Opinião

A pandemia de Covid-19 e o Direito Penal

Autor

  • Orlando Faccini Neto

    é juiz de Direito do TJ-RS titular da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre ex-juiz auxiliar do STJ membro do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa e professor do mestrado no IDP-Brasília.

30 de abril de 2020, 15h54

1. Estamos vivendo um tempo completamente inusitado. Há, em curso, uma pandemia e praticamente todos nós estamos experimentando um período de reclusão difícil. Os sentimentos se apresentam de uma maneira completamente distinta daquela que normalmente acontece, na medida em que estamos oprimidos por uma realidade que nunca vivenciamos. Somam-se ao medo, o tédio, a angústia, na medida em que a nossa própria liberdade de trânsito é, com amplas justificativas, comprimida.

Numa situação complexa como essa, é importante discutir algumas questões jurídicas, mormente no campo do Direito Penal. Isto porque há alguns tipos penais que sobressaem, que tem sua incidência, por assim dizer, mais pertinentes a esse momento, e, além disso, há corolários em termos de dogmática, ou de teoria do Direito Penal, que se revelam importantes. De maneira que a ideia deste texto é tratar das figuras típicas correlacionadas com esse momento.

2. De início, porém, realizarei uma abordagem geral, e, depois, pretenderei ir especificando os termos dessa discussão, para, finalmente, ingressar na temática mais particular dos tipos penais que se poderiam revelar numa situação de pandemia.

A primeira vertente dessa abordagem mais ampliada revela o seguinte: que neste período de pandemia, pelo menos três categorias do Direito Penal, muitas vezes rechaçadas por alguma doutrina, adquirem novo significado e mostram a importância que têm.

A primeira delas alude à temática dos bens jurídicos coletivos.

Sabemos que a trajetória da teoria do bem jurídico começa no século 19, com a perspectiva de que o bem jurídico haveria de ser considerado em termos de lesões aos interesses das pessoas. Isto tinha uma dimensão importante, já era uma espécie de densificação teórica do conceito, mas não respondia, sobretudo, a um questionamento pertinente àquela época, e que dizia respeito aos crimes contra os sentimentos religiosos. Muito em função disso, a evolução da ideia de bem jurídico passou a abarcar as lesões coletivas e, até o presente, vimos assistindo a uma espécie de reforço muito consistente na temática da criminalização de condutas que afrontem interesses não individualizáveis. Os exemplos são vários, como o meio ambiente, o sistema financeiro, o patrimônio público, para ficar apenas nisso.

Quando se vive um período como este, de pandemia, aqueles que são críticos à criminalização de condutas que violam interesses coletivos têm o ônus de explicar de que maneira se poderia cuidar desse tipo de situação. Há autores muito relevantes que defendem a ideia de que o Direito Penal deveria seguir aferrado ao seu chamado padrão clássico, ou seja, aquele Direito Penal cuja tutela estivesse concentrada na propriedade, no patrimônio, e, consequentemente, que aludisse exclusivamente à proteção dos interesses individuais. Se essa é uma visão aparentemente elitista, na medida em que retira do Direito Penal exatamente aquelas condutas praticadas pelas classes sociais mais abastadas, e relega o Direito Penal unicamente para que tenha sua incidência naqueles casos de delitos praticados pelas pessoas mais pobres, além disso, a verdade é que, quando se fala de proteção da saúde pública, ou seja, da incidência criminal na proteção deste interesse coletivo, máxime em tempos de pandemia, efetivamente estamos a reconhecer a importância dessa categoria, qual seja, a dos bens jurídicos coletivos.

De maneira que quem recusa a ideia dos bens jurídicos coletivos acaba deixando a saúde pública e, consequentemente, os interesses mais expressivos das pessoas, desprotegidos numa situação como essa.

A segunda categoria que é resgatada, neste momento de pandemia, é a dos chamados crimes de perigo. Tais crimes, como cediço, são alvo de diversos ataques doutrinários, no sentido da sua ilegitimidade, porquanto o Direito Penal haveria de incidir somente quando houvesse dano, ou seja, resultado lesivo ao bem jurídico. A questão, entretanto, é que vivemos numa época em que a dimensão do risco, ou seja, da probabilidade de dano, é significativamente importante, e, muitas vezes, evitável. Atualmente, é possível prevermos situações que, em ocorrendo, terão uma gravidade brutal, de consequências tremendas. Quando isso sucede, é natural que se antecipe a tutela penal, de modo que, antes mesmo de que a lesão ocorra, e com o desiderato de inibi-la, o Direito Penal já atua para tutelar e proteger o bem jurídico.

A terceira categoria que se afigura importante neste quadro é a das chamadas normas penais em branco. Não é necessário ingressar em sua classificação, que alguma doutrina realiza, sobre serem as normas penais em branco lato sensu ou stricto sensu. A nomenclatura não se revela importante, pois o certo é que as normas penais em branco, que são aquelas cujo conteúdo carece de complemento e, sobretudo, cujo conteúdo carece de um complemento não legislativo, mormente em termos de atos administrativos, afeiçoam-se com o princípio da legalidade, visto que o conteúdo da proibição já vem expresso pela lei. Sucede que determinadas situações carecem de uma espécie de velocidade normativa que o parlamento não é capaz de dar, seja no sentido do preenchimento do conteúdo, seja no sentido de alterações que, eventualmente, se afigurem necessárias. Quer dizer, os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo, por seus diversos órgãos, como o Ministério da Saúde, têm a possibilidade de regular muito mais adequadamente os meios de combate e os efeitos da pandemia.

Para além disso, embora não seja exatamente um tópico de Direito Penal, parece importante referir que o momento atual também nos faz pensar a respeito do chamado confronto entre o interesse público e o interesse particular. O Direito Constitucional e o Direito Administrativo de outrora consagraram a parêmia cediça da preponderância do interesse público sobre o interesse particular, mas, como se sabe, isso foi sendo alterado ao longo do tempo, principalmente por algumas decisões judiciais. A situação que vivenciamos mostra, contudo, que a Carta Constitucional não é formada somente de direitos, visto que também estabelece deveres. Isso significa que o interesse público, sobretudo em situações dramáticas de crise, fala mais alto do que o interesse particular, e, portanto, devemos nos submeter às variadas determinações que, no fim das contas, têm muito menos um sentido paternalista, de proteger o indivíduo de si próprio, e mais de proteger a coletividade. Noutras palavras, isso quer dizer que quando somos tolhidos da possibilidade de sair às ruas do modo como fazíamos há alguns meses, isto não é, exclusivamente, para garantir que não nos contaminemos, mas, sim, para evitar que nos tornemos um vetor de contaminação de outras pessoas, em especial daquelas pessoas mais frágeis e situadas em grupos de risco. Ou seja, busca-se evitar que nos tornemos uma "fonte de perigo", uma espécie de bomba relógio, e que vai levar o vírus e as suas consequências a uma infinidade de outros indivíduos.

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Autores

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    é juiz de Direito, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e professor no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul.

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