Opinião

Incertezas migratórias em tempos de pandemia da Covid-19

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3 de agosto de 2020, 16h07

A pandemia da Covid-19 está afetando todo o cenário mundial em diversos setores e, possivelmente, moldando relações jurídicas para os próximos anos. Enquanto não há a certeza de um medicamento eficaz, ou de uma vacina, vários países adotam medidas restritivas severas para conter a proliferação da crise sanitária, e proteger a população, mas são decisões que, por outro lado, podem fomentar a fragilidade de grupos já vulneráveis, em razão da limitação do fluxo migratório, cerceando ainda mais os seus direitos fundamentais, e expondo-os ainda mais ao vírus.

Segundo dados do último relatório do Alto Comissionário das Nações Unidas (ACNUR), até o final de 2019, 79,5 milhões de pessoas foram forçadas a migrar. São sujeitos que buscam o deslocamento muitas vezes como o último recurso para a sua sobrevivência. Nesse montante, encontram-se pessoas que fogem de guerras, perseguições políticas, por conflitos entre determinados grupos sociais, por perseguições em razão de orientação sexual, questões religiosas. São critérios que poderão determinar o reconhecimento dessas pessoas como refugiadas, segundo a Convenção das Nações Unidas Relativas ao Estatuto do Refugiado de 1951. A maior parte, todavia, não consegue a proteção do mencionado estatuto, porque decidem migrar para escapar da instabilidade econômica, ou em razão dos desastres ambientais.

O direito de migrar é previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo 13 [1] . A despeito da crise migratória em razão da emergência sanitária, é notório um movimento que se acentuou há alguns anos, de crescimento do nacionalismo e do xenofobismo. Com tantas restrições, aumentam os casos de irregularidade e de crescimento do tráfico de pessoas, e os migrantes, colocados em uma zona de não pertencimento, são constantemente culpabilizados em razão de uma política do medo, fomentada por governantes que criminalizam (como também incentivam) a migração irregular.

"Migrantes irregulares sujeitos que são ao mesmo tempo considerados como insiders e outsiders ("outsiders imanentes" nos termos de McNevin) habitam uma zona fronteiriça ilusória e escorregadia entre inclusão e exclusão, entre dentro e fora. Esses sujeitos desempenham um papel constitutivo nas lutas e conflitos que atravessam os regimes de fronteira. Irregularidade, nesse sentido, é uma das questões estratégicas. Não obstante o fato de que os efeitos mais imediatos de uma política de controle sejam a fortificação das fronteiras e o refinamento de dispositivos de detenção/expulsão, fica claro que os regimes contemporâneos de gestão das migrações não visam apenas à exclusão dos migrantes. (…) A meta, em outras palavras, não é fechar hermeticamente as fronteiras dos "países ricos", mas estabilizar um sistema de diques de contenção, capaz de produzir e manter "um processo ativo de inclusão do trabalho migrante através de sua clandestinização" (DE GENOVA, 2002, p. 439) [2]. Isso pressupõe um processo de inclusão diferencial (MEZZADRA e NEILSON, 2010) [3], no qual a irregularidade emerge como uma condição produzida e como alvo político das políticas de mobilidade". (MEZZADRA, 2012, p.19).

Então, somando-se a pandemia à situação já instável desse grupo de pessoas, os migrantes encontram-se ainda mais expostos. A primeira barreira encontra-se na saída do seu país de origem, feita muitas vezes de forma clandestina, e na entrada em um novo Estado-nação. No cenário atual, em que a doença continua ganhando força, com mais de 15 milhões de infectados e mais de 640 mil óbitos oficiais no mundo, a mobilidade global é severamente impactada. Conforme a Organização Internacional de Migrações (OIM), no dia 16 de julho de 2020, 219 países emitiram 72.525 restrições de viagens. Inclusive, o ACNUR também relata que até 10 de julho países estavam com as fronteiras fechadas sem qualquer exceção. Isso significa que o acesso a pedido de solicitação de refúgio está limitado em diversos locais, o que é uma grave violação aos direitos humanos já consolidados em instrumentos internacionais. No caso do Brasil, a Portaria Conjunta nº 340, de 30 de junho de 2020, prorrogou por mais 30 dias a contenção do acesso de estrangeiros no país. A medida revoga as portarias anteriores (nºs 255 e 319), mas mantém severas restrições, incluindo a possibilidade de inabilitação do pedido de refúgio, contendo um viés discriminatório em relação aos venezuelanos.

