Diário de Classe

O insustentável peso do mercado financeiro em sua relação com o Estado

Autor

  • André Del Negri

    é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) doutor em Direito Processual pela PUC Minas mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

1 de agosto de 2020, 8h01

Um aluno pergunta ao professor: "O que é o mercado? Como funciona?…". Eis a questão.

Em 1984, o escritor tcheco Milan Kundera escreveu "A Insustentável Leveza do Ser", um dos 200 livros que é preciso ler na vida [1]. A dúvida posta pelo autor explora a intrincada relação entre leveza e peso. E se tudo possui o seu instantâneo oposto (feio/bonito, quente/frio, alto/baixo, leve/pesado), como limite, o livro aponta uma diretriz positiva e outra negativa. A questão é saber, entre leveza e peso, qual dos dois é o eixo tido como positivo.

Leitura literária à parte, a pergunta que precisa ser discutida hoje é: que tipo de relação perniciosa pode existir entre mercado e Estado?

Ao lidar com o capital financeirizado, pode-se dizer que a externalidade positiva está na difusão do desenvolvimentismo, liberdades, produção. Ao mesmo tempo, é fundamental pensar sobre esse tema pelo lado oposto — o mais pesado dos fardos —, na lógica do mercado avassalar, também e sobretudo, os direitos fundamentais já acertados na Constituição, assunto que vem colado às restrições da qualidade de vida (vida humana digna) e o desmoronamento de políticas públicas de inclusão social. À vista disso, torna-se difícil sustentar o peso (tonelagem) do mercado financeiro e a sua busca delinquente por lucro.

É que, no imaginário popular, "o mercado" convergiu para a alegoria (mito) de um touro que está situado nas proximidades de Wall Street, em Nova York. A escultura de 3,5 toneladas denota o "peso" — o vigor — do mercado financeiro norte-americano. E o touro se transformou num símbolo de poder quase infinito.

No rol das ilusões, existe ainda a tentativa de psicologizar o mercado por meio de expressões como "o mercado diz", "o mercado quer", "o mercado deseja". Para sair dessa abstração, sejamos claros: "o mercado" não é um ser psicológico. A contranarrativa é que "o mercado" atende por forças arranjadas pelo próprio homem. O ponto é que há um seleto grupo financeiro que conduz essa superestrutura e que pensa nos próprios cofres.

Claro que isso desvela uma rotina que rege o jogo da governabilidade, dado que a linha que separa o Estado do mercado é bastante fina, mesmo porque a dependência do Estado, quanto ao grande capital, é um episódio do capitalismo.

Como a globalização dá suas voltas, a rede do capital interconectado é muito volátil e viaja de país em país — de mercado em mercado —, procurando uma situação de maior lucratividade. E, claro, nessa competição, a lógica de cassino força os investidores a voltar-e-sair, aqui e ali, o tempo todo.

A questão é que os "donos do dinheiro", que estão no comando do mercado financeiro, gostam de cativar os "donos do poder". Sofrivelmente, há riscos de os planos plurianuais, que orientam as políticas públicas, sofrerem a pessoalidade de lobbies, ponto-pivô para crises estruturais que assolam vários países.

Em matéria de relações promíscuas, vê-se até mesmo que grandes players do capitalismo financeiro ativam os seus representantes no Congresso Nacional, que os recebem com aberta simpatia.

É uma particularidade que, por questões estratégicas, possibilita o Estado ser sequestrado e transformado em servente do mercado financeiro global. E aí, negócios, negócios, democracia à parte.

Os ideólogos do liberalismo durante décadas disseram que sociedades capitalistas avançadas teriam de ser abertas. O material de propaganda da agenda ultraliberal é conhecido. São políticas apresentadas de acordo com as receitas dos bancos internacionais, tudo costurado pelo fio de reformas ditas "imprescindíveis" para aumentar a "produtividade" e a "competitividade" do país. A questão é saber se, com esses "ajustes", os investimentos estrangeiros retornam ao país.

Aliás, notem que, enquanto a economia derrete em alguns países, a decepção do povo aumenta. Reparem que as reformas liberalizantes podem levar à perda de direitos trabalhistas e renda, empreitada de um custo social e humano extraordinariamente grandes pelo conjunto da obra.

É pouco? No terreno do debate econômico há países, na América Latina, que enfrentam a questão da supervalorização da moeda norte-americana em detrimento da desvalorização da moeda nacional. A ilustração pode ser simplificada, mas carrega um ponto objetivo: o dólar sobe porque os capitais especulativos investidos no país começam a sair numa velocidade surpreendente para outra praça de investimento considerada mais lucrativa ou mais segura. E, como o dinheiro de especulação não permite desenvolvimento nacional, a imagem de crescimento "duradouro" é fictícia.

É aí que se abre reflexão para a questão de crise cambial. Isto é: as reservas cambiais, que são as riquezas geradas pela comunidade e coletada em nome de todos, passam a ser carcomidas para manter o câmbio relativamente baixo, momento em que os defensores do Estado mínimo simplesmente desaparecem e passam a defender um Estado forte.

Perceptível que essa desvalorização cambial gera um custo alto para a população. E por quê? Ora, porque alude a uma atividade improdutiva. O motivo é simples. Trata-se de um gasto que não gera desenvolvimento social.

Nessa derrocada, o mirabolante é que "o mercado" insiste em criar narrativas para dizer que o Estado é corrupto e ineficiente — o gestor das mazelas sociais —, de modo que ele ("o mercado"), aparece na vida das pessoas como se o capital financeiro não tivesse nenhuma relação com os problemas [2].

Nesse enodoamento, "o mercado" conduz o Estado a editar leis porque possibilita o avanço de negócios. Claramente os players desejam as previdências e pensões dos países latino-americanos e pouco se importam com os ataques ao meio ambiente, tampouco com o aniquilamento dos povos indígenas para facilitar a mineração ilegal [3]. É essa corda que se quer colocar no pescoço de populações inteiras.

E assim, curiosamente, o Estado está sempre pronto a se adaptar ao jogo tal como ele lhe é apresentado. Consequentemente, o Estado vira lugar de manejo, fica poroso, ausente pela atuação dessa bomba de sucção devastadora. Enquanto a população é vilipendiada, com registro de miserabilidade insuportável, fundos internacionais engordam os seus portfólios a céu aberto.

A divagação feita é para que se observe bem que a soberania, nesse quadro geral, se ela existe, é de maneira contraída, pois nexo causal de toda uma conjuntura costurada, que secundariza a ordem econômica e social de Constituições voltadas à inclusão do outro, bem como a sua fonte legítima de poder, que é o povo, em nome da ciranda do mercado financeiro.


[1] KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Círculo do Livro S. A., 1984.

[2] VAROUFAKIS, Yanis. O minotauro global. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2016.

[3] SOUZA, Jessé. A guerra contra o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2020, p. 188.

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    é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), doutor em Direito Processual pela PUC Minas e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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