Opinião

O voto de qualidade e os conselheiros do Carf: a importância de manter o foco

Autor

  • Natália Brasil Dib

    é sócia do escritório Fábio Tokars Advocacia Corporativa mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e professora dos cursos de graduação da PUC-PR e do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) e autora dos livros Bem Jurídico Tributário e O Desenvolvimento na Constituição de 1988.

4 de agosto de 2020, 19h26

Já manifestamos em outras oportunidades nosso posicionamento sobre o voto de qualidade aplicado nos julgamentos efetuados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) [1]. A matéria é menos simplista do que a sua manutenção (como defende a Anfip) ou a sua extinção, como o fez o Congresso Nacional, com a inclusão do artigo 19-E na Lei 10.522/2002. Após a referida alteração, já foram ajuizadas as ADIs 6415, 6499 e 6403 para discussão da inconstitucionalidade do artigo 19-E no Supremo Tribunal Federal.

O processo administrativo fiscal é peculiar. Há clara vulnerabilidade do contribuinte, como alerta James Marins [2] há muito tempo, já que o Estado, de fato, é juiz da sua própria causa. Afinal, após lavrado o auto de infração, o julgamento da impugnação em primeira instância administrativa — realizado pelas Delegacias Regionais de Julgamento — é realizado por julgadores advindos dos quadros da própria Receita Federal do Brasil, os quais são vinculados às suas normativas internas — IN/PN.

Em segunda instância, por sua vez, o julgamento possui outras premissas. O órgão julgador — Carf — ainda que pertença ao Ministério da Economia, não está vinculado à Receita Federal do Brasil e tem composição paritária. Isso significa dizer que as turmas são compostas de conselheiros indicados pelas entidades de classe (CNI, CNC, CUT etc.) e conselheiros indicados do quadro de auditores da Receita Federal do Brasil. Todos, em última instância, são escolhidos pela Comitê de Acompanhamento, Avaliação e Seleção de Conselheiros (CSC) e nomeados pelo Ministério da Economia.

O problema do voto de qualidade surgiu como consequência, pode-se dizer, da representação paritária, pois, na hipótese de empate no julgamento, a solução dada pelo §9° do artigo 25 do Decreto 70.235/72 era de que o voto de qualidade seria proferido pelo presidente da turma, o qual, necessariamente, seria um conselheiro representante da Fazenda Nacional.

Dessa previsão havia quem opinasse pela inconstitucionalidade, gerando discussões mais amplas, como na ADI 5731, ou discussões específicas, nas quais o contribuinte, em controle difuso, se insurgia contra esse voto "duplo", também com fundamento na Constituição Federal.

Entretanto, ainda que outro projeto de lei estivesse em trâmite (como o PL nº 6064/2016) com soluções um pouco distintas, juntamente com a votação da lei que trata da transação tributária, incluiu-se o artigo 19-E na Lei 10.522/2002, cuja previsão é a seguinte: "Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o §9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte".

Os contribuintes estavam certos de que a questão havia sido endereçada, a ponto da ADI 5731 perder o objeto com manifestação expressa do relator ministro Gilmar Mendes [3]. Contudo, o Ministério da Economia surpreendeu com a publicação da Portaria nº 260, de 1º de julho de 2020, na qual restringiu a interpretação dada à lei.

Além disso, desde a publicação da lei extintiva do voto de qualidade, inúmeras manifestações quanto à sua aplicabilidade foram suscitadas.

Primeiro porque a solução da lei foi pendular. Se antes a decisão era do presidente da turma, representante da Fazenda Nacional, agora a decisão não é atribuída a qualquer outro conselheiro, mas necessariamente, diante do empate, resolve-se a favor dos contribuintes. E o voto de qualidade, que, em princípio, não teria partido, agora tem.

Segundo porque a lei traz, aparentemente, imprecisão técnica, pois menciona julgamentos que versem sobre a "determinação e extinção do crédito tributário". Essa suposta imprecisão gerou inúmeras questões. E se a discussão versar sobre matérias como exclusão do regime do Simples Nacional? Sobre responsabilidade tributária? Sobre pedidos de ressarcimento? Poderia haver a aplicação do voto de qualidade? Já há, inclusive, parecer da PGFN sobre o tema. O Parecer SEI nº 6898/2020/ME, que, conforme o despacho de 1° de julho de 2020 do Ministro da Economia, vincula todo o Carf.

Terceiro porque desde a modificação legislativa há manifestações mais preocupantes, desde as manifestações públicas das associações e sindicatos representativos dos auditores fiscais da Receita Federal até o veemente pressuposto de que os conselheiros representantes dos contribuintes são partidários nas decisões, como a temerária representação feita pela Unafisco sobre o tema [4], com a intenção de questionar a constitucionalidade da escolha dos conselheiros. Representação que, acertadamente vem sendo repudiada [5].

Compreender o Direito a partir dos sistemas complexos, em alguma medida, explica a confusão que o tema vem tomando. O sistema é dinâmico e cada alteração é capaz de produzir efeitos inesperados e não considerados, razão pela qual insistíamos no amplo debate político sobre o assunto. As discussões atuais não mentem sobre isso.

Há algum tempo, já manifestamos a opinião de que o voto de qualidade não deveria ter partido e que seria salutar que eventual alteração legislativa passasse pela ampla discussão pública, a fim de acomodar os interesses diversos. Pois, se de um lado os contribuintes sentiam dificuldades com a quase inócua chance de ver seu direito garantido nos julgamentos em que o voto de qualidade se fazia necessário [6], de outro, a impossibilidade de que a Fazenda recorra ao Judiciário, na hipótese de decisão favorável aos contribuintes, levantava importante questão ao tema.

Fato é que, independentemente dessas questões, a alteração legislativa foi aprovada. Ou seja, em caso de empate no julgamento, decide-se favoravelmente aos contribuintes. Em respeito às instituições democráticas, cabe a todos nós cumprir a previsão legal, sem embargo do constante debate público sobre o voto e a lei e eventual controle de constitucionalidade.

O que não é salutar é incluir no tema dúvidas sobre a parcialidade dos conselheiros ou qualquer tentativa de mitigação dos efeitos da lei por vias indiretas. Incluir mais esse elemento a esse complexo sistema só tem potencial de causar o caos e enfraquecer o Carf, órgão que exerce fundamental função no controle de legalidade dos atos administrativos. Resta saber como o sistema entrará em equilíbrio diante de todas essas perturbações. De nossa parte, a expectativa é que o Carf se mantenha resiliente.

 


[2] MARINS, James. Defesa e vulnerabilidade do contribuinte. São Paulo: Dialética, 2009.

[3] "Com efeito, essa nova previsão determina o fim do voto de desempate pela Fazenda Nacional no Conselho Administrativo de Recurso Fiscais (Carf) disposto no § 9º do artigo 25 do Decreto 70.235/1972". ADI 5731.

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