Direito Civil Atual

A pandemia e o tempo: impactos da Covid na prescrição, decadência e usucapião

Autores

  • Abrahan Lincoln Dorea Silva

    é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco) com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • Isabela Maria Pereira Lopes

    é mestranda na Faculdade de Direito da USP graduada na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e integrante da Rede de Direito Civil Contemporâneo (USP Universidade Humboldt-Berlim Universidade de Coimbra Universidade de Lisboa Universidade do Porto Universidade de Roma II-Tor Vergata Universidade de Girona UFMG UFPR UFRGS UFSC UFPE UFF UFC UFMT UFBA e UFRJ).

30 de abril de 2020, 12h28

O tempo tem um impacto relevante nas relações jurídicas, o que se reflete em institutos como a prescrição, a decadência e a usucapião. A crise gerada pela Pandemia do Covid-19 gerou necessidade de elaboração de uma legislação provisória, a qual foi coordenada uma equipe de juristas brasileiros de grande porte, e viabilizados por meio da sensibilidade jurídica e percepção do momento social pelo Senador Antonio Anastasia.

Trata-se do Projeto de Lei nº 1.179/2020, que cria o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19), que, com a finalidade de dar segurança jurídica para as relações de direito privado, dispôs sobre o fluxo de prazos prescricionais e decadenciais no art. 3º, com a seguinte redação:

“Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência desta Lei até 30 de outubro de 2020.

§ 1° Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional.

§ 2° Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 do Código Civil”.

Como se nota, os dispositivos afetam, dentro do tema da prescrição, à interrupção, suspensão e impedimento dos prazos prescricionais. Resgatando esses conceitos, tem-se que a interrupção se dá quando ocorre um fato que pode destruir o efeito do tempo já decorrido, anulando-se a prescrição iniciada1, ao passo que a suspensão é a paralisação do prazo prescricional, enquanto o impedimento decorre de um fato obstativo do início do prazo, ou seja, o prazo nem se iniciará2.

Há uma certa identidade entre o impedimento e a suspensão, pois ambas têm o mesmo efeito (paralisação do prazo). Contudo, a suspensão ocorrerá quando o prazo já tiver iniciado, já o impedimento se configura quando o prazo ainda começou a correr3. Nesse sentido, se há suspensão, o prazo voltará de onde parou, ao passo que cessado o impedimento terá início a contagem do prazo prescricional.

Por outro lado, os efeitos da interrupção são muito distintos. A interrupção envolve a contagem de novo prazo4.Como uma anulação da prescrição já iniciada, se há interrupção, o prazo volta ao início no momento da retomada da sua contagem. Assim, se há prazo de 10 anos e se passaram 9 anos, havendo interrupção da prescrição, volta-se a contar o prazo em 10 anos.

Vê-se que a reforma, conforme caput do art. 3º, só estabeleceu uma nova e temporária causa de impedimento e suspensão, ou seja, estagnou-se o corrimento dos prazos prescricionais em razão do novo coronavírus.

O §1º do dispositivo faz menção à não aplicabilidade da suspensão ou impedimento quando existirem hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais. O que isso significa?

Entende-se que o §1º evidencia o caráter subsidiário do dispositivo legal em questão, pois a suspensão ou impedimento dos prazos prescricionais em razão da pandemia de Covid-19, prevista no caput, só ocorrerá se tais prazos já não estiverem interrompidos, suspensos ou impedidos por força das outras hipóteses previstas no Código Civil. Portanto, as regras já existentes sobre impedimento, suspensão e interrupção do prazo de prescrição terão primazia sobre a regra caput, que não cria hipóteses concorrentes de impedimento e suspensão, tampouco uma nova hipótese de interrupção do prazo prescricional, mas apenas uma hipótese subsidiária e transitória de suspensão ou impedimento de tais prazos.

Outrossim, o §2º do art. 3º prevê a aplicação dos efeitos do caput do artigo, que são voltados para a prescrição, aos prazos de decadência. Embora o dispositivo considere a ressalva do art. 207 do Código Civil, o qual estabelece que, salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as regras que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição, cabe indagar: em quais circunstâncias se aplicariam as causas do caput do art. 3º à decadência? Qual o efeito do §2 do art. 3º nos casos de decadência?

A distinção entre prescrição e decadência, que tanto ocupou a doutrina dos séculos passados, pode ser estabelecida com base na categoria de direito (se direito subjetivo ou direito potestativo), conforme estudo clássico de Agnelo Amorim Filho, de título “Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis", publicado originalmente na Revista dos Tribunais n. 300/7, em 1960, e resgatado na Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 343-375. Nele, o referido autor defende que a prescrição é a perda de uma pretensão, isto é, do direito à uma prestação jurídica. Portanto, a prescrição estará sempre relacionada com um direito subjetivo, que na obra de Giuseppe Chiovenda são os únicos que dão direito a uma prestação.

A segunda categoria corresponde a dos direitos potestativos, que são poderes conferidos pela lei a alguns indivíduos, e são exercidos através da mera declaração de vontade deles, e, portanto, capazes de sujeitar o outro aos seus efeitos5. A decadência, então, seria a extinção do direito potestativo, que, em certos casos, existe apenas durante o prazo legal previsto para seu exercício.