Como uma das políticas adotadas para o controle do vírus foi o enrijecimento das regras de circulação dos estrangeiros, é preciso ter a sensibilidade de não violar pactos internacionais de direitos humanos, em especial o princípio do non refoulement [4], previsto no Estatuto do Refugiado. É certo que é preciso conter a crise sanitária dos países, todavia, os direitos dos migrantes também devem ser protegidos, concomitantemente aos direitos dos nacionais. Afinal, a dignidade humana aplica-se a todos.

Maior entrave encontram os deslocados que não se enquadram ao Estatuto, como os deslocados por motivos ambientais e climáticos. Devido à ausência de um instrumento específico, não há uma regra expressa que impeça a sua devolução ao país de onde fugiram em razão do desastre, não sendo aplicável, portanto, o citado princípio que assegura a presença do migrante no Estado receptor.

Após adentrar no território, outra barreira está relacionada ao acesso a serviços essenciais, especialmente para os imigrantes indocumentados. Muitos trabalham na informalidade, ou em empregos com baixas remunerações, e não possuem as condições de cumprir as medidas de isolamento social impostas pelos governos [5]. Nota-se, também, medo do desemprego, a restrição aos serviços de saúde e outros impactos socioeconômicos, tais como moradias inadequadas, ausência de acesso à água potável, saneamento básico e educação [6]. A situação de hipervulnerabilidade é gritante, ainda assim há evidente mitigação dos direitos fundamentais desse grupo, que precisa contar com o apoio da sociedade civil [7], e das instituições públicas, como a Defensoria Pública da União e mesmo o Poder Judiciário, especialmente o federal, para assegurar o mínimo existencial necessário para a sua permanência no país.

Claro que a instabilidade socioeconômica já estava presente no mundo antes da propagação da Covid-19, e não se pode olvidar que a pandemia desmascara as fragilidades que já existiam no mundo globalizado. A desigualdade alcançava patamares gritantes nos anos antecessores. A crise migratória ganha uma nova frente, e certamente será potencializada em razão da recessão do cenário econômico, mas é preciso frisar que milhares de pessoas já não eram contempladas com a possibilidade de um deslocamento saudável. O modelo já estava em falência, seja nas esferas sociais, políticas, ambientais ou econômicas. Resta saber como que serão elaboradas as saídas se através do enrijecimento ainda maior das regras e dos muros , ou com a coordenação de políticas públicas e ações voltadas para o desenvolvimento inclusivo e em conjunto. Conforme precisa análise de Rodrigues (2020, p.14):

"Não é o vírus que é responsável por nossa fragilidade como espécie (RIBEIRO, 2020) [8], mas, sim, por desenhos, agendas e (geo)políticas econômicas, por exemplo, de saúde pública e de proteção social. Assim, o que se vive ou se passa no Brasil e no mundo não é devido ao novo coronavírus. O novo coronavírus é apenas o indicador, um expositor de um quadro, de primazia de uma racionalidade instrumental e utilitarista, de exploração, de modelo predatório, concentrador de rendas e riquezas".

O fechamento de fronteiras, apesar de ser posto como necessário para frear a disseminação da pandemia nesse momento de crise, deve ser uma medida que não discrimine ainda mais o imigrante. É preciso sempre recordar que boa parte desses deslocados enfrentam situação de periculosidade ainda maior no seu país de origem. Ainda, campos de refugiados concentrados nas fronteiras são geralmente aglomerados e sem as condições sanitárias para a contenção do vírus. O acolhimento deve ser adequado, respeitando a luta desses indivíduos.

O cenário da pandemia da Covid-19 traz inquietações e incertezas em relação ao futuro das migrações em âmbito internacional, e é preciso pensar como o Direito poderá contribuir para minimizar os reflexos acima apontados. Não existem soluções adequadas intramuros, sendo necessária uma análise cosmopolita que alcance a população em maior escala.

Referências bibliográficas
CONVENÇÃO Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020.

Covid-19 Platform: temporary measures and impact on protection. Copenhage: UNHCR, 2020. Disponível em: https://im.unhcr.org/covid19_platform/#_ga=2.265173000.627645285.1595337632-124436682.1594514708. Acesso em: 20 jul. 2020.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: UNIC, 2009. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020.

DE GENOVA, N. Conflicts of mobility, and the mobility of conflict: rightlessness, presence, subjectivity, freedom. Subjectivity, 29, p. 445-466, 2009.

DELFIM, Rodrigo Borges. Imigrantes no Brasil mais 4 países fazem campanha por regularização migratória em resposta à Covid-19. MigraMundo, 26 de junho de 2020. Disponível em: https://www.migramundo.com/imigrantes-no-brasil-e-mais-4-paises-fazem-campanha-por-regularizacao-migratoria-em-resposta-a-covid-19/?fbclid=IwAR3jmG0wcLABm-8RsV71YaYJ1cohA7JJ9SaaTpVlDyeClJjYhQcc9moJz1U. Acesso em: 28 jul. 2020.

GLOBAL mobility restriction overview: by-weekly update 16th July 2020. Grand-Saconnex: IOM, 20 de julho de 2020. Disponível em: https://reliefweb.int/report/world/global-mobility-restriction-overview-bi-weekly-update-16th-july-2020. Acesso em: 20 jul. 2020.

MEZZADRA, S.; NEILSON, B. Frontières et inclusion différentielle. Rue Descartes, Paris, n. 67, p. 102-108, 2010.

MEZZADRA, Sandro. Multidão e migrações: a autonomia dos migrantes. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 70-107, 2012.

OMS registra 640.016 mortes e 15.785.645 casos de Covid-19 no mundo. Notícias Uol, São Paulo, 26 de julho de 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/2020/07/26/coronavirus-balanco-da-oms-registra-640016-mortes-e-15785641-casos-no-mundo.htm. Acesso em: 28 jul. 2020.

RODRIGUES, Jondison. Narrativas políticas, produção de vulnerabilidades e convulsão social no Brasil e no mundo, no contexto do Novo Coronavírus. Papers do NAEA, Belém, v. 29, n. 1, 2020. (Dossiê Crise e Pandemia). Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/pnaea/article/view/8725/6231. Acesso em: 28 jul. 2020.

UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES – UNHCR. Global trends: forced displacement in 2019. Copenhagen: UNHCR, 2020. Disponível em: https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/5ee200e37/unhcr-global-trends-2019.html?query=global%20trends. Acesso em: 24 jun. 2020.

 

 


[1] "Artigo XIII 1  Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar".

[2] DE GENOVA, N. Migrant ‘illegality’ and deportability in everyday life. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, n. 31, p. 419-447, 2002.

[3] MEZZADRA, S.; NEILSON, B. Frontières et inclusion différentielle. Rue Descartes, Paris, n. 67, p. 102-108, 2010.

[4] 1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para fronteiras dos territórios em que a sua vida ou liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas. 2. O benefício da presente disposição não poderá, todavia, ser invocado por um refugiado que por motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que, tendo sido condenado definitivamente por um crime ou delito particularmente grave, constitui ameaça para comunidade do referido País. (Convenção de 1951).

[5] Mais informações sobre algumas dificuldades enfrentadas pelos imigrantes durante a pandemia na seguinte pesquisa: JUBILUT, Liliana Lyra et al. Direitos humanos e Covid-19: impactos em direitos e para grupos vulneráveis. Santos: Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e Vulnerabilidades” da Universidade Católica de Santos, 2020.

[6] Ainda sobre a situação do imigrante no contexto da pandemia, a plataforma (In)Movilidad (https://www.inmovilidadamericas.org/quienes-somos) reúne pesquisadores das Américas que analisam a situação dos migrantes, colocando ações governamentais, como também a luta desses sujeitos no atual cenário.

[7] A sociedade civil iniciou uma campanha em prol da regularização migratória no meio da pandemia. Destaca-se a PL 2699/2020, em tramitação no Congresso Nacional.

[8] RIBEIRO, S. P. et al. Severe airport sanitarian control could slow down the spreading of Covid-19 pandemics in Brazil. medRxiv, Yale, v. 3, p. 1-15, mar. 2020.

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