Direito em pós-graduação

A responsabilidade civil do médico durante a pandemia

Autor

  • Filipe Antônio Marchi Levada

    é doutorando e mestre em Direito Civil pela USP; bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; juiz de Direito do Estado de São Paulo; membro Colaborador da Fundação Carlos Chagas.

30 de abril de 2020, 8h00

ConJur
Em regra, a responsabilidade civil é subjetiva, demandando, para além de ação ou omissão, dano e nexo de causalidade, a comprovação do elemento culpa.

Ação constitui o comportamento comissivo. Por exemplo, a prescrição de um remédio, a realização de uma cirurgia ou o diagnóstico de uma doença. Omissão é a ausência do comportamento exigível. Por exemplo, a não-prescrição do remédio necessário, a não-realização de uma cirurgia ou a ausência de diagnóstico de uma doença.

Dano é a ofensa a bem juridicamente tutelado. Por exemplo, o dano ao patrimônio, à vida ou à integridade física. Podem ser materiais, morais ou estéticos.

Materiais são os danos ao patrimônio. São os danos mensuráveis em pecúnia. Subdividem-se em emergentes e lucros cessantes. Danos emergentes são aqueles que emergem diretamente do fato. São o prejuízo econômico imediato. Por exemplo, no caso de um acidente automobilístico envolvendo um táxi, os danos emergentes são os estragos na lataria. Lucros cessantes são aquilo que, em razão do fato, a vítima razoavelmente deixou de lucrar. Por exemplo, os dias que o taxista não pôde trabalhar em razão do acidente.

Morais são os danos aos direitos da personalidade – direitos inerentes à pessoa humana, como vida, integridade física, honra e nome. São direitos não mensuráveis em pecúnia, mas que, uma vez violados, ensejam uma compensação financeira. Por exemplo, a debilidade de um membro, pela ofensa à integridade física. Embora não tenha preço, a debilidade poderá ensejar uma compensação por parte de quem a causou.

Estéticos são os danos à imagem física da pessoa. São um plus em relação aos danos morais. Constituem o sentimento de repulsa que a perda da estética causa no tecido da sociedade. Por exemplo, o paciente que tenha o rosto queimado por um ácido terá não somente um dano à integridade física, mas também uma (indevida) repulsa dos pares pela má-aparência. Tais quais os danos morais, embora não mensuráveis em pecúnia, podem ensejar compensação financeira.

Um mesmo fato pode causar os três tipos de danos. Imagine-se, por exemplo, uma modelo fotográfica que tenha os olhos perfurados durante uma cirurgia para correção de miopia. Sofrerá danos materiais, em suas duas modalidades: danos emergentes, pela perda dos contratos já celebrados; lucros cessantes, pelos contratos que deixará de firmar. Danos morais, pela ofensa à integridade física, pela dor e sensação de vergonha. Danos estéticos, pela repulsa social com a qual terá de conviver pelo resto de seus dias.

Nexo de causalidade é a relação de causa e efeitos entre dano e ação/omissão. É a ligação que existe entre a conduta e o dano. Há nexo sempre que a ação/omissão tiver sido causa para o resultado danoso.

Culpa é a inobservância de dever de cuidado exigido do homem médio. Pode se dar nas modalidades dolo ou culpa stricto sensu.

O dolo se subdivide em direto e eventual. Dolo direto é a vontade livre e consciente de causar o dano. Por exemplo, o sujeito que, por vingança, lança seu carro sobre o inimigo. Dolo eventual é a assunção do risco de produzir o resultado sem preocupação de se o evitar. Embora não haja vontade de causar o dano, o sujeito age sem se importar com sua eventual ocorrência. É o “dar de ombros” para os riscos de uma determinada ação. Por exemplo, o não-médico que realiza intervenção cirúrgica assumindo o risco e sem se importar de matar o paciente.

A culpa stricto sensu se caracteriza nos casos de negligência, imprudência e imperícia. Negligência é a inobservância de um cuidado que poderia evitar o dano. É a culpa por omissão. Por exemplo, o sujeito que deixa de trocar os pneus antes de iniciar a viagem. Imprudência é o “lançar-se ao perigo”. É a culpa por ação. Por exemplo, o motorista que viaja em altíssima velocidade em via mal sinalizada. Imperícia é o desconhecimento de técnica, ofício ou profissão. Por exemplo, o cirurgião cardíaco que realiza intervenções estéticas sem ter o devido preparo para tanto. Negligência, imprudência e imperícia podem coexistir. Por exemplo, um taxista que não saiba dirigir direito, dirigindo veículo com os pneus carecas a 140 quilômetros por hora.

Por vezes, a culpa stricto sensu se aproxima do dolo eventual. Isto se dá nos casos em que o sujeito assume o risco do comportamento mas acreditando sinceramente que, por sua especial habilidade, não deixará que ele venha a ocorrer.

A responsabilidade civil do médico está tratada no artigo 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor. De acordo com referido dispositivo, “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”. No entanto, diferenciam-se as obrigações médicas de meio das de resultado.

Nas obrigações de meio, o médico se responsabiliza pelos meios empregados – pela correta aplicação da técnica, levando-se em conta o estágio de evolução da ciência. Ou seja, obriga-se a ser diligente, prudente e perito, empregando o melhor trabalho possível. Daí porque, nas obrigações de meio, a responsabilidade é subjetiva, só existindo quando comprovada a existência do elemento culpa – tal qual dispõe o artigo 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor.