Com fundamento na classificação dos direitos e das ações de Chiovenda, Agnelo Amorim explicou porque entendia-se que a prescrição extingue a ação, que é o meio de exercício da pretensão, enquanto a decadência extingue o direito, pois há certos direitos potestativos cuja existência acarreta intranquilidade social e, por isso, sua existência é limitada pela lei. Além disso, relacionou as categorias de direito subjetivo e direito potestativo, com as ações condenatórias e constitutivas, respectivamente, explicitando que a primeira busca na autoridade judicial a força coercitiva para obrigar alguém a fazer ou não fazer algo, de modo que as ações condenatórias estariam relacionadas à proteção dos direitos subjetivos violados. Por outro lado, as ações constitutivas visam a criação, modificação ou extinção de um estado jurídico, de modo que ao réu será imposta uma sujeição, evidenciando a relação entre tais ações e o exercício de direitos potestativos6.

A regra da não cessação de prazos de decadência já foi critério de distinção entre ela e a prescrição, inclusive considerando o interesse social do direito potestativo, o que tornava inconcebível pensar na suspensão ou interrupção dos prazos decadenciais7.

Assim, entende-se o porquê de a regra da inexorabilidade dos prazos decadenciais ter engendrado, no Código Civil de 2002, uma pequena abertura para exceções, prevista no art. 207. Porém, de forma pioneira, o §2º do art. 26 do Código de Defesa do Consumidor já previa o impedimento e suspensão de decurso dos prazos decadenciais para reclamação do consumidor por vícios aparentes em serviços e produtos duráveis e não duráveis. Além disso, a disciplina da decadência na parte geral, em seu art. 208, é explícita ao estender a suspensão ou impedimento à decadência nos casos de incapacidade absoluta (art. 198, I, CC)

Por fim, cabe uma análise concomitante dos arts. 3º (prescrição e decadência) e 10º (Da usucapião) do Projeto de Lei.

Assim dispõe o art. 10º do PL:

“Art. 10. Suspendem-se os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, a partir da vigência desta Lei até 30 de outubro de 2020”.

A prescrição e a usucapião, por anos, foram percebidos como institutos irmãos. Tanto que tinham denominação de prescrição aquisitiva (usucapião) e prescrição extintiva ou liberatória (prescrição)8. Por terem o tempo como fundamento relevante, os conceitos foram confundidos por muito tempo, entretanto o atual Código Civil não permite que se pense em prescrição aquisitiva, liberatória ou extintiva, havendo forte distinção conceitual, inclusive pelo locus da disciplina, de forma que a usucapião está disciplinada na parte especial, no direito das coisas, enquanto a prescrição está concentrada na parte geral.

O objetivo do art. 10º do Projeto de Lei foi o de estabelecer com clareza a suspensão dos prazos de usucapião, dando maior segurança jurídica.

A breve análise feita dos dispositivos 3º e 10º do PL 1.179/2020, permite concluir que a iniciativa alterou, provisoriamente, institutos milenares e fundamentais do Direito Privado, porém o fez de forma precisa e pontual, sem comprometer a lógica relacionada a tais institutos. Com efeito, mesmo que provisórias, mudanças legislativas devem ser feitas com responsabilidade. A previsão de uma hipótese subsidiária de suspensão e impedimento de prazos decadenciais, prescricionais e de usucapião na atual conjuntura, nos termos do PL, é uma feliz oportunidade de fazer uma mudança apropriada em um momento difícil.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ)


1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil: teoria geral de direito civil. 23.ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. p. 598

2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil: teoria geral de direito civil. p. 596

3 NAVES, Nilson Vital. Prescrição e decadência no Direito Civil. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, [S.l.], n. 4, p. 164-187, fev. 2014. ISSN 1984-1841. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/395/367>. Acesso em: 15 abr. 2020, p. 180

4 NAVES, Nilson Vital. Prescrição e decadência no Direito Civil. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, [S.l.], n. 4, p. 164-187, fev. 2014. ISSN 1984-1841. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/395/367>. Acesso em: 15 abr. 2020,p. 182

5 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, ano 3, abr.-jun. 2016,p. 343-375, p.346-347

6 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, ano 3, abr.-jun. 2016,p. 343-375,p.152

7 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Parte Geral. 34.ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 229-330

8 NAVES, Nilson Vital. Prescrição e decadência no Direito Civil. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, [S.l.], n. 4, p. 164-187, fev. 2014. ISSN 1984-1841. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/395/367>. Acesso em: 15 abr. 2020,p. 167-168

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    é graduado em Direito pela Faculdade de Direito da USP; pesquisador financiado pela Fapesp; advogado Associado ao PHA Advocacia; e integrante da Rede de Direito Civil Contemporâneo (USP, Un. Humboldt-Berlim, Un. de Coimbra, Un. de Lisboa, Un. do Porto, Un. de Roma II-Tor Vergata, Un. de Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ).

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    é mestranda na Faculdade de Direito da USP; graduada na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais; e integrante da Rede de Direito Civil Contemporâneo (USP, Un. Humboldt-Berlim, Un. de Coimbra, Un. de Lisboa, Un. do Porto, Un. de Roma II-Tor Vergata, Un. de Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ).

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