Opinião

Violência contra a mulher: ineficácia da lei e falta de comprometimento do Executivo

Autor

  • Mayra Vieira Dias

    é advogada sócia do escritório Calazans e Vieira Dias líder local do Projeto Justiceiras e idealizadora do Instagram @advogadacomproposito.

1 de agosto de 2020, 6h05

Fique em casa! Essa frase tem sido repetidamente anunciada desde o início da pandemia, mas pouquíssimas pessoas conseguem imaginar o que essa determinação, visando à contingência da disseminação do coronavírus, tem acarretado na vida de milhares de mulheres não só brasileiras, mas de todas as nacionalidades.

A violência doméstica ocorre desde o início da história e a cultura machista é, sem dúvidas, a grande causa do desacerto humano nesse ponto. Durante a Idade Média, a discriminação contra a mulher foi a mais cruel, mulheres eram queimadas sendo acusadas de bruxaria, quando na verdade eram nada mais que mulheres tentando ocupar espaço e respeito na sociedade. Naquela época, para cada dez bruxas queimadas na fogueira da Inquisição, um bruxo era queimado.

Ponto mais recente na linha do tempo demonstra que, com a criação do Código Civil de 1916, foi instituído que a mulher deveria ter autorização do marido para trabalhar, com o objetivo de proteger a família.

A mulher durante toda a história, com exceção de algumas civilizações, era reconhecida como propriedade do homem. Atualmente muitos homens ainda com ideias retrógradas têm esse entendimento, impedindo o desenvolvimento intelectual, a independência financeira e a liberdade da mulher, violando muitas vezes direitos fundamentais garantidos a todo ser humano, como a igualdade, a liberdade e a vida.

Com o isolamento social devido à pandemia da Covid-19, o número de casos de violência doméstica denunciados aumentou consideravelmente. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) esse aumento foi de 50% se comparado ao mesmo período do ano passado e os casos de feminicídio no Brasil cresceram 22,2% entre março e abril deste ano, em 12 Estados do país, comparativamente ao ano passado.

Esse considerável aumento se deve às condições enfrentadas devido à pandemia. A instabilidade emocional — devido à redução da capacidade financeira gerada pelo aumento do desemprego; o aumento excessivo do consumo de álcool e de outras drogas pelos agressores; a permanência constante no mesmo ambiente que a vítima; bem como a vulnerabilidade desta quando afastada da família e do seu núcleo social devido ao isolamento são fatores potencializantes à agressividade e o poder de controle sobre a vítima.

Por conta disso, vários projetos e ações foram desenvolvidos visando a proteção da mulher em tempos de pandemia. O Projeto Justiceiras, idealizado pela promotora de Justiça Gabriela Manssur, desenvolvido com a união dos esforços do Instituto Justiça de Saia, do Instituto Nelson Willians e do Instituto Bem Querer Mulher, como também a Campanha Sinal Vermelho, desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça, são exemplos do engajamento da sociedade em defesa da mulher vitima de violência doméstica.

O Poder legislativo também tem se esforçado de forma desmesurada para aumentar a proteção da mulher. Exemplo disso é a Lei 14.022, de 7 de julho de 2020, que alterou a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

A referida lei garante a não suspensão de prazos processuais relacionados à violência doméstica, o registro de boletim de ocorrência online ou por telefone de emergência e a adoção de medidas necessárias para atendimento presencial.

Quanto à adoção de medidas necessárias para o atendimento presencial, a Lei 14.022/2020 enfatiza a obrigatoriedade em alguns crimes previstos no Código Penal, como feminicídio (inciso VI do §2º do artigo 121), lesão corporal (artigo 129), ameaça praticada com arma de fogo (artigo 147), estupro (artigo 213, caput, e §§1º, 2º, 3º e 4º do artigo 217-A), entre outros. Assim também nos crimes previstos na Lei Maria da Penha, como o descumprimento de medidas protetivas de urgência (artigo 24-A), além do Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso, tudo conforme o parágrafo 2º do artigo 3º da referida lei.

Nos caso de crimes de violência sexual, a Lei 14.022/2020 garante a realização prioritária do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva violência doméstica e familiar e violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência, possibilitando ainda exame de corpo de delito no local em que se encontrar a vítima, se houver a adoção de medidas pelo poder público que restrinjam a circulação de pessoas.

A alteração da Lei 13.979/2020 pela Lei 14.022/2020 foi de extrema necessidade, para assegurar maior proteção às mulheres, mas de nada adianta a lei se o sistema não funciona. Ainda nos dias atuais, existem casos de mulheres que sofreram violência e na delegacia foram aconselhadas a não fazer o boletim de ocorrência, ou quando fizeram o boletim de ocorrência foram obrigadas a voltar para a casa onde se encontra o agressor porque sua cidade não dispõe de abrigo para seu acolhimento. Além disso, em centenas de municípios faltam delegacias especializadas, e quando têm, não existem funcionários suficientes e preparados para dar conta da demanda.

O problema da violência contra a mulher vai muito além da lavratura do boletim de ocorrência e da obtenção da medida protetiva, e por isso é importantíssimo o olhar do poder público para as deficiências existentes no sistema, desde o atendimento à vítima até a implantação de locais de acolhimento com a estrita vigilância do correto funcionamento desses lugares, incluindo atendimento humanizado e eficiente.

O combate à violência contra a mulher é uma causa urgente que deve ser abraçada por toda a sociedade, exigindo maior envolvimento do Poder Executivo na busca da devida aplicação das leis que disciplinam o tema, pois somente quando as diretrizes da legislação forem atendidas e implementadas com efetividade nas diversas estruturas de atendimento da rede de proteção à mulher teremos a esperança de reverter esse atual cenário alarmante e devastador que nos faz perder milhares de mulheres por ano vítimas de violência de gênero.

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