Opinião

Renúncia de receita na pandemia: quais limites permanecem?

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30 de abril de 2020, 14h06

O cenário social e econômico instalado em decorrência da emergência sanitária causada pela pandemia de coronavírus (Covid-19) exige do Poder Público, além de medidas de saúde pública, uma mudança radical na política fiscal.

É certo que a economia brasileira e a mundial enfrentarão uma recessão. Torna-se cada vez mais provável, até pelo atraso, insuficiência ou ineficiência das medidas já adotadas que tenhamos que lidar com uma depressão — alguns economistas já a tratam como a maior da história (como Nouriel Roubini). Serão necessárias duas intervenções fiscais distintas, no tempo e na natureza: uma para atenuar e proteger economia e sociedade da grande crise e, depois, outra para as recuperar e reestruturá-las. Em analogia com um tratamento médico podemos dizer: primeiro se leva para UTI e se luta para manter a economia minimante funcionando, e, depois, tenta-se curar e tirar o paciente da UTI e do hospital. No entanto, a cura nesse caso deve implicar uma nova forma de viver.

Na hora da emergência, é consensual, em todo mundo, que se precisa aumentar o gasto público com saúde e proteção social. Também é unânime entre os países a adoção do endividamento público como fonte de financiamento mais adequada. É perda de tempo e, economicamente, é um erro crasso, no atual cenário econômico de queda drástica da demanda, pretender financiar o gasto público adicional com aumento de impostos, mesmo que por meio da instituição de empréstimo compulsório. Escolher esse caminho fatalmente diminuirá ainda mais a renda disponível para famílias gastarem e para empresas investirem.

No Brasil, entre as poucas medidas tributárias já adotadas, em caráter emergencial, ou ainda em debate, ganham destaque a prorrogação do prazo de recolhimento de tributos, sobretudo para microempresas e microempreendedores, e a concessão de benefícios tributários e creditícios, em caráter geral, muitas vezes vinculados à manutenção do emprego e da folha salarial, ou em caráter específico, como incentivos para compra ou importação de insumos e equipamentos hospitalares.

A reação imediata repete o caminho trilhado na grande crise instaurada em outubro de 2008. Na época, as autoridades econômicas brasileiras também concentraram a maior parte do esforço fiscal na concessão de desonerações. Assim, adotaram o caminho oposto ao da maioria das economias avançadas e emergentes, que optaram por pacotes concentrados em aumento de gastos com investimentos fixos, públicos e privados, bem como na concessão de empréstimos e garantias, o que, no Brasil, fez-se de forma opaca, por meio do BNDES.

Embora matematicamente o impacto do uso de renúncia de receita ou de gasto público no resultado fiscal possa ser equivalente, em termos econômicos, existe uma diferença crucial no seu resultado. Não há garantia de que a redução ou postergação do pagamento de tributos, necessariamente, traduzam-se em aumento de consumo ou de investimento. Ou seja, nada assegura que as renúncias possam realmente mover a economia.

Aliás, o velho economista John Maynard Keynes, quando da depressão dos anos 30, era categórico ao defender a via do aumento de gasto e da dívida pública. Dessa forma, estaria assegurado que o esforço fiscal efetivamente aumentasse a demanda da economia e também criasse condições para que investidores privados trocassem seus créditos de outros agentes privados pelos públicos.

Em termos jurídicos, a concessão de renúncia de receita em tempos de pandemia suscita ainda um importante debate a respeito dos controles e limites que precisam ser observados para adoção desse tipo de medida. A urgência afasta integralmente os controles e parâmetros em vigor em matéria de incentivos fiscais? As regras de conteúdo e procedimento que disciplinam as renúncias de receita tributária no Brasil, no quadro de "normalidade institucional", devem ser aplicadas nos tempos extremos em que vivemos?

Os parâmetros, em matéria de renúncia fiscal, são hoje principalmente dois: o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), incluído no texto constitucional pela Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016 (Novo Regime Fiscal).

