Embargos culturais

Euclides da Cunha e o seringueiro encarcerado numa prisão sem muros

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

2 de agosto de 2020, 8h00

Spacca
Em 1904, depois de trabalhar por poucos meses na Comissão de Saneamento de Santos, Euclides da Cunha foi nomeado chefe de uma Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Atuaria na região fronteiriça entre Brasil e Peru. Euclides havia se demitido em Santos. Um fortíssimo espírito nômade o impulsionava para o interior. Creio que também estava de olho em uma nomeação no Itamaraty, definitiva. Euclides atendia a uma designação do Barão do Rio Branco, que chefiava o ministério e que poderia ajudá-lo. Em 28 de setembro de 1904, em carta a Domício da Gama (confrade de Euclides na Academia de Letras, diplomata muito influente junto ao Ministro) Euclides comunicava que já estava no Rio de Janeiro e que aguardava instruções para o início da missão para a qual fora designado. Queria partir.

Na presente intervenção ocupo-me de alguns ensaios amazônicos que Euclides elaborou, um dos aspectos menos conhecidos de sua obra, na opinião de um biógrafo falecido precocemente (Roberto Ventura). Ao contrário do que lemos na construção do cânone literário brasileiro, Euclides não é escritor de uma obra só (Os Sertões). Os textos de Euclides consubstanciam também uma obra esteticamente valida, no conceito enunciado por Antonio Candido, na medida em que, nas palavras do crítico, "além de incorporar uma função social adequada, realizando uma seleção adequada dos elementos da realidade, [a obra] alcança pelo menos um pouco da universalidade própria da função social".

Em "À Margem da História" há farto material sobre a experiência euclidiana na Amazônia, ainda que o escritor não tenha concluído o livro que tinha em mente sobre a região. Não há em seus estudos amazônicos o amplo espectro de assuntos que tratou nos Sertões. Euclides não se ocupou com o tema das origens do homem amazônico, com o paraíso imaginário na América (tema de um livro de Sérgio Buarque de Holanda), com os primeiros europeus que entraram na floresta (a exemplo de Francisco Orellana, Lope de Aguirre e Pedro Teixeira), ou mesmo com Antonio Vieira, ainda que tivesse lido a obra dos cronistas, dos viajantes e dos missionários.

A Amazônia interessou muitos estudiosos, como dado científico, como fato antropológico ou como um complexo problema civilizatório: William James, Charles Waterton, Johan Baptist von Spitz, Alfred Wallace, Jean Louis Agassiz, Jules Creveaux, e tantos outros. Estou convencido, no entanto, que o interesse é sobremodo econômico e político. A presença de Euclides, insisto, confirma essa premissa. É o que explica a conclusão à qual chegou, com referência à ocupação da região.

Ainda que arguto observador dos arranjos políticos e institucionais Euclides não tratou das missões religiosas e das subdivisões territoriais que funcionavam como capitanias, de titularidade particular (Caetê, Cametá, Marajó, Cumã) ou do próprio rei (Pará, Maranhão e Piauí). Euclides era um engenheiro que também construía pontes, e que além disso concebia pontes culturais e etnográficas entre o litoral e o interior. Até o Santo Ofício esteve no Pará. Há um filme dirigido por Hector Babenco, "Brincando nos campos do senhor" (1991) que trata do missionário religioso na Amazônia, e que se insere no problema aqui mencionado. Ainda que preocupadíssimo com a religiosidade que envolvia os sertanejos da Bahia, Euclides talvez não viveu tempo suficiente para enfrentar essa questão na região amazônica.

Euclides da Cunha pensava o Brasil. Trata-se de uma função que a literatura exerceu com certa exclusividade até os anos 1930, quando a ensaística tomou a frente essa tarefa. Eram os literatos explicadores do Brasil, antes do aparecimento dos cientistas sociais. A passagem de Euclides da Cunha pelo Amazonas foi tumultuada. Conta-se que houve um naufrágio com a embarcação que levava mantimentos. A equipe chegou faminta e esfarrapada na região que seria estudada.

O tema das viagens é recorrente em Euclides da Cunha. Para uma especialista na obra euclidiana (Walnice Nogueira Galvão), "o tema [da viagem], para ele, tem o cunho de um outro mito, o mito da busca da autenticidade na aventura viril". A estudiosa mencionada o aproxima de Joseph Conrad e de Lawrence da Arábia, a quem eu acrescentaria, por outras razões, ainda que bem entendido sem a mesma autoridade, Richard Francis Burton e Ernest Hemingway.

Há quatro pontos que aqui interessam. O que Euclides foi fazer na região (o que pode explicar algumas conclusões que registrou), a descrição do seringueiro e de seu trabalho (um sertanejo que trabalhava para escravizar-se, como observou), a denúncia do modo como o Acre fora parcialmente povoado, a par, principalmente, de suas impressões sobre a Amazônia. Livro fundamental para alguns assuntos até hoje muito importantes. Nesses aspectos, relativos à Amazônia, a vida de Euclides da Cunha se aproxima, mais uma vez, da vida do Marechal Rondon. Foram amigos na Escola Militar, que juntos frequentaram. Dividiram interesse pela floresta e por seus habitantes. Há recente biografia de Rondon, de autoria de Larry Rother, que trata desses encontros.

