiz sobre o qual haja dúvida de imparcialidade. Sem uma garantia total de imparcialidade, o julgador não poderá legitimamente exercer a função jurisdicional". (In: Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 278).

[5] In: Dicionário prático ilustrado. Porto: Lello & Irmão Editores, 1956, p. 1204.

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