Opinião

Audiências e julgamentos por videoconferência

Autor

  • Roberto Parahyba de Arruda Pinto

    é ex-presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de SP conselheiro da Aasp (Associação dos Advogados de São Paulo) especialista em advocacia preventiva e judicial e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de Salamanca (ESP).

30 de abril de 2020, 16h04

No último dia 20, o Conselho Nacional da Justiça editou a Resolução nº 314, que "prorroga  medidas de prevenção ao contágio pelo novo coronavírus”, assim como “modifica as regras de suspensão dos prazos processuais”, “e dá outras providência”, tratando das mesmíssimas matérias regulamentadas pelo “ATO CONJUNTO CSJT.GP, CGJT Nº 5”, três dias antes publicado, em 17.04.2020. Diante da compatibilidade entre os conteúdos dos dois atos administrativos, pode-se dizer que o Ato Conjunto CSJT. GP, CGJT nº 5 não foi revogado, mas recepcionado, pela Resolução 314 do CNJ.

É louvável, merecedora de encômios a atitude proativa adotada pelo Poder Judiciário, com um todo, de ininterrupção da prestação de serviços judiciários, “CONSIDERANDO a natureza essencial da atividade jurisdicional e a necessidade de se assegurarem condições para sua continuidade, compatibilizando-a com a preservação da saúde de magistrados, agentes públicos, advogados e usuários em geral” (considerando da RESOLUÇÃO Nº 314 do CNJ).

A primeira questão acerca da Resolução 314 do CNJ que merece exame diz respeito à possibilidade de realização de audiências trabalhistas inclusive una e de instrução entreaberta em seu artigo 6º, § 3º, assim redigido:

“As audiências em primeiro grau de jurisdição por meio de videoconferência devem considerar as dificuldades de intimação de partes e testemunhas, realizando-se esses atos somente quando for possível a participação, vedada a atribuição de responsabilidade aos advogados e procuradores em providenciarem o comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade fora de prédios oficiais do Poder Judiciário para participação em atos virtuais.”

As dificuldades percucientemente apontadas no dispositivo acima transcrito para a participação das partes e testemunhas se farão presentes com maior intensidade no âmbito da Justiça do Trabalho, considerando-se o perfil socioeconômico de seus jurisdicionados, especialmente o dos trabalhadores.  O que, por si só, recomenda a não realização de audiências instrutórias durante o período (espero curto) sobejante do isolamento social, medida mundialmente consagrada como a melhor no enfrentamento da pandemia do coronavírus.

No mais das vezes, o trabalhador ingressa com a ação trabalhista somente após a ruptura do seu contrato de trabalho, pleiteando verbas daí decorrentes, diante do fundado temor de ser dispensado caso ingresse com ação no curso do contrato (diante da falta da promulgação da lei complementar de proteção contra a despedida arbitrária a que se refere o inciso I, do art. 7º, da Constituição Federal, como também pela denúncia, pelo Brasil, à ratificação da Convenção 158 da OIT). Tanto é que a Justiça do Trabalho é conhecida como a “Justiça dos desempregados”.

Ademais, a expressiva maioria dos trabalhadores brasileiros percebem salários em valores pouco superiores ao do salário mínimo. No primeiro trimestre de 2019, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgou que o rendimento médio mensal do trabalhador brasileiro corresponde a R$ 2.259.

Portanto, a maioria dos que batem às portas da Justiça do Trabalho não integra o perfil socioeconômico dos usuários regulares da internet. O principal acesso à internet pela população brasileira, revelado por pesquisa estatística, se dá por aparelho celular, muitas vezes adquirido pelo sistema pré-pago, nem sempre creditado.

Nesse contexto, a realização de audiência una e de instrução trabalhista — admitida apenas para argumentar — atenta contra o principal desiderato da Resolução 314 do CNJ, sintetizado no ATO CONJUNTO n. 5: “a necessidade de manutenção de isolamento social para reduzir a possibilidade de contágio da Covid-19”.

A participação remota de testemunhas em audiência de instrução, além das partes e advogados, implica na inobservância do isolamento social. Sinaliza o agrupamento presencial, despontando o escritório do advogado da parte como o local mais provável, com o acesso por meio de transporte público. Em suma, expõe as partes, testemunhas e advogados ao maior risco de contágio da Covid-19.