Ambos determinam que sejam calculados os impactos financeiros e orçamentários dos benefícios fiscais concedidos, ou seja, quanto custa a política fiscal adotada, em termos de perda de arrecadação. Este é um ponto de convergência entre as normas: tanto o artigo 113 do ADCT quanto o artigo 14 da LRF trazem a exigência de estimativa dos efeitos orçamentários e financeiros de proposição legislativa que crie ou altere renúncia de receita tributária. No caso da LRF, além da quantificação da renúncia (e compatibilidade com a LDO), exige-se ainda sua compensação "por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição" (artigo 14, II).

Essas disposições devem ser aplicadas também em tempos de crise grave como essa que vivemos? Ou as urgências de hoje não são em nada compatíveis com os rigores fiscais da LRF e da Emenda 95?

A perplexidade ganha contornos jurídicos específicos diante das regras previstas na PEC 10, de 2020 ("PEC do Orçamento de Guerra"), atualmente em tramitação no Senado Federal, e das decisões monocráticas proferidas em dois casos no Supremo Tribunal Federal a ADI 6357, relator ministro Alexandre de Moraes, e a ADPF 662, relator ministro Gilmar Mendes.

A Proposta de Emenda Constitucional nº 10/2020 estabelece regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para que a União possa atender às necessidades decorrentes de calamidade pública nacional reconhecida pelo Congresso Nacional em virtude de pandemia de saúde pública de importância internacional (artigo 115, caput). A redação final aprovada pela Câmara é a seguinte:

"§ 5º  Desde que não se trate de despesa permanente, as proposições legislativas e os atos do Poder Executivo com propósito exclusivo de enfrentamento do contexto da calamidade e de seus efeitos sociais e econômicos, com vigência e efeitos restritos ao seu período de duração, ficam dispensados do cumprimento das restrições constitucionais e legais quanto a criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa e a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita".

A emenda pretende afastar restrições constitucionais e legais a criação, expansão ou aperfeiçoamento do gasto público direto ou indireto isto é, na forma de renúncia de receita  para o enfrentamento do contexto da calamidade e de seus efeitos sociais e econômicos. Em se tratando de renúncias, isso significa que serão suspensas as exigências previstas no artigo 113 do ADCT, para a União, e no artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, para todos os níveis de governo.

No Senado Federal, o texto proposto no substitutivo do senador Antonio Anastasia é menos amplo. Foram dispensadas as restrições previstas no nível da lei, mas preservadas as que constam no próprio texto constitucional. No nível da Constituição, suspendeu-se apenas a restrição prevista no §3º do artigo 195, que proíbe pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social de contratar com o poder público e dele receber benefícios fiscais ou creditícios. A redação do substitutivo do Senado Federal é esta:

"Artigo 3º — Desde que não se trate de despesa permanente, as proposições legislativas e os atos do Poder Executivo com propósito exclusivo de enfrentamento do contexto da calamidade e de seus efeitos sociais e econômicos, com vigência e efeitos restritos ao seu período de duração, ficam dispensados do cumprimento das restrições legais quanto a criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa e a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita.

Parágrafo único. Durante a vigência da calamidade pública nacional de que trata o artigo 1º, não se aplica o disposto no artigo 195, § 3º, da Constituição".

Embora a PEC em qualquer das redações afaste o cumprimento das restrições em vigor, traz ao menos duas condições no seu próprio texto que não podem ignoradas: I) a temporariedade da medida adotada ("não se trate de despesa permanente" e "vigência e efeitos restritos ao seu período de duração"); e II) a destinação específica ("propósito exclusivo de enfrentamento do contexto da calamidade e de seus efeitos sociais e econômicos"). A rigor, ainda que o texto da PEC mencione "despesa permanente", a leitura integral do dispositivo não deixa dúvidas de que a expressão merece interpretação ampla para incluir tanto as despesas diretas quanto as indiretas, ou seja, as renúncias fiscais.

A rigor, mesmo antes da aprovação da PEC, as exigências previstas no artigo 14 já haviam sido suspensas por força da cautelar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes, no julgamento monocrático proferido na ADI 6.357, em 29/3/2020, nos seguintes termos:

"CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL, aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020, para, durante a emergência em Saúde Pública de importância nacional e o estado de calamidade pública decorrente de Covid-19, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de Covid-19".

