Opinião

O modelo do duplo controle: constitucionalidade e convencionalidade

Autor

1 de agosto de 2020, 15h12

É dever de todo magistrado, ao interpretar uma lei, verificar se essa norma está em consonância não apenas com a Constituição Federal, mas também com os tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, de modo a proferir decisões judiciais devidamente fundamentadas, nos termos do artigo 93, IX, da Carta Magna c/c artigo 489, inciso II e §2º, CPC, artigo 832/CLT e artigo 2º do Código Ética da Magistratura.

A propósito, a própria Constituição da República, em seu artigo 5º, parágrafo segundo, é enfática ao estabelecer que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (grifo do autor).

Portanto, no exercício da sua atividade jurisdicional, o juiz deve, necessariamente, antes de adentrar no exame dos fatos, fazer os seguintes controles prévios: a) controle de constitucionalidade; e (b) controle de convencionalidade.

No controle de constitucionalidade, o magistrado deve verificar se a norma aplicável ao caso concreto é compatível com a Constituição da República, a pedra angular do ordenamento jurídico e pressuposto de validade para todas as demais leis. Nenhuma norma inferior pode contrariar a Carta Magna. Por sua vez, no controle de convencionalidade, o magistrado deve analisar se a norma incidente é compatível com os tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, os quais, embora se situem abaixo da Constituição (quando não aprovados pelo rito da Emenda Constitucional — artigo 5º, §3º, CF), estão acima da lei ordinária — "supralegalidade" reconhecida no julgamento da Súmula Vinculante 25/STF.

Trata-se de um raciocínio bifásico, no qual o juiz, primeiro, examina a norma em si e depois, caso ela seja válida (ou compatível), aplica a regra jurídica abstrata no julgamento do caso concreto. Cuida-se, portanto, de um duplo controle de compatibilidade vertical (constitucional e convencional), como bem leciona Luiz Flávio Gomes:

"Assim, toda lei ordinária, doravante, para ser válida, deve (então) contar com dupla compatibilidade vertical material, ou seja, deve ser compatível com a Constituição brasileira bem como com os tratados de direitos humanos em vigor no país. Se a lei (de baixo) entrar em conflito (isto é: se for antagônica) com qualquer norma de valor superior (Constituição ou tratados) ela não vale (não conta com eficácia prática). A norma superior irradia uma espécie de 'eficácia paralisante' da norma inferior (como diria o ministro Gilmar Mendes). Duplo controle de verticalidade: do ponto de vista jurídico a consequência natural do que acaba de ser exposto é que devemos distinguir com toda clareza o controle de constitucionalidade do controle de convencionalidade das leis. No primeiro é analisada a compatibilidade do texto legal com a Constituição. No segundo o que se valora é a compatibilidade do texto legal com os tratados de direitos humanos. Todas as vezes que a lei atritar com os tratados mais favoráveis ou com a Constituição, ela não vale" [1].

I) O primeiro controle — o controle difuso de constitucionalidade
O controle difuso de constitucionalidade surgiu nos Estados Unidos, em 1803, quando do célebre julgamento do caso William Marbury versus James Madison, no qual o juiz John Marshall afirmou a supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico, fixando-se, pioneiramente, a tese fundamental de que, mesmo no sistema da Common Law, os atos normativos em geral não podem ser editados em desconformidade com o disposto na Carta Magna. Assentou-se, naquele caso, que cabe ao Poder Judiciário decidir quando e em que medida determinado ato viola a Constituição.

No Brasil, sob a nítida influência do sistema constitucional norte-americano, a Constituição republicana de 1891 inaugura o sistema de controle de constitucionalidade difuso ou incidental, típico do sistema do Common Law, da jurisdição universal (judicial review), que também havia influenciado outros países latino-americanos, como o México de 1847 e a Argentina de 1860. De forma ainda mais expressa, nosso ordenamento jurídico passou a admitir o controle difuso de constitucionalidade desde a Lei nº 221 de 1894, que reconheceu a possibilidade do juiz ordinário deixar de aplicar um diploma quando da constatação de sua inconstitucionalidade (artigo 13, §10, a).