É comum o objeto do processo do trabalho envolver questões de ordem fática, em pedidos múltiplos com causas de pedir heterogêneas (horas extras, equiparação salarial, verbas rescisórias, etc.), que demandam dilação probatória, tanto prova documental, como oral, notadamente depoimentos pessoais das partes e oitivas de testemunhas, ou seja, a realização de audiências instrutórias.

A audiência de instrução reveste-se de vital importância no processo do trabalho que sobrevaloriza o princípio da oralidade, do qual deriva os princípios da concentração dos atos processuais, irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, imediatidade física do juiz, que formam um todo orgânico e interdependente.

A audiência trabalhista é regida pelo chamado “princípio da primazia da realidade sobre a forma”. Ao processo do trabalho importa o que efetivamente ocorreu no mundo da vida, nem sempre coincidente com o representado por documentos, mais ou menos solenes.

Como é sabido, as pessoas (partes e testemunhas) não se expressam apenas pelas palavras, como também pelo corpo – expressão corporal, facial, gestual, olhar, tom de voz…, despontando a importância igualmente vital da interação humana na audiência instrutória.

Quiçá, pelas razões por último mencionadas que o art. 334, parágrafo 7º, do Código de Processo Civil, permite apenas a realização de “audiência de conciliação ou de mediação por meio eletrônico, nos termos da lei”.

A regra legalmente estabelecida, a de permitir a realização apenas de audiência inicial trabalhista e no CEJUSC (“conciliação ou de mediação”) “por meio eletrônico”, é a mais consentânea com os princípios de Direito Processual, e deve produzir seus normais efeitos jurídicos inclusive pelo período posterior ao da pandemia.

Fácil é antever obstáculos jurídicos de difícil transposição para a realização de audiências instrutórias virtuais. A começar, pelo asseguramento da liberdade de quem depõe em juízo, com a necessidade de segregação e incomunicabilidade das testemunhas, consoante a regra constante do art. 824 da CLT, e sem malferir o princípio constitucional da publicidade das audiências (art. 93, IX). Outra questão de difícil solução é como se vedará que a parte que ainda não depôs assista ao depoimento pessoal da outra (art. 385, parágrafo 2º, do CPC), como o reclamante ou o preposto ou representante da empresa serão “retirados da sala”. Isso só para citar algumas questões que de pronto me assaltam a mente, a título exemplificativo.

Destarte, a conduta que se espera da Justiça do Trabalho em homenagem aos princípios da legalidade e razoabilidade é a da realização apenas de audiências iniciais e no CEJUSC, somente durante os períodos de isolamentos sociais, de preferência, condicionada à concordância das partes.

Nesse sentido, em 28.04.2020, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região publicou o Ato TRT GP 08/2020, estabelecendo em seu artigo 11, §1º que: “Diante das dificuldades advindas da circulação de pessoas no Estado de São Paulo e da necessidade de melhor avaliar a efetividade da coleta de provas por meios telepresenciais, o início da realização de audiências unas e de instrução para a coleta de provas e depoimentos fica sobrestado até ulterior deliberação”.

Por outro lado, a RESOLUÇÃO Nº 314 do CNJ também possibilita a sessão de julgamento por videoconferência nos tribunais, notadamente em seu art. 5, parágrafo único, verbis:Caso as sessões se realizem por meio de videoconferência, em substituição às sessões presenciais, fica assegurado aos advogados das partes a realização de sustentações orais, a serem requeridas com antecedência mínima de 24 (vinte e quatro) horas (CPC, art. 937, § 4o ).

A sessão de julgamento nos tribunais por videoconferência foi a solução encontrada para a continuação da atividade jurisdicional. No entanto, deve estar temporalmente limitada aos períodos de isolamentos sociais, encarada como uma medida passageira, uma vez que a sessão de julgamento virtual em nada se equivale a uma reunião presencial entre os julgadores componentes do órgão colegiado, com a sustentação oral, na tribuna, pelo advogado, de viva-voz e olho-no-olho dos julgadores. A colegialidade perde força com a falta de interação humana presencial entre os julgadores na sessão de julgamento. E a advocacia é totalmente desprestigiada nos julgamentos virtuais, com o enfraquecimento e desvalorização do importantíssimo instituto da sustentação oral. O julgamento se burocratiza, perde o seu calor humano, tisnando e comprometendo a própria legitimação democrática dos provimentos jurisdicionais.

