Opinião

Judicialização da saúde, poder público e serviços privados

Autores

  • Júlia Scartezini

    é sócia do escritório Malta Advogados membro da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Distrito Federal aluna especial do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB) coordenadora do blog "Imobiliário em Foco" e membro do grupo de estudos "Constitucionalismo Fraternal" sob a orientação do ministro Carlos Ayres Britto.

  • Alberto Malta

    é sócio-fundador do escritório Malta Advogados professor de Direito Imobiliário da Universidade de Brasília (UnB) presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Distrito Federal mestre em Direito Estado e Constituição com ênfase em Direito Imobiliário Registral pela UnB pós-graduado do programa de Master in Business Administration em Gestão de Negócios de Incorporação Imobiliária e Construção Civil pela Fundação Getulio Vargas (MBA/FGV) pós-graduado em Direito Imobiliário pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e árbitro da Câmara Brasileira de Arbitragem na Administração Pública (Cambraap).

30 de abril de 2020, 20h23

Na atual conjuntura nacional, os tribunais têm sido cada vez mais demandados para solucionar litígios. Consequentemente, o Poder Judiciário tem se fortalecido institucionalmente, dirimindo controvérsias emblemáticas que envolvem temáticas de suma importância. Na prática, verificamos a judicialização da vida em geral, tanto sob a ótica quantitativa quanto qualitativa.

A judicialização decorre da própria evolução da sociedade, que, muitas vezes, acontece mais celeremente do que a edição de novas normas para regular condutas. Nesses casos, as partes acabam por acionar o Poder Judiciário para que esse se posicione sobre a pretensão resistida e solucione o litígio perpetrado no caso concreto, que pode não ter sido contemplado pelos Poderes Executivo e/ou Legislativo.

A judicialização quantitativa é percebida ao analisar o número crescente de ações judiciais em curso. De acordo com o ministro Luís Roberto Barroso [1], esse fato revela diversas circunstâncias favoráveis e desfavoráveis. Entre essas, cita-se a conscientização progressiva da sociedade civil e a confiança que essa deposita nas instituições, como forma de buscar justiça. Por outro lado, a judicialização também pressupõe um conflito, que se traduz, na maioria das vezes, no reiterado inadimplemento dos deveres e obrigações.

Ainda de acordo com o ministro, é possível vislumbrar a judicialização qualitativa por meio da utilização do Poder Judiciário para discutir temas extremamente relevantes, como questões políticas, econômicas, sociais e éticas, de repercussão nacional, que provocam indubitáveis efeitos na vida da sociedade civil.

Entre os assuntos que vêm sendo constantemente levados às cortes, temos a judicialização da saúde. Isso porque, com a consolidação do Estado Democrático de Direito, houve a superveniência de um cenário no qual a Constituição Federal é o elemento central, acompanhada da proeminência judicial.

Desse modo, a saúde foi enaltecida como direito fundamental tutelado pela Constituição Federal e inserida na seara dos direitos sociais. Nesse sentido, a Carta Magna reconhece a coletividade como titular do direito à saúde e o Estado como responsável por garanti-lo e efetivá-lo, mediante a implementação de políticas públicas que objetivem promover o acesso universal e igualitário a ações e serviços para reduzir o risco de doença.

Ocorre que, na prática, visualizamos a superlotação da rede pública de saúde, que, por diversas vezes, carece de vagas em suas dependências para atender devidamente à população. Desse modo, o interessado acaba por acionar o Poder Judiciário para dirimir a controvérsia.

Nesse passo, quando a demanda possui os requisitos para o deferimento e, de fato, a rede pública não possui vaga para atender o autor da ação judicial, surge o questionamento: como proceder?

Ora, no caso hipotético explanado, o direito à saúde já foi reconhecido e o Estado não fica desobrigado a efetivá-lo somente por não dispor de vaga para atender à decisão judicial.

Desse modo, o Poder Judiciário pode determinar o atendimento e o tratamento do autor da demanda em hospital particular, sendo que as despesas deverão ser arcadas pelo ente público.

No entanto, surge o questionamento se os valores que o Estado deve pagar a título de serviços médicos que, por ordem judicial, foram prestados pela unidade hospitalar privada devem sofrer a limitação da tabela do SUS. Isso porque a instituição privada não firmou qualquer contrato ou convênio com o ente federativo, o que provoca uma nova judicialização do conflito. Nessa senda, o recurso extraordinário que tramita no Supremo Tribunal Federal, sob repercussão geral, discute a temática registrada sob o n.° 1033.

No caso em comento, o Estado defende que lhe impor o pagamento dos serviços médicos com base no preço arbitrado pelo hospital privado violaria os artigos 5°, caput, 196 e 199, §1°, da CF, visto que a Constituição dispõe que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde (SUS) mediante contrato de direito público ou convênio. Ocorre que, nas instituições privadas conveniadas ou contratadas pelo Estado, o reembolso de despesas médicas é efetuado de acordo com a tabela do SUS, e não com base nos valores de mercado.

Desse modo, na ação judicial em comento, o Estado defende que pagar a uma instituição privada que presta serviço ao Estado preço diferente do que geralmente é pago para a mesma atividade viola, frontalmente, o princípio da isonomia. Além disso, aduz que a Lei Maior prevê um regime específico de contratação e remuneração da rede complementar de saúde.

A discussão acerca do pagamento de serviços de saúde prestados por ordem judicial, em razão de anterior frustração de atendimento na rede pública, é de extrema relevância, sobretudo no cenário atual da pandemia provocada pela Covid-19, em que todo o sistema de saúde está sendo acometido por uma sobrecarga extraordinária.

Nesse sentido, ganham ressonância os princípios da ordem econômica, da livre iniciativa e da propriedade privada. É incontroverso que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, como consagrado pela Lei Maior. Desse modo, há entendimento de que vincular o ressarcimento a valores e critérios previamente determinados pelo SUS a uma instituição privada, que foi obrigada a suprir uma falha de atendimento do Poder Público, mitiga a livre iniciativa em violação à garantia da propriedade privada.

Embora ainda não tenha sido apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, o tema é de extrema relevância e a corte reconheceu a evidente repercussão geral da questão constitucional sob os pontos de vista econômico, político, social e jurídico.

 


[1] BARROSO, Luís Roberto. A judicialização da vida. Belo Horizonte Fórum conhecimento jurídico, 2018.

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    é estagiária no escritório Malta Advogados, bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e membro do grupo de estudos "Constitucionalismo Fraternal", sob a orientação do ministro Carlos Ayres Britto.

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    é sócio-fundador do escritório Malta Advogados, professor de Direito Imobiliário da Universidade de Brasília (UnB) e secretário-geral da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB.

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