Por exemplo, o médico que realiza uma cirurgia para retirada de tumor responsabiliza-se por empregar a melhor técnica médica (perícia), tomando todos os cuidados requeridos neste tipo de intervenção (diligência) e não submetendo o paciente a riscos desnecessários (prudência). Contudo, não terá responsabilidade se houver falecimento apesar de todos os seus esforços.

Por outro lado, nas obrigações de resultado, o profissional se responsabiliza pelo resultado prometido. Tem a obrigação de atingir o resultado independentemente da qualidade do trabalho. Ou seja, sua responsabilidade existirá mesmo que tenha sido diligente, prudente e perito. Daí porque, nas obrigações de resultado, a responsabilidade é objetiva, não dependendo da comprovação do elemento culpa.

Por exemplo, o médico que realiza uma cirurgia plástica para fins estéticos, prometendo um resultado determinado, obriga-se a atingir o fim prometido tal como acordado com o paciente. Se não obtiver o resultado proposto, terá responsabilidade mesmo que prove diligência, prudência e perícia. A responsabilidade, neste caso, existirá independentemente de culpa.

Em regra, a responsabilidade do médico é uma responsabilidade de meio. O médico, em princípio, só responde em caso de culpa. Em regra, sua responsabilidade é subjetiva. Contudo, excepcionalmente, por uma questão contratual, o médico responde pelo resultado prometido independentemente de culpa. Como exceção, a responsabilidade do profissional passa a ser objetiva.

O que distingue uma obrigação como de meio ou de resultado é o compromisso assumido pelo profissional – se o emprego cuidadoso da técnica ou o resultado a qualquer custo, independentemente da técnica adotada. Não há como estabelecer aprioristicamente se uma obrigação é de meio ou de resultado. Por exemplo, se o médico informa ao paciente que, após cirurgia, seu nariz ficará deste ou daquele jeito, está a garantir o resultado, respondendo objetivamente em caso de dano; se, por outro lado, afirma que fará de tudo para chegar àquele nariz, mas que não promete se o conseguirá, está a garantir o emprego da técnica, respondendo subjetivamente. Uma mesma obrigação poderá ser de meio ou de resultado, dependendo do que houver sido estipulado pelas partes.

A natureza da obrigação – se de meio ou de resultado – deve ser provada no caso concreto. Por sua vez, o ônus desta prova variará de acordo com o tipo de serviço.

Em geral, na grande maioria dos serviços, os médicos se responsabilizam pelo meio medicina, não pelo resultado cura. Assim, em regra, cabe ao paciente provar que obrigação é de resultado. Por outro lado, é da natureza de alguns serviços médicos o atingimento do resultado. Na cirurgia estética, por exemplo, o paciente espera e o médico normalmente promete o resultado pretendido. Em casos tais, cabe ao profissional provar que a obrigação é de meio, demonstrando que não prometeu resultado nenhum.

Tem-se, assim, que, em regra, a obrigação médica se presume de meio, mas podendo o paciente provar que o resultado foi prometido; excepcionalmente, nos casos em que o resultado é normalmente esperado, a obrigação se presume de resultado, mas podendo o médico provar que garantiu apenas os meios.

Por sua vez, em hipóteses extremas, para além da natureza “de meio”, presume-se também a inexistência de nexo de causalidade. Em situações que tais, o médico é obrigado a adotar escolhas trágicas, ditadas não por seu querer mas pela conjuntura que lhe foi imposta.

Em um momento de pandemia, não é difícil supor que um médico se veja compelido a deixar morrer uma pessoa a fim de poder salvar outra, com melhores perspectivas de cura. Neste caso, não se poderá dizer, propriamente, que a morte decorreu de ato seu; terá se dado pela conjuntura caótica, que não lhe permitia agir de maneira diversa. Tinha o médico que agir desta determinada maneira para evitar um mal ainda pior.

Note-se, contudo, que, neste caso, não se estará diante apenas do que dispõe o artigo 188, inciso II, do Código Civil (“Não constituem atos ilícitos (…) a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente”). Assim o fosse, por disposição do artigo 929 do Código Civil (“Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram”), o lesado teria direito de indenização contra o médico. Ao que dispõe o artigo 930 do Código Civil (“No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado”), ao médico caberia apenas ação de regresso contra o causador do dano – por exemplo, contra o Poder Público, caso tenha contribuído, ainda que por omissão, para a situação de caos. Tal não se dá, porque, ao agir para evitar o dano, o médico não somente “remove perigo iminente” mas age em “exercício regular de direito reconhecido”, prevista no artigo 188, inciso I, do Código Civil (“Não constituem atos ilícitos (…) os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido”).

Mas a situação vai além. Poderá inexistir nexo de causalidade, na situação de pandemia, por se estar diante de força maior, que, na dicção do artigo 393, parágrafo único, do Código Civil, se caracteriza pelo “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Tal excludente, neste momento extremo, será presumida de maneira muito forte, cabendo não ao médico – mas ao lesado – a prova cabal de que a força maior não ocorreu – em exceção ao que dispõe o artigo 333, inciso II, do Código de Processo Civil (“O ônus da prova incumbe (…) ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”).

Conclui-se, assim, que, no cenário atual, de pandemia, presume-se de meio a obrigação do médico, assim como a existência – em seu favor – de causas excludentes de nexo, garantindo-se ampla liberdade para que exerça seu mister em prol de uma sociedade abalada por doença que só ele pode combater.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).

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    é doutorando e mestre em Direito Civil pela USP; bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; juiz de Direito do Estado de São Paulo; membro Colaborador da Fundação Carlos Chagas.

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