É de suma importância que as sessões virtuais de julgamento nos tribunais se restrinjam aos períodos de isolamentos sociais. Na pior das hipóteses, de que a inscrição de advogado para a sustentação oral implica, necessariamente, na pronta conversão do julgamento virtual em presencial.   

O último tópico diz respeito ao restabelecimento dos prazos processuais a partir do dia 4 de maio de 2020,  estabelecido tanto na RESOLUÇÃO Nº 314 do CNJ, como no ATO CONJUNTO CSJT.G, CGJT Nº 5, em ambos seus artigos 3º, respectivamente, assim redigidos:

Os processos judiciais e administrativos em todos os graus de jurisdição, exceto aqueles em trâmite no Supremo Tribunal Federal e no âmbito da Justiça Eleitoral, que tramitem em meio eletrônico, terão os prazos processuais retomados, sem qualquer tipo de escalonamento, a partir do dia 4 de maio de 2020, sendo vedada a designação de atos presenciais.”

“Os prazos processuais no âmbito da Justiça do Trabalho de 1º e 2º graus voltam a fluir normalmente a partir de 4 de maio de 2020.

É importante reproduzir o disposto nos parágrafos 2º e 3º do art. 3 da RESOLUÇÃO 134 do CNJ:

§ 2º  Os atos processuais que eventualmente não puderem ser praticados pelo meio eletrônico virtual, por absoluta impossibilidade técnica ou prática a ser apontada por qualquer dos envolvidos no ato, devidamente justificada nos autos, deverão ser adiados e certificados pela serventia, após decisão fundamentada do magistrado.

§ 3º Os prazos processuais para apresentação de contestação, impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, defesas preliminares de natureza cível, trabalhista e criminal, inclusive quando praticados em audiência, e outros que exijam a coleta prévia de elementos de prova por parte dos advogados, defensores e procuradores juntamente às partes e assistidos, somente serão suspensos, se, durante a sua fluência, a parte informar ao juízo competente a impossibilidade de prática do ato, o prazo será considerado suspenso na data do protocolo da petição com essa informação.

A questão do restabelecimento dos prazos processuais no curso da pandemia é complexa, por envolver a melhor equalização das medidas de preservação da vida e saúde, de um lado, com a economia e o trabalho como meio de subsistência própria e familiar, de outro.

Tudo indica que o restabelecimento da contagem dos prazos processuais no curso da pandemia do coronavírus redundará para expressivo contingente de advogados que não têm, em sua residência, computador com acesso à internet, na quebra do isolamento social, com a obrigatoriedade em se dirigir ao escritório de advocacia, à empresa, ou seja, ao seu local de trabalho, em muitos caos, por meio de transporte público, para o cumprimento dos deflagrados prazos processuais.

As razões determinantes da suspensão dos prazos processuais até 30 de abril de 2020 permanecem vívidas e inalteradas, senão potencializadas, vez que a curva do contágio da Covid-19 no Brasil está em sentido ascendente. Há previsões inclusive de que atingirá o ápice no mês de maio.

A necessidade de adesão às medidas de prevenção ao contágio e transmissão do coronavírus adotadas pelas autoridades sanitárias e governamentais acena para a prorrogação (e não o restabelecimento) dos prazos processuais.

Ao mesmo tempo, parece que a maioria da advocacia  defende o pronto restabelecimento dos prazos processuais, problemática que revela a complexidade da questão, do entrelaçamento preservação da vida e saúde e o trabalho, no sentido de que a vida não pode ser vista sob o aspecto meramente biológico, com a exclusiva preocupação de sobrevivência (animalesca e reprodutiva), mas sob o enfoque mais abrangente do bem viver, com uma  existência digna, fundamental para uma convivência social bem sucedida.

Todos queremos, o mais rápido possível, o retorno à normalidade, especialmente das nossas atividades profissionais, fonte de subsistência própria e familiar. Entretanto, esse momento passageiro de pandemia exige precaução máxima, em prevalência à vida e à saúde das pessoas humanas, direitos fundamentais de hierarquia máxima.

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