Euclides chefiou uma Missão do Itamaraty que objetivava conferir os contornos cartográficos da região, no contexto da fixação dos limites entre Brasil e Peru. Seguiu em missão oficial. Creio que não se pode perder de mira que havia interesse de Euclides no sentido de permanecer no Ministério, de forma definitiva. Mais tarde será convidado para uma comissão que trabalharia na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que não aceitou, ao que consta por influência de seu pai.

Em missão oficial Euclides opinou pela necessidade da presença brasileira na região, o que fixou mais um precedente nas concepções conceituais relativas à ocupação da Amazônia. Tem-se a impressão de que as opiniões de Euclides ecoavam a doutrina da “uti possidetis”, da ocupação como forma de garantia de domínio, que remontava ao direito romano e que fora invocada por Alexandre de Gusmão por ocasião do tratado de Madrid, em 1750, quando expandimos a linha de Tordesilhas. O nativo, sabemos, foi quem mais sofreu.

Euclides, por outro lado, não deixou de denunciar a situação do seringueiro. Afirmou que o seringueiro realizava uma tremenda anomalia: era um homem que trabalhava para escravizar-se. Quando partia para a Amazônia já saía devedor de uma dívida que jamais pagaria, e que objetivamente marcava uma situação de escravidão. Era devedor da passagem que o conduziria a Belém, bem como da outra embarcação que o conduziria até a mata. Era também devedor dos utensílios que era obrigado a adquirir: bacia, tigelinhas, machados de ferro, uma carabina, munição, dois pratos, duas colheres, duas xícaras, duas panelas, uma cafeteira, carreteis de linha, agulhas.

Chegando na mata entrava na primeira fase do trabalho: era definido como um "brabo", quer dizer, ainda não havia aprendido o ofício de cortar a madeira para extrair o látex. Chegando no acampamento endividava-se com víveres: farinha d’água, feijão, sal, arroz, charque, café, açúcar, banha, fumo e quinino (essencial no tratamento da malária e da febre). Euclides observa que a dívida sempre aumentaria, ainda que o sertanejo lá chegasse em condições favoráveis (solteiro, em maio — quando começava o corte —, que não adoecesse, que fosse sóbrio, tenaz e que nada mais consumisse além do que adquiriu). Na expressão de Euclides, o sertanejo que estava na Amazônia era "um estoico firmemente lançado no caminho da fortuna".

Assim que aprendia o ofício o seringueiro tornava-se "manso". Descobria o peso dos regulamentos do seringal. Pagaria multas pesadíssimas se cortasse a árvore em gomo de tamanho inferior ao gume do machado, se levantasse o tampo da madeira na ocasião de ser cortada, se sangrasse com a machadinha áreas maiores do que palmos. Pagaria, 50 % do valor da mercadoria adquirida em outro estabelecimento que não o do dono do seringal. Se abandonasse o local, perderia todas as benfeitorias feitas no acampamento. Ameaçado pelas mais violentas penas, não poderia deixar o seringal sem liquidar suas obrigações.

Euclides também denunciou a forma como o Acre foi povoado. Conta que nas épocas das grandes secas as populações do interior se refugiavam nas grandes cidades nordestinas. Eram recolhidos e despejados na vastíssima Amazônia, sem nenhuma forma de apoio ou incentivo. Para Euclides, o sertanejo que ocupava o Acre era uma vítima do êxito em massa de populações flageladas. Poucos sobreviviam. Observou que os cardíacos perdiam a tensão arterial, que alcóolatras eram candidatos contumazes à todas as endemias, que linfáticos eram colhidos pela anemia, e que sofriam muito os glutões, indolentes, coléricos e neurastênicos. Era um abandono total. Segundo Euclides, "sobretudo isto, o abandono (…) o seringueiro é, obrigatoriamente, profissionalmente, um solitário". Estava "encarcerado numa prisão sem muros".

As primeiras impressões que Euclides registrou sobre a Amazônia eram pessimistas e negativas. Afirmou que o Amazonas real é muito inferior a uma "imagem subjetiva, há longo prefigurada". Uma imensidão desoladora: "o observador cede às fadigas de monotonia inaturável e sente que o seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem-fins daqueles horizontes vazios e indefinidos como os dos mares". Para Euclides o homem era um intruso na Amazônia, "chegou sem ser esperado e sem ser querido". A região lhe comunicava uma "impressão paleozoica", uma função destruidora, uma "imigração telúrica", na qual a "terra abandona o homem".

De acordo com Euclides, o Amazonas que desafia lirismo patriótico; é o menos brasileiro dos rios, "(…) um estranho adversário, entregue dia e noite à faina de solapar a sua própria terra". De tal modo, "são as margens que evitam o rio". Rio e história se confundem: revoltos, desordenados, incompletos. Uma natureza soberana e brutal: um adversário do homem, ainda que aquele mundo selvagem tenha sempre o dom de impressionar a civilização distante.

Euclides, insista-se, não é autor de uma obra só. Os ensaios amazônicos revelam que persistimos encalacrados com problemas que se arrastam no tempo. Somos prisioneiros de alguma indecisão para com alternativas viáveis para a efetiva integração nacional. Euclides, de algum modo, denunciou a falácia de uma mera ofensiva exploratória. Na próxima intervenção cuidarei das cartas desse importante escritor. Fechando a série, em duas semanas, o apavorante processo judicial que dá conta de sua morte prematura.

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