De acordo com a decisão, os requisitos do artigo 14, que regula precisamente a concessão de benefícios fiscais que impliquem renúncia de receita tributária, não são exigíveis para as medidas destinadas ao enfrentamento do contexto de calamidade pública hoje vivenciada. Em tempos de crise extrema e extraordinária, o equilíbrio fiscal perde espaço para a preservação da própria economia.

O tema também foi discutido também na decisão monocrática proferida pelo ministro Gilmar Mendes, na ADPF 662, em 3/4/2020. No caso, estava em questão um gasto orçamentário direto, não uma renúncia de receita. Questionava-se a validade de proposição normativa que ampliava o alcance e, portanto, também o custo financeiro-orçamentário do benefício de prestação continuada (BPC), previsto no artigo 203, V, da Constituição Federal.

O relator concedeu em parte a liminar requerida para "suspender a eficácia do artigo 20, § 3º, da Lei 8.742, na redação dada pela Lei 13.981, de 24 de março de 2020, enquanto não sobrevier a implementação de todas as condições previstas no artigo 195, §5°, da CF, no artigo 113 do ADCT, bem como nos artigos 17 e 24 da LRF e ainda no artigo 114 da LDO".

Os fundamentos utilizados para decidir artigo 113 do ADCT e artigos 17 e 24 da LRF parecem indicar uma contradição entre essa decisão e a proferida pelo ministro Alexandre de Moraes na ADI 6.357. Mas o conflito é apenas aparente. Os dois julgados indicam uma diretriz comum: as restrições à política fiscal expansionista pelo gasto ou pelo benefício fiscal devem ser afastadas apenas para as políticas relacionadas à pandemia e somente enquanto ela durar. É, aliás, a mesma leitura que se pode fazer da PEC 10/2020.

Ao que parece, no quadro atual, essas são as duas diretrizes a orientar o controle das renúncias fiscais em tempos de pandemia, presentes tanto nas decisões do Supremo Tribunal Federal quanto na redação em discussão na PEC 10/2020.

A primeira é o controle de escopo. Para que se beneficiem do regime extraordinário/emergencial previsto na PEC e na decisão proferida na ADI 6.357, o incentivo fiscal em questão deve ser destinado ao enfrentamento dos efeitos socioeconômicos da pandemia. Isso significa que nem todo benefício fiscal deliberado no ano de 2020 está necessariamente livre do cumprimento dos requisitos do artigo 14 da LRF e do artigo 113 do ADCT, no caso da União.

A segunda é o controle temporal ou de vigência. Os benefícios fiscais concedidos sem respeito aos parâmetros de responsabilidade fiscal não podem ser permanentes nem perdurar além do estado de calamidade. Devem ter vigência e efeitos restritos a esse período. Superado este momento, não se justifica o levantamento das restrições que, de ordinário, são de se aplicar à concessão e expansão de renúncias de receita, inclusive em cenários de crise fiscal ou econômica.

De resto, é importante lembrar que a transparência é princípio essencial de um regime fiscal responsável e precisa ser reforçada durante o regime extraordinário, no chamado "orçamento de guerra". A necessária e compreensível emergência na adoção de medidas fiscais, na forma de renúncia ou de aumento de gasto, não deve dispensar a obrigação de se estimar os seus impactos e identificar os seus beneficiários.

Apontar com clareza os beneficiários, a duração, os objetivos e os custos de uma política de incentivo fiscal, é fundamental, mesmo em tempos de pandemia, a fim de evitar que privilégios sejam concedidos sob as vestes de benefícios fiscais e que renúncias extraordinárias se tornem permanentes, mesmo quando isso tudo passar. A emergência e imprevisibilidade decorrentes da pandemia e o desafio da reconstrução econômica e social justificam renúncias de receita pública, mas nunca a renúncia à transparência, ao controle e à razão.

Autores

  • é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), pós-doutorando em Administração Pública na Universidade de Lisboa, doutor em Economia pela Unicamp e mestre em Economia pela UFRJ.

  • é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), consultor legislativo da Câmara dos Deputados, advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público. Foi assessor e chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal. Autor dos livros O Avesso do Tributo e Os Impostos e o Estado de Direito.

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