O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição de 1988 passou a estabelecer que "a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", indo além do que constava nas Constituições anteriores, que se limitavam a dizer que: "A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual". Agora, não precisa nem ser lesão. Basta que seja ameaça. E, doravante, a cláusula da inafastabilidade da jurisdição (que inclui o controle de constitucionalidade) não protege apenas o "direito individual", mas também os direitos coletivos e os direitos difusos (vide, por exemplo, o contraste com o artigo 141, §4º, da Constituição de 1946 e o artigo 150, §4º, da CF/1967).

Em seu livro de Direito Constitucional, o ministro Alexandre de Moraes salienta que: "Também conhecido como controle por via de exceção ou defesa, caracteriza-se pela permissão a todo e qualquer juiz ou tribunal realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade do ordenamento jurídico com a Constituição Federal. (…). A cláusula de reserva de plenário não veda a possibilidade de o juiz monocrático declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, mas, sim, determina uma regra especial aos tribunais para garantia de maior segurança jurídica" [2].

II) O segundo controle — o controle de convencionalidade
A expressão controle de convencionalidade foi adotada, pela primeira vez, no âmbito internacional, no julgamento proferido pelo Conselho Constitucional da França, na Decisão 74-54 DC, de 15 de janeiro 1975, que tratava do conflito entre uma lei nacional sobre a interrupção voluntária da gravidez e o artigo 2º da Convenção Europeia de Direitos do Homem, ratificada pelo Estado francês. Ocorre que o artigo 55 da Constituição Francesa afirma que os tratados e os acordos internacionais ratificados pelo parlamento têm, a partir da sua publicação, hierarquia superior às leis ordinárias. Nesse julgamento histórico, o Conselho Constitucional da França declarou que o exame da adequação das leis ordinárias deveria passar, necessariamente, por um duplo controle de compatibilidade vertical: o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade, ressaltando que este último encontra fundamento normativo no artigo 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (um país não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o descumprimento de um tratado que foi por ele assinado e ratificado).

Na Europa, depois desse precedente, o controle de convencionalidade passou a ser a regra em quase todas as Cortes Constitucionais, como podemos constatar, por amostragem, no julgamento do Tribunal Constitucional da Áustria (Verfassungsgerichtshof Österreich — VfGH) em caso no qual imigrantes chineses recorriam contra decisões do Tribunal de Asilo com base no artigo 47 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (caso Beschwerden gegen Entscheidungen des Asylgerichtshofes — Rol U 466/11-18; U 1836/11-13). A Corte Constitucional austríaca entendeu que os direitos fundamentais garantidos pela Carta da União Europeia deveriam ser considerados, no âmbito interno, como se fossem cláusulas integrantes da própria Constituição, observando que nenhuma lei nacional poderia contrariar os princípios assegurados na norma comunitária. Em síntese, o Verfassungsgerichtshof considera que os direitos protegidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia têm o mesmo valor dos direitos previstos na Constituição austríaca — posição até mais contundente do que a adotada no Brasil, onde a Convenção Americana de Direitos Humanos (pacto de San José da Costa Rica) é considerada acima das leis ordinárias, mas abaixo da Constituição [3].

Na América Latina, o precedente paradigma é a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2001, sobre o controle de convencionalidade no polêmico Caso Olmedo Bustos y otros versus Chile, que tratava da censura ao filme "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese [4]. Em seguida, diversas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos reiteraram que o Poder Judiciário de cada Estado signatário do Pacto de São José da Costa Rica (CADH) tem o dever de fazer o controle de convencionalidade das normas jurídicas internas aplicadas aos casos concretos, merecendo especial destaque o Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs República Federativa do Brasil (2016), sobre trabalho forçado e servidão por dívidas [5], e o Caso Vladimir Herzog vs. Brasil (2018), sobre tortura e morte durante o regime militar e a controversa Lei da Anistia — 6.683/79 [6].

No Brasil, o controle de convencionalidade já está devidamente incorporado à jurisprudência do nosso Supremo Tribunal Federal, como se constata no julgamento que levou à edição da Súmula Vinculante Nº 25/STF, no qual o Pretório Excelso se baseou no artigo 7º, item 7, do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos) para afastar a prisão do depósito infiel: "É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar".

