Opinião

Reforma tributária: agora é o momento?

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3 de agosto de 2020, 10h36

No último dia 21 de julho, conhecemos a primeira parte da reforma tributária apresentada pelo governo federal. Entretanto, essa conversa não é de hoje. Há anos vislumbram-se propostas de reformas constitucionais ou infraconstitucionais que dizem respeito ao Sistema Tributário Nacional, cujo objetivo seria simplificar e retirar a sua complexidade.

Tramita desde 2008, por exemplo, a Proposta de Emenda Constitucional 233, que pretende fazer uma reforma tributária no país com viés de unificação de impostos. Ou seja, há mais de dez anos em tramitação, período em que surgiram outras propostas, sem que se tenha uma definição séria sobre quais as reais necessidades para o país e qual deve ser sua abrangência a ponto de se evitar a sonegação, os desvios e se ter uma tributação justa.

E agora, em meio à pandemia da Covid-19, retomam-se as discussões sobre a reforma tributária do mesmo patamar em que estavam tramitando. É viável debatermos com as mesmas diretrizes de reforma?

Como se sabe, o ISSQN é a maior fonte de arrecadação para a grande maioria dos municípios do país, responsáveis de forma direta pela prestação de serviços públicos. Em Porto Alegre, o tributo pode corresponder a até 47% da arrecadação com receita própria (18% da RCL). Se perderem essa fonte de receita, tanto capitais, como os municípios brasileiros em geral, que já sofrem com a falta de repasses por parte de estados em gravíssimas dificuldades financeiras, terão ainda mais prejuízos.

Apesar disso, as principais propostas de emenda constitucionais que tramitam no Congresso Nacional preveem a extinção desse tributo, com sua unificação com outros, a partir do texto da PEC 233/08.

As duas principais são a PEC 45/19, apresentada pelo deputado federal Baleia Rossi e a PEC 110/19, apresentada pelo Senado, as quais propõem alterações quanto à tributação do consumo. A primeira propõe substituir cinco tributos (IPI, PIS, Cofins, ICMS, ISS), e a segunda propõe substituir e unificar vários tributos (IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS, ISS).

Ambas as PECs criam impostos seletivos, criam o chamado IBS (imposto sobre bens e serviços) e centralizam na União.

O texto preliminar, de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly, na origem da proposta de reforma tributária, base para as demais, trouxe o Imposto sobre Serviços (ISS) incorporado a outro imposto a ser criado para os Estados, o chamado IVA (Imposto sobre Valor Agregado). Parte desse imposto seria repassado aos municípios, aumentando a dependência dos municípios em relação aos Estados e à União, portanto.

No caso dos municípios, haveria perda do ISS e nenhum imposto novo lhe caberia, ficando reduzida a sua competência impositiva aos dois impostos atuais:

I) Imposto predial e territorial urbana (IPTU); e

II) Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis por ato inter vivos e a título oneroso (ITBI) [1].

A PEC 110/19, absorveu e tem conteúdo idêntico ao substitutivo aprovado na Comissão Especial da PEC 293/2004 da Câmara dos Deputados em dezembro de 2018, tendo como relator o deputado Luiz Carlos Hauly, também com unificação de impostos e extinção do ISS.

Na PEC 45/19, que propõe a criação do IBS, Imposto sobre Bens e Serviços, no qual, no que diz respeito aos municípios, ficaria incorporado o ISSQN, o imposto criado seria gerenciado por uma autarquia nacional, composta por um comitê com representação paritária da União, Estados e municípios (como se dará essa representação paritária para os 5.570 municípios brasileiros com realidades totalmente díspares?), podendo cada ente fixar a sua alíquota, em linhas gerais. A competência para as demandas judiciais seria da Justiça Federal e a cobrança seria de competência da referida autarquia.

Igualmente a União segue sendo a centralizadora do imposto, não havendo competência para legislar e arrecadar por parte dos Estados e municípios, ou seja, há restrição da autonomia desses entes federados sem dúvida, o que fere cláusula pétrea.

O ente municipal, aquele que já tem as maiores demandas e obrigações constitucionais, que precisa atender diretamente a população com serviços públicos, que realiza audiências públicas para projeção da aplicação do orçamento, aquele que já tem o menor percentual proporcionalmente falando em relação aos repasses constitucionais e repartição do bolo tributário, será prejudicado, ainda que previsto o repasse do recolhimento de outros impostos pelos demais entes federados.

Ficará ainda mais refém de repasses e a autonomia federativa garantida pela Constituição simplesmente será desconsiderada, pois não existe autonomia administrativa sem a financeira.

Mais. Não deixará o contribuinte de pagar o imposto, mas sim pagará para outro ente da federação, quando reside na cidade e precisa da municipalidade na prestação de serviços básicos. A União, por sua vez, poderá aumentar a sua parte na repartição do bolo tributário. A carga tributária, portanto, em nada muda para o contribuinte.

E agora, finalmente, em 21 julho de 2020, foi apresentada parte da proposta de reforma tributária do governo federal ao Congresso Nacional pelo PL 3887/20, ou seja proposta infraconstitucional, a qual, nesse primeiro momento abrange unificação de PIS e Cofins, também com esse espírito de unificação e com a promessa de ampliar sua abrangência nos próximos meses para outros impostos. Institui para as pessoas jurídicas de Direito privado, contribuintes destinatárias, a CBS (Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços), com alíquota de 12%.

Portanto, fácil perceber que em todas as propostas há uma oneração do setor de serviços, sempre objeto das disposições. Não há uma única proposta que apresente caminhos para o crescimento do país.

Como se falar nesse momento em oneração do setor de serviços em meio a uma pandemia mundialmente assim declarada e que abalou esse setor sobremaneira? Seja no custo, seja na contratação de serviços por parte do poder público e empresas para combate ao coronavírus. Os municípios, por óbvio, também contratam, terceirizam serviços, pagam por serviços. Como analisar reformas que não discutem a mudança de paradigma na prestação de serviços que a própria pandemia trouxe e ainda trará? Estamos vivendo um outro momento em relação às necessidades da sociedade, em relação às necessidades de serviços, mudança de profissões.

Nenhum debate se faz acerca dessas importantíssimas questões e que mudarão o mundo para sempre. Aprovar reformas tributárias que preveem transição para os contribuintes de dez anos e para o ajuste financeiro de 50 anos parece até brincadeira nesse momento.

É evidente que tratar os municípios como dependentes dos Estados ou da União não atende aos comandos constitucionais e deve ser algo combatido veementemente.

Especialmente nesse momento, as municipalidades são as mais demandadas e estão na linha de frente da atuação e combate à pandemia. Retirar recursos é viável? Obviamente não.

Fica nítido, por exemplo, que a PEC 110 tenta salvar estados totalmente quebrados financeiramente em detrimento dos municípios. O risco ao contribuinte é maior ainda em função da possibilidade de aumento de percentuais a título de ISSQN, já que há uma intenção arrecadatória maior pelos Estados ante a crise já instalada.

Além disso, as municipalidades possuem estrutura técnica especializada e especialmente qualificada para a correta cobrança e tratamento do ISSQN, o que não acontecerá nos estados. Alguns textos referem a criação de uma supersecretaria para unificar as fiscalizações e a cobrança de todos os impostos. Mas como ficam os atuais concursados? E a remuneração será equiparada? Como municípios e estados já em crise financeira arcarão com salários unificados? Ou a União arcará com a remuneração de todos em unificação de cargos em carreira? Pontos que não estão, por ora, esclarecidos.

Ora, as finanças públicas municipais justamente foram se tornando combalidas ao longo dos anos em função da diminuição dos repasses da União e Estados, enquanto houve aumento de competências municipais em serviços e, se não fosse a arrecadação própria, pior ainda estariam.

Quase a totalidade dos serviços públicos essenciais aos cidadãos estão sob a responsabilidade dos municípios que assumiram competências de outros entes, como segurança pública (inclusive com as guardas municipais); serviços educacionais do Ensino Médio; saneamento público (inclusive com o uso das GAP galerias de águas pluviais para transporte de esgoto, permitindo a cobrança das tarifas das empresas estaduais); serviços de saúde de média e alta complexidade, entre outras centenas de ações administrativas, cujo detalhamento não cabe nos limites deste artigo. Não fosse a eficientização das prefeituras e, sobretudo, das melhorias na gestão fiscal dos impostos de arrecadação própria (ISSQN, IPTU e ITBI) nos últimos 15 anos, os municípios já teriam quebrado sistemicamente.

Por outro lado, não faz sentido, mesmo num viés puramente econômico de “custos de transação”, centralizar a arrecadação, fiscalização e gestão (criando novos órgãos, duplicando o sistema normativo nacional tributário etc), quando a arrecadação e os gastos públicos já devem ser realizados em nível mais próximo (município) ao destinatário das políticas públicas (o cidadão).

Não fosse isso o bastante para demonstrar a ameaça das propostas de reforma tributária à higidez da forma federativa enunciada pela Constituição de 1988, estudos recentes demonstram o impacto do aumento da carga tributária sobre os orçamentos municipais, onerando em mais de 15% os gastos orçamentários atuais (algo em torno de R$ 30 bilhões/ano) [2], uma vez que a prestação de serviços públicos exige a aquisição serviços outros como insumos ou se realiza por meio da terceirização das próprias atividades-fim.

E, como contribuintes de fato, os municípios não fazem jus à imunidade tributária recíproca no regime constitucional vigente, provocando transferência inversa de recursos para esferas regional ou central, infirmando o princípio federativo em suas dimensões financeira, tributária e fiscal [3].

O ISSQN é o imposto mais estável e de melhor performance fiscal dos últimos dez anos, segundo levantamentos realizados pela Frente Nacional de Prefeitos. As projeções das propostas apresentadas e que pretendem a extinção desse imposto com a unificação, não acompanham de forma alguma a projeção de seu crescimento. A perda financeira será imensa e essa perda será da sociedade! São os municípios que carregam a responsabilidade pela prestação da maior parte dos serviços públicos, como antes referido, e os recursos auferidos são os que dão conta da aplicação em políticas públicas, ou seja, devem reverter para a coletividade.

É preciso promover simplificação de forma viável, sem ferir a autonomia dos municípios e sem lhes retirar recursos nesse momento. Nesse sentido surge como alternativa o movimento Simplifica Já, que merece a devida atenção pela viabilidade apresentada, sem retirar a manutenção do ISS com as municipalidades, o que vem em benefício do cidadão, sem dúvida.

Precisamos pensar nas desonerações e propor mudanças que, de fato, garantam justiça tributária, transparência e, com isso, facilitem a informação pelo contribuinte e a correta recuperação de créditos pelo ente público, que deve ter condições, por seu corpo técnico, de efetivar mecanismos de transação, de negócios jurídicos processuais, de garantir gestão fiscal eficiente.

Urgente a defesa do fortalecimento e do investimento na arrecadação própria, enquanto não há revisão do pacto federativo, pois efetivamente há necessidade, talvez antes de uma reforma tributária que deveria prever justiça tributária e fiscal e a inviabilidade de sonegação no país, o que não parece ser o caso dessas reformas conduzidas pela União, de uma revisão do pacto federativo e de uma reforma política verdadeira e efetiva, que redimensione o tamanho do Estado, sem o que, reitera-se, não se vislumbram avanços, mas somente retrocessos [4].

Em um primeiro momento as reformas constitucionais podem parecer um ganho a municípios de pequeno porte que hoje não possuem estrutura para cobrar seus impostos, mas a dependência será cada vez maior. E aqui cabe a discussão, então, sobre a capacidade de existência de determinados municípios na federação brasileira, pois se não possuem estrutura própria para dar conta de suas atribuições e competências constitucionais, talvez não possuam condições sequer de existir enquanto ente autônomo. E esse debate precisa ser feito de forma responsável, para o bem do próprio país e continuidade do Estado lato sensu.

Definitivamente não é o momento para reformas constitucionais, muito menos reformas que retiram recursos e autonomia municipais, ou seja, violam o princípio federativo, colocando em risco a prestação de serviços. É imprescindível que a sociedade não sofra ainda mais com propostas que não privilegiam o cidadão comum e desconsideram a Constituição brasileira, deixando de simplificar, mas onerando ainda mais em um momento de crises sanitária e econômica jamais vistas.

 


[1] Harada, Kiyoshi. “Breves Comentários ao texto preliminar da reforma tributária”. Migalhas em https://www.migalhas.com.br/depeso/264677/breves-comentarios-ao-texto-preliminar-da-reforma-tributaria.

[2] ABRASF http://www.abrasf.org.br/arquivos/files/NT_CONJUNTA_DOC_ABRASF_ARACAJU.pdf. Nota Técnica Conjunta com a Secretaria de Fazenda de Aracajú/SE

[3] Da Silva, Ricardo Almeida, “Municípios e reforma tributária”, COLUNA DA ABDF, publicado em 4/11/2019.

[4] Nery, Cristiane da Costa. “Os Municípios e a reforma tributária”, publicado no jornal Zero Hora em 11/9/2017.

Autores

  • é procuradora municipal de Porto Alegre, no exercício da Procuradoria-Geral Adjunta de Assuntos Fiscais. Pós-graduada em Advocacia Municipal pela UFRGS. Mestre em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS (FMP-RS). Vice-diretora da Escola Superior de Direito Municipal-ESDM. Coordenadora científica da Revista Brasileira de Direito Municipal, periódico da Ed. Fórum.

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