Porém, o Controle de Convencionalidade no STF é anterior à Súmula Vinculante nº 25/STF e vem sendo adotado em diversos outros casos relevantes, como, por exemplo, na ADI 5240/SP (relator ministro Luiz Fux), que versava sobre a obrigatoriedade de apresentação do preso em flagrante na audiência de custódia, com base no artigo 7º, item 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, e no AI 448.572-ED/SP, no qual ficou consagrado o entendimento de que, com base no artigo VI da Convenção 103 da OIT (amparo à maternidade), "a empregada gestante tem direito subjetivo à estabilidade provisória prevista no artigo 10, II, 'b', do ADCT/88, bastando, para efeito de acesso a essa inderrogável garantia social de índole constitucional, a confirmação objetiva do estado fisiológico de gravidez, independentemente, quanto a este, de sua prévia comunicação ao empregador, revelando-se irrita, de outro lado e sob tal aspecto, a exigência de notificação à empresa, mesmo quando pactuada em sede de negociação coletiva".

Não bastasse a reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o controle de convencionalidade, no Judiciário brasileiro, além de ter expressa previsão constitucional (artigo 5o, §2o, CF), também encontra ressonância, em uma interpretação sistemática, nos seguintes preceitos, que constituem uma base normativa transversal:

a) Artigo 98 do Código Tributário Nacional: "Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha";

b) Artigo 13 do Código de Processo Civil: "A jurisdição civil será regida pelas normas processuais brasileiras, ressalvadas as disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte";

c) Artigo 382 do Decreto 3.048/99: "Os tratados, convenções e outros acordos internacionais de que Estado estrangeiro ou organismo internacional e o Brasil sejam partes, e que versem sobre matéria previdenciária, serão interpretados como lei especial (Incluído pelo Decreto nº 3.265, de 1999)".

Salienta Luiz Guilherme MARINONI que "no atual sistema normativo brasileiro, os tratados que possuem status normativo supralegal apenas abrem oportunidade ao controle difuso. O exercício do controle de convencionalidade é um dever do juiz nacional, podendo ser feito a requerimento da parte ou mesmo de ofício " [7].

III) A cláusula de reserva de plenário — a Súmula Vinculante 10/STF
Observo, por fim, que, do ponto de vista prático, há uma distinção fundamental entre esses dois controles, diferença esta que constitui o principal argumento para que o juiz examine a ambos de forma simultânea e independente, mesmo que já tenha afastado uma norma por considerá-la inconstitucional: é que, ao contrário do que ocorre no controle de constitucionalidade, que exige, em segundo grau, o voto da maioria absoluta do órgão especial ou do Tribunal Pleno (artigo 97/CF e Súmula Vinculante nº 10/STF), o controle de convencionalidade não está sujeito à cláusula de reserva de plenário.

Significa dizer que, ao contrário do que sucede com o controle difuso de constitucionalidade, os tribunais não estarão limitados pela chamada "cláusula de reserva de plenário", prevista no artigo 97 da Constituição, podendo reconhecer que uma norma é inaplicável por contrariar um tratado ou uma convenção internacional sobre direitos humanos [8], mesmo que não se atinja o quorum de maioria absoluta de seus membros, conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça, por meio do Recurso Especial 1.640.084, ao afastar o crime de desacato com base no artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos [9].

Por conseguinte, defendemos que, no exercício da jurisdição, o juiz tem o dever de fazer, concomitantemente, o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade, sem prejuízo da observância das decisões vinculantes de tribunais superiores.

 

[1] GOMES, Luiz Flávio, citado por MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 15

[2] MORAES Alexandre de. Direito Constitucional. 15ª ed. , São Paulo: Atlas, 2004, p. 608 – 614.

[3] http://www.europeanrights.eu/index.php?lang=eng&funzione=S&op=2&id=2726 – acesso 24/7/2020.

[4] https://www.corteidh.or.cr/cf/Jurisprudencia2/ficha_tecnica.cfm?nId_Ficha=263&lang=es – em 24/7/2020.

[5] www.itamaraty.gov.br/images/Banco_de_imagens/Sentenca_Fazenda_Brasil_Verde.pdf – em 24/7/2020.

[6] http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/sci/dados-da-atuacao/corte-idh – em 24/7/2020

[7] MARINONI, Luiz Guilherme Marinoni, MAZZUOLI, Valério de Oliveira – Controle de convencionalidade: um panorama latino-americano:[ et al. ];1a. Edição . – Brasília, DF : Gazeta Jurídica, 2013, p. 66.

[8] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria Geral do Controle de Convencionalidade no Direito brasileiro. 2009, p. 335.

[9] STJ – REsp: 1640084 SP 2016/0032106-0, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, 5a T – DJe 1/2